Há pessoas têm a sorte de ter amigos muito generosos e
que são empreiteiros, mas eu, menos afortunado, tenho um amigo que é um misantropo.
Eu explico: apesar desta intrigante palavra evocar em nossa imaginação algum
ser mitológico cujo corpo é metade humano e metade animal, não é nada disso. O misantropo
é bem parecido com este meu amigo, um cara que prefere a solidão ao convívio
com outras pessoas, que não tem vida social e raramente demonstra alegria pela
vida. Em resumo, uma alma solitária.
Este meu amigo mora aqui no Rio Vermelho simpática casinha
rodeada de plantas como se vivesse na roça e todos os dias ele se levanta ao raiar
do sol e vai para cama ao desaparecer dos últimos resquícios do dia, como se a
sua vida fosse regrada pelas manifestações da natureza. Curiosamente, algo provocou
uma ruptura neste seu modo de ser, desde que começaram as obras de reforma na orla
de nosso bairro.
No início, ele foi indiferente àquelas obras, mas à
medida que as ruas da praia foram ocupadas por máquinas pesadas que escavavam e
revolviam a terra noite e dia, ele tornou-se um crítico daquele desperdício de
dinheiro público e, de critico, passou a ser um fiscalizador rigoroso à medida
que aqueles trabalhos iam tomando forma. Durante o dia, ele visitava o canteiro
de obras; curioso, questionava operários. Sempre que julgava que alguma coisa
que não estava sendo feita de maneira correta, ele se manifestava aos trabalhadores
ou sugeria a estes pequenas modificações no projeto. Pode-se de dizer, sem
fazer injustiça, que ao final, aquela transformação pela qual passou o bairro foi
um trabalho em conjunto entre a empreiteira e o meu amigo, sendo que a primeira
pegou no pesado e o outro participou apenas dando palpites.
Depois que a obra da prefeitura foi finalmente
concluída ao cabo de longos meses, outra mudança nos hábitos do meu amigo
misantropo ocorreu. Ele passou a ir até a nova orla no final do dia para assistir
o pôr do sol, quando era de seu hábito já estar se recolhendo em casa. Sentava-se
num banco de madeira novo em folha posto estrategicamente de frente para o mar
e ficava pensativo contemplando o final de um longo dia. Ao invés de ir dormir
com as galinhas como era de seu costume, ele passou a ir para cama um pouco
mais tarde, aproveitando a agradável brisa noturna do mar para dar um passeio
ao longo da nova orla. Sentava-se na balaustrada para assistir as pessoas que
aproveitavam aquele novo espaço para passear de bicicleta, andar de patins, de
skate, jogar bola ou namorar nos bancos novos ou no gramado da encosta. Aquele
prazer pela vida que aquelas pessoas demonstravam começava a contagiá-lo silenciosamente
sem que ele percebesse.
No banco ao lado daquele onde ele costumava assistir o
pôr do sol, certo dia, ele percebeu que também sentava uma moça com a mesma disposição.
Depois que o sol desaparecia, ela ainda continuava alguns momentos admirando o
horizonte manchar-se de vermelho com suas variações mescladas pelas nuvens até
tornar-se um breu.
Aqueles encontros não combinados aconteciam com a
mesma frequência que o sol se punha, e o meu amigo acostumou-se àquela companhia
acidental. Os dois estranhos, contudo, jamais se falaram, nem nunca se cumprimentaram
e se alguma vez trocaram olhares foi algo quase imperceptível. Até o dia em que
o banco em que costumava sentar a moça fosse ocupado por um casal em busca de
assistir o mesmo pôr do sol. Contrafeita, ela sentou-se no banco ao lado onde estava
o meu amigo e, por educação, cumprimentou-o de forma impessoal, ao que ele lhe respondeu
com a mesma cordialidade. Depois ficaram mudos observando atentos ao que se passava
no horizonte.
No dia seguinte, o banco em que a moça costumava
sentar-se estava novamente ocupado e, como na vez anterior, ela cumprimentou o
meu amigo e foi sentar-se ao seu lado. Ele sentiu um pingo de satisfação com
aquela novidade. Ele, que costumava chegar um pouco antes que ela, passou então
a informar educadamente àqueles que ameaçavam sentar-se ao seu lado que o lugar
estava reservado e indicava-lhes o banco vizinho. Aquela inocente artimanha criou
na moça o hábito de sentar-se ao lado dele, mesmo que o outro banco às vezes estivesse
desocupado. O tempo foi passando e talvez
os dois não tivessem percebido que, embora o sol se pusesse a cada dia mais
para o ocidente em decorrência da mudança de estação, deixando, portanto, de
ser visível naquele ponto onde os dois estranhos se encontravam, eles continuassem
a assistir um pôr do sol que não estava mais lá. Certo dia, foi a moça quem tomou
a iniciativa ao pôr delicadamente a sua mão sobre a do meu amigo. E ele retribuiu
aquele gesto inesperado apertando com felicidade a mão dela entre a sua e os
dois, a partir de então, nunca mais se largaram.
Rio Vermelho, 22 de março de 2016.
3 comentários:
Cristiano,
Adorei sua crônica!
Parabéns!!
Abraços.
Elisa Galeffi
Finalmente esta cronica teve um final feliz.
Como sempre bonita e simples, tirando o misantropo.
Um abraço, Paulo Tude.
Amei sua cronica Cristiano, já havia lido as outra sem comentar, parabéns.
Um abraço, Miriam
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