quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Enquanto Formos Úteis

Era noite silenciosa, e na hora mais adiantada do sono, fui acordado pelo chamado de minha mãe. Pedia ajuda para levantar-se da cama e segurá-la no caminho até o banheiro. Isto é rotina de todas as noites, e quando não acontece, fico até preocupado. Em seu atual estado de fragilidade, consequência da idade avançada, ela soltou um lamento, não era útil para mais nada e dependia das pessoas para tudo. Desculpou-se por dar trabalho àquela hora da noite.

A mulher nascida na pobreza do sertão, que desde criança aprendeu a defender-se, pois no colégio interno em que foi estudar, na capital, não tinha nem pai nem mãe ou irmão mais velho que olhasse por ela, a de espírito voluntarioso que preferiu ser excomungada, a deixar de ir viver com o homem que amava, mas que já fora casado uma vez – numa época em que o Deus uniu, o homem não separava –, a que já foi comparada como a viga mestra da família, a que esteve sempre ao lado do companheiro dedicado ao seu trabalho como artista, para tirar do cavalete o sustendo para a grande família, a que criou sete filhos e netos, lamentava agora estar dando trabalho.

Para quem criou filhos e netos só contando com a ajuda do companheiro e, na maioria das vezes, nem com isso, fico imaginando as incontáveis vezes que ela levantou-se no meio da noite para trocar fraldas ou levar crianças semiacordadas para o banheiro, ou forrando com jornal velho a cama que ficou molhada para que a criança prosseguisse no sono, confortável, até o amanhecer. Agora os papéis se inverteram, e chegou a vez dos filhos fazerem por ela o que ela fez por eles sem se queixar.

Enquanto tivermos valor utilitário para outros, não nos falta companhia. Na hora da precisão, sempre somos lembrados como aquele que sabe, que faz, que tem, que ajuda, que empresta. É bom sentir-se útil; poder ajudar, quando possível, sem esperar, no entanto, contrapartida. Ser útil é o que nos dá sentido à vida. Porém, o dia em que precisaremos mais de ajuda do que formos capazes de poder ajudar chegará, este é o desfecho natural. Aí pergunto, quem estará realmente próximo quando este dia chegar. Quando apenas formos uma desbotada imagem daquilo que já fomos, quem se interessará por nós. Só o amor puro, liberto de qualquer interesse trará para perto aqueles que não esperam de nós uma palavra ou gesto que faça sentido. O amor criado pela convivência desinteressada, apenas pelo prazer de estar ao lado da pessoa, e ser útil a ela que agora não está mais em situação de poder ser útil, é o que restará no final. Com pouca noção do que se passa, mal sabe o “inútil” que está sendo útil ao fazer alguém se sentir útil.

Então, quando a mamãe lamenta o seu atual estado de “inutilidade”, eu penso em como ela não tem noção de como ela tem me ajudado a refletir sobre a fragilidade da vida e feito eu me tornar uma pessoa mais humana e solidária, sem nenhum interesse oculto, porque o que sobra no limiar da vida é simplesmente o amor.


Rio Vermelho, 30 de janeiro de 2018.

7 comentários:

Blogue do Pita disse...

Assunto delicado para mim, com quase 80, próximo a ser "inútil". Eu me guio pela "dica" de Sheakspeare, pela boca de um seu personagem: "Não espero nada de minguem ." Mais para "não fico esperando". Não somos quem fomos ontem nem o mundo é o mesmo.
Imagino sua mãe que sempre foi "útil" , ou melhor, "super útil", necessitar de alguém para ir ao sanitário. Não deve ser fácil. Isto que ela tem um filho que entende a vida e suas fases. De uma coisa, pelo mínimo, acertando , criar filho (filhos? ) com amor para dar.

Pita ( quase "inúti)

Abraço

Sarnelli disse...

Realmente, um assunto delicado. Aliás nem é uma criação do autor , É a realidade da vida , pela qual eu mesmo estou passando. Mas não se trata de minha mãe . E sim da minha companheira de 64x anos de casados, que sempre cuidou de mim e agora necessita dos meus cuidados.Éa minha vez de fazer por ela. Quem cuidará de mim quando eu me tornar um " inútil"?Só Deus Sabe !

Carmela disse...

Sem dúvida uma reflexão importante essa. As vezes fico pensando se vida longa é bom ou ruim.

Anônimo disse...

Grande abraço Cris! H Fenocchio

Anônimo disse...

E a vida a cada dia nos ensina mais e mais. Também curto muito a minha velhinha e sei que vou curtir cada dia mais. Um Grande Abraço Cristiano. A. Lopes

Anônimo disse...

Que lindo, Cris. dê um beijo meu em Alice. Sua mãe é uma rocha

Bjs
Maria João Amado

Anônimo disse...

Lindo demais Cristiano!
Marcella Ferri