quarta-feira, 11 de abril de 2018

A selfista

Numa mão, ela segurava o vistoso cone de sorvete, acabado de receber da balconista, uma mulher de rosto arredondado e sorriso fácil. O sorvete tinha duas bolas de cores vivas, cada uma com um sabor diferente, feito de frutas frescas. O cone de biscoito crocante resistia ao frio da sobremesa gelada e emprestava a esta uma aparência de gula. Na outra mão, o smartphone estava pronto para tirar a esperada foto. Não era raro um cliente deixar de fotografar o sorvete antes de comê-lo. Na casquinha ou no copinho, eles eram perfeitos para se fotografar, e antes que sumissem, já estavam eternizados nas redes sociais, recebendo muitos “likes”.

A moça, prevendo que iria tirar uma foto com o sorvete, parecia que tinha saído de casa preparada para a ocasião. Vestia-se com uma roupa bonita bem justa que delineava o seu corpo, modelado em academia de ginástica. O rosto estava tão maquiado que era quase impossível se avaliar a sua idade, mas ela não era nenhuma mocinha. Os cabelos, muito louros, não eram uma herança genética e, provavelmente, tinham sido adquiridos numa elegante caixa na farmácia.

A primeira foto que a moça tirou era do ilustre sorvete, empunhado em sua mão como um troféu gastronômico. Ela o levantou à altura dos olhos e mirou a máquina, ou melhor, o smartphone, e tirou a primeira foto. Foi um gesto rápido com a ajuda do polegar. Em seguida, ela analisou a foto com um olhar crítico, para depois esbouçar um sorriso de satisfação. Aquela servia! Ela já estava craque em tirar fotos, mesmo não sendo uma profissional no assunto. Sabia, por exemplo, qual o melhor ângulo posicionar a máquina para que a foto não saísse distorcida, e que posição da luz era a mais adequada para que, no final, a foto não parecesse desbotada. Antes de apertar o disparador, ela segurava a câmera com firmeza e prendia a respiração por um instante, para que a foto não saísse tremida. Tudo aquilo ela aprendeu sozinha, fotografando tudo que aparecia pela frente.

Do próprio smartphone, ela transferiu a foto para a rede social, acompanhada de uma legenda que ela mesma criou naquele momento e que lhe pareceu muito original: “Delícia!”

A foto seguinte, ela sabia, não seria assim tão fácil. A ideia era que ela e o sorvete aparecessem no mesmo plano, dando a entender que, enquanto os outros pobres mortais davam duro no trabalho àquela hora da tarde, ela desfrutava do prazer de estar numa elegante sorveteria merendando. Era uma satisfação pessoal que ela se permitia, provocar nos amigos um pingo de inveja. Alguns, no entanto, torciam o nariz com uma nesga de desprezo.

A moça colocou o sorvete próximo à boca entreaberta, os olhos cheios de desejo, como se estivesse na eminência de abocanhá-lo, enquanto a outra mão posicionava a câmera. E clique, a foto foi tirada. Em seguida, ela analisou a foto como fizera da primeira vez. No entanto, desta vez ela foi mais rigorosa. Achou a foto um pouco demais sugestiva e imaginou os comentários maldosos que talvez alguns de seus seguidores na rede social não resistiriam em fazer. Não, aquela foto estava fora de questão. Tentou novamente. Desta vez, ela colocou o sorvete um pouco mais de lado, para que este não impedisse as pessoas de reconhecê-la. Manteve a boca fechada, desta vez, mas ensaiou um largo sorrido que expunha a brancura e perfeição de seus dentes – estes, resultado do sacrifício de usar por dois anos aparelhos ortodônticos.  O sorvete, nesta foto, saíra inclinado para o outro lado e, por isso, seria necessário mais uma tentativa. Os cabelos loiros, também, estavam um pouco desalinhados. A moça, então, pôs mais um sorriso fabricado, arrumou os cabelos, posicionou o sorvete no ângulo correto e tirou a foto. Desta vez o sorriso lhe pareceu muito forçado. Talvez se ela abrisse a boca só um pouquinho e sorrisse, o resultado final fosse mais do seu agrado. E foi justamente o que ela fez. A foto foi mais uma vez tirada e posteriormente analisada com o olhar de quem procura algum defeito. Não estava perfeita, mas estava próxima do desejado. O sorvete, por outro lado, agora dava a impressão de que em breve começaria a se render ao calor e escorrer por sua mão. Só faltava mais uma coisa, antes de comê-lo. Postou a foto imediatamente na rede social com a intrigante legenda: “Aceitam um sorvete?”


Rio Vermelho, 10 de abril de 2018.




4 comentários:

Anônimo disse...

Suas paradas na sorveteria estão lhe rendendo inspirações. Ao olhar do escritor tudo ganha vida! Parabéns!
Carmela Talento

Anônimo disse...

Hola Cristiano lendo sua ultima postagem no Bloog! me ocorreu enviarte esta FOTO ! Se trata de uma publicacion los anos 80 fizemos o dezenho Eu e um amigo, foi uma revista meio frivola sobre as baladas da epoca em IBIZA.
Lula Martins

Anônimo disse...

Cristiano, desta vez foi demais, só parece que você conhecia a moça pois sabia que
a mesma usou aparelho ortodôntico por dois anos, assim sendo a sua nota para este
conto não foi 10 (dez).
Um abraço Paulo Tude.

Anônimo disse...

Oi Cristino!
Seus contos sempre leves nas palavras e fácil de enxergar exatamente a situação.
Parabéns!
Bjs
Ivana Braga