sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Que máscara danada!

 Um artigo de proteção transformou-se em peça de vestiário e veio juntar-se à composição de roupas que vestimos para sair de casa. A máscara, para alguns, um martírio, para outros, uma alegria. Minha sobrinha adora máscaras. Ao longo desses meses de pandemia, ela formou um guarda-roupa de opções, para combinar com as outras roupas. Fica numa alegria danada quando ganha uma de presente, parece até que lhe deram uma bolsa de grife chique.

 Além de sua utilidade protetora, a máscara também tem a função estética de esconder a feiura, e a social de nos ajudar a fingir que não reconhecemos aquele chato, ao cruzar acidentalmente com ele na rua. Entretanto, descobri que o uso da máscara também faz com que as pessoas nos tomem por outra.

Ao sair do mercado ontem, dei de cara com um cidadão que me cumprimentou efusivamente. Seu entusiasmo era tanto que parei para cumprimentá-lo também, embora eu não fizesse ideia de quem fosse. Então ele me contou que o pai falecera recentemente e que agora o taxi era só dele. Entendi então que ele fazia ponto em frente ao mercado, embora eu sempre leve minhas compras a pé. Percebendo minha apatia, ele perguntou:

— O senhor não está me reconhecendo, não é?

Tive, então, a presença de espírito de falar que a máscara escondia o rosto das pessoas, o que não deixava de ser uma verdade. No meu caso, eu usara a máscara como desculpa por não reconhecê-lo. Na verdade, eu nunca vi aquele camarada em minha vida. Mas a minha falta de conhecimento, ou lembrança, de quem era a sua pessoa, não o intimidou. Ele então começou a falar do tio recém-diagnosticado diabético e de como ele passara maus bocados com o remédio que o médico lhe prescrevera, pois não dormia a noite inteira, de tanto que ia ao banheiro fazer xixi. Para poupar a paciência dos caros leitores, pois, certamente, a minha não foi poupada, resumo que o prestimoso sobrinho foi até uma das farmácias do bairro, para pedir ao farmacêutico para substituir a medicação que estava fazendo o tio urinar feito um gambá — imagino eu, se alguém bebe feito um gambá, o mesmo animal deve mijar muito também —, e este, o farmacêutico, sugerira algo muito melhor. Ali bem perto havia um médium gabaritado que daria um passe no tio e ele ficaria curado do problema urinário. Dito e feito, o querido sobrinho levou o enfermo tio a esse lugar que, depois receber as oblações do sacerdote espírita, nunca mais deu uma mijada no meio da noite, reestabelecendo o seu bom sono — esses médiuns então acabando com a indústria farmacêutica! Antes que o taxista me fizesse ouvir outro drama familiar, aleguei estar atrasado para o almoço e me despedi, não sem antes expressar meus sentimentos pela perda de seu pai e desejar melhoras para o tio.

Nem bem eu me livrei de um chato, já fora das instalações do mercado, outro veio me cumprimentar. Que sorte eu estava tendo! Este me cumprimentou com o mesmo entusiasmo que o outro, porém eu também não fazia ideia de quem fosse. No entanto, este foi mais breve, perguntou por minha saúde e se eu estava me cuidando — nesses tempos de pandemia, o hábito de se falar sobre o tempo, quando não se tem nada melhor para falar a respeito, foi substituído pelas perguntas sobre a saúde e pelos cuidados pessoais para se proteger. Assegurei-lhe que estava me cuidando e que precisava ir urgente para casa, para passar álcool em gel nas mãos, e me despedi, sem, no entanto, deixar de ouvir recomendações para que eu me cuidasse.

Mas como eu disse, esse era o meu dia de sorte. Nem bem me despedi de um, apareceu outro em meu caminho! A máscara, que deveria também me proteger dos chatos, estava atraindo-os como formiga no mel. Por que, de uma hora para outra, gente que eu não fazia ideia de quem fosse me cumprimentava na rua e me parava para conversar? Cabe aqui explicar a minha ansiedade em chegar logo em casa: eu carregava ao ombro uma sacola pesada de compras, dessas de pano, ecologicamente corretas, e teria de caminhar dois quilômetros e meio para chegar ao meu destino.

Esse outro quase me deu um abraço, de tanta felicidade ao me ver. Disse que eu andava sumido, ao que prometi aparecer mais vezes; sabe deus onde! Falou mais alguma coisa que eu concordei também. Me perguntou outra, e eu respondi que estava me cuidando, sim. Ele estava com pressa e disse que não podia conversar mais, eu lamentei ter de interromper a tão agradável conversa e segui o meu caminho.

Para não ser mais confundido com ninguém, andei o resto do trajeto até em casa sem a bendita máscara!

 

  Rio Vermelho, 01 de outubro de 2020.  

3 comentários:

Anônimo disse...

TEM TANTO TEMPO QUE NÃO LHE VEJO E COM A MASCARA NÃO VOU LHE RECONHECER.
UM ABRAÇO, PAULO TUDE

Anônimo disse...

Ri em voz alta! Adoro seu sarcasmo e seu deboche de tudo e de todos.
Desta vez você se esmerou!
Abraço,
Sergio Guerra

Danilo disse...

E como reconhecer as pessoas sem as máscaras? rsrs