Um artigo de proteção transformou-se em peça de vestiário e veio juntar-se à composição de roupas que vestimos para sair de casa. A máscara, para alguns, um martírio, para outros, uma alegria. Minha sobrinha adora máscaras. Ao longo desses meses de pandemia, ela formou um guarda-roupa de opções, para combinar com as outras roupas. Fica numa alegria danada quando ganha uma de presente, parece até que lhe deram uma bolsa de grife chique.
Além de sua utilidade protetora, a máscara
também tem a função estética de esconder a feiura, e a social de nos ajudar a fingir
que não reconhecemos aquele chato, ao cruzar acidentalmente com ele na rua. Entretanto,
descobri que o uso da máscara também faz com que as pessoas nos tomem por
outra.
Ao sair do mercado ontem, dei de
cara com um cidadão que me cumprimentou efusivamente. Seu entusiasmo era tanto
que parei para cumprimentá-lo também, embora eu não fizesse ideia de quem
fosse. Então ele me contou que o pai falecera recentemente e que agora o taxi
era só dele. Entendi então que ele fazia ponto em frente ao mercado, embora eu
sempre leve minhas compras a pé. Percebendo minha apatia, ele perguntou:
— O senhor não está me
reconhecendo, não é?
Tive, então, a presença de
espírito de falar que a máscara escondia o rosto das pessoas, o que não deixava
de ser uma verdade. No meu caso, eu usara a máscara como desculpa por não
reconhecê-lo. Na verdade, eu nunca vi aquele camarada em minha vida. Mas a
minha falta de conhecimento, ou lembrança, de quem era a sua pessoa, não o
intimidou. Ele então começou a falar do tio recém-diagnosticado diabético e de
como ele passara maus bocados com o remédio que o médico lhe prescrevera, pois
não dormia a noite inteira, de tanto que ia ao banheiro fazer xixi. Para poupar
a paciência dos caros leitores, pois, certamente, a minha não foi poupada, resumo
que o prestimoso sobrinho foi até uma das farmácias do bairro, para pedir ao
farmacêutico para substituir a medicação que estava fazendo o tio urinar feito
um gambá — imagino eu, se alguém bebe feito um gambá, o mesmo animal deve mijar
muito também —, e este, o farmacêutico, sugerira algo muito melhor. Ali bem
perto havia um médium gabaritado que daria um passe no tio e ele ficaria curado
do problema urinário. Dito e feito, o querido sobrinho levou o enfermo tio a
esse lugar que, depois receber as oblações do sacerdote espírita, nunca mais
deu uma mijada no meio da noite, reestabelecendo o seu bom sono — esses médiuns
então acabando com a indústria farmacêutica! Antes que o taxista me fizesse
ouvir outro drama familiar, aleguei estar atrasado para o almoço e me despedi,
não sem antes expressar meus sentimentos pela perda de seu pai e desejar
melhoras para o tio.
Nem bem eu me livrei de um chato,
já fora das instalações do mercado, outro veio me cumprimentar. Que sorte eu
estava tendo! Este me cumprimentou com o mesmo entusiasmo que o outro, porém eu
também não fazia ideia de quem fosse. No entanto, este foi mais breve,
perguntou por minha saúde e se eu estava me cuidando — nesses tempos de
pandemia, o hábito de se falar sobre o tempo, quando não se tem nada melhor
para falar a respeito, foi substituído pelas perguntas sobre a saúde e pelos
cuidados pessoais para se proteger. Assegurei-lhe que estava me cuidando e que
precisava ir urgente para casa, para passar álcool em gel nas mãos, e me
despedi, sem, no entanto, deixar de ouvir recomendações para que eu me
cuidasse.
Mas como eu disse, esse era o meu
dia de sorte. Nem bem me despedi de um, apareceu outro em meu caminho! A
máscara, que deveria também me proteger dos chatos, estava atraindo-os como
formiga no mel. Por que, de uma hora para outra, gente que eu não fazia ideia de
quem fosse me cumprimentava na rua e me parava para conversar? Cabe aqui
explicar a minha ansiedade em chegar logo em casa: eu carregava ao ombro uma
sacola pesada de compras, dessas de pano, ecologicamente corretas, e teria de
caminhar dois quilômetros e meio para chegar ao meu destino.
Esse outro quase me deu um abraço,
de tanta felicidade ao me ver. Disse que eu andava sumido, ao que prometi
aparecer mais vezes; sabe deus onde! Falou mais alguma coisa que eu concordei
também. Me perguntou outra, e eu respondi que estava me cuidando, sim. Ele
estava com pressa e disse que não podia conversar mais, eu lamentei ter de
interromper a tão agradável conversa e segui o meu caminho.
Para não ser mais confundido com
ninguém, andei o resto do trajeto até em casa sem a bendita máscara!
Rio Vermelho, 01 de outubro de 2020.
3 comentários:
TEM TANTO TEMPO QUE NÃO LHE VEJO E COM A MASCARA NÃO VOU LHE RECONHECER.
UM ABRAÇO, PAULO TUDE
Ri em voz alta! Adoro seu sarcasmo e seu deboche de tudo e de todos.
Desta vez você se esmerou!
Abraço,
Sergio Guerra
E como reconhecer as pessoas sem as máscaras? rsrs
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