domingo, 14 de dezembro de 2008

Eu e os bichos grilos.



Minha amiga Cristiana recordou-se com saudades do tempo em que foi hippie na chapada, depois que leu 'Um caso de malemolência nativa'. 'O povo de lá é assim mesmo, escarrado e cuspido', escreveu-me. Kitty, fico feliz em ter-lhe proporcionado este breve momento nostálgico.

Seria muito injusto de minha parte descrever de maneira folclórica só os nativos da região. E quanto aqueles que fogem da selva urbana por não a tolerarem mais, ou por nela não se encaixarem? Eles migram para estes paraísos ecológicos em busca de melhor qualidade de vida ou apenas em busca da nirvana. Algumas dessas pessoas são aquilo que se convencionou a se chamar de 'normais'. Elas buscam apenas uma vida saudável e tranqüila. Outras são o que eu chamo de 'bicho grilo'. Eu considero o atual bicho grilo uma versão moderna do hippie, sendo que estes não pretendem modificar o mundo com paz e amor, até por que nossos inimigos da atualidade são outros mais difíceis de combater. Estes personagens cultivam uma forma de vida que é como um imenso cozido de tudo o que se tem de alternativo na constelação. Amam e cultuam desde a natureza, alimentação orgânica e vegetariana, astrologia, tarô, holística, florais, biodança, duendes, fadas, hobbits, bruxas, visitantes do espaço, enfim, a porra toda! São pessoas que levam uma vida muito rica de experiências, são afáveis e interessantes. Você só não deve dizer a elas que apreciam uma boa picanha ou que pretende acimentar todo o seu jardinzinho. Elas nunca lhe agredirão verbalmente ao ouvir de você tais heresias, pois, isto fere sua filosofia e modo de vida. Mas lhe dirão um monte de coisas lhe recriminando, uma vez que elas é que estão sempre certas.

Na Chapada, pode-se encontrar um monte destes bichos grilos. Existe por lá uma cidadezinha de nome Igatu, que é conhecida por concentrar grande número de aparições de discos voadores. Por causa disso, seus moradores andam olhando para o céu e não para o chão, como seria o mais sensato. Este é o motivo que faz de Igatu ter o maior índice de topadas do planeta!

Certa vez eu estava em Lençóis conversando numa roda de moradores locais. Estávamos num bar onde era servida apenas cachaça. O proprietário, um senhor barrigudo, ficava atrás do balcão ouvindo tudo com muita atenção e para cada dose que ele servia, tomava outra. Eu não conseguia compreender quase tudo que diziam, pois era um papo elevado demais para a minha compreensão, contudo, eu posso jurar que a língua utilizada era o português. Havia um rapaz mulato rechonchudo de cabelo comprido e bem cuidado amarrado para traz, tinha uma dúzia entre brincos, piercings e tatuagens espalhadas pelo corpo, sua cara era meio de debilóide e falava algo assim arrastando com as palavras, lembrei do Obelix, parecia que ele tinha caído no caldeirão de maconha quando era bebê:

"Velho, quando eu morava no Alto da Estrela – trata-se de um bairro que fica no alto e cujo terreno é muito rochoso – eu vivia morgado, sacou? Rolava sempre umas dores de cabeça bizarras, mermão. – o seu olhar era vago e perdido. – A energia daquelas pedras é muito negativa, rei. Saí de lá, fui morar no Areal de Baixo. Lá é mais terra, é mais chão, sacou? Eu pisava na terra e me sentia numa boa, sacou? Pisar no chão faz bem, rei. Terra faz parte do mundo, é o universo, sacou? É energia positiva, broder."

Outro morador de lençóis, fugitivo de Salvador, convidou-me para conhecer a sua casinha. Fui lá tomar um café com cuscuz e bolinho de chuvisco. Ela ficava num lugar muito bonito rodeada de plantas e era bem ajeitada. Logo que entrei na casa, ele me levou para conhecer a sala de estar. Foi até um canto e me chamou.

- Venha até aqui. Olhe só, sinta aqui essa vibração – falou levando a mão em forma de concha até o ouvido como se estivesse tentando escutar alguma coisa. – Está sentindo uma vibração neste canto?

Meio sem jeito, fui até perto dele. Fiz como ele, tentando ouvir alguma coisa. Fiz uma expressão de quem estava me concentrando. Eu mesmo que iria contrariar um anfitrião!

- É... acho que sim... estou sentindo alguma coisa diferente, sim. – disse tentando ser simpático.

Foi lá, também, que eu conheci uma paulistinha linda com quem tive um namorico. Ela era muito inteligente e talentosa. Escrevia uns poemas eróticos que fariam Bocage corar de vergonha! A menina era meio esquisitinha, mas como estávamos em Lençóis, eu considerava isso normal. Logo de início, ela me contou que uma vez surtara e fora parar num manicômio por meses. Mas ela era uma gracinha e não quis deixar que isso interferisse em minhas intenções com ela. Uma vez, ela me convidou para acompanhá-la num tipo de retiro espiritual no qual as pessoas presentes abandonariam seus corpos e flutuariam no ar, olhariam para seus corpos de lá de cima, não sei com que intenção. Achei a idéia interessante, mas expliquei-lhe que eu era um típico capricorniano, muito apegado ao meu corpo e a coisas materiais, e que eu não gostaria de flutuar por que a minha natureza capricorniana era a de uma pessoa que gostava sempre de ter os pés no chão, etc. Eu sempre tenho uma resposta razoável para tudo.

Quando eu a conheci numa bela noite de lua cheia, ela estava sentada sozinha numa mesa de bar bebendo uísque. Eu ia passando e ela sorriu para mim. Dei meia volta e voltei para abordá-la.

- Você está sozinha? – perguntei antes de puxar uma cadeira e me convidar a sentar.

- Não, eu estou comigo mesma. – respondeu com um belo sorriso.

- Eu também estou comigo. Vamos conversar nós quatro? – sentei à mesa.

Nunca mais tive notícias dessa criatura. Mas era linda, a menina. Depois daquela louca, houve outras em minha vida. Foi então que compreendi que eu tinha uma atração doentia pelo gênero. Deveria ter seguido a psiquiatria!

Mas o extremo das crenças em maluquices alternativas aconteceu com um querido personagem de Lençóis. Protegerei seu nome porque ele ainda anda por lá. Mas digo que ele é um estrangeiro e não um ser de outro planeta, embora aparente ser tal. Este rapaz sempre nos pareceu, para os padrões da Chapada, ser um cara equilibrado, bom esposo e pai de família. Até que um dia, resolveu que não iria mais comer. Alimentar-se-ia apenas da luz do sol e água. Se era bom para uma plantinha, porque não seria para si próprio? Ele era branquelo e passava horas tomando sol deitado sobre uma pedra como se fosse um lagarto. As semanas se passaram e ele quase evaporou de tanto que perdeu peso. Mal se agüentava em pé, apesar da nutritiva refeição. Mas como não era verde e nem possuía clorofila na pele, quase transcendeu para a dimensão além vida. Felizmente, alguém teve juízo e internou-o num hospital para tomar soro. Nunca mais quis encher a barriga de sol.

Apesar de todas estas excentricidades e esquisitices, continuo indo a Lençóis, apreciando o lugar e suas pessoas, afinal, nem eu e nem ninguém somos tão perfeitos!

Rio Vermelho, 13 de dezembro de 2008.

4 comentários:

José Luis disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Martha Falzoni disse...

Interessante sua descrição sobre os bichos-grilos. É possível que após o tempo vivido nas grandes cidades, ao entrar em contato com a natureza e com um estilo de vida mais tranquilo,esta gente tenha se tornado, um tanto quanto, digamos... intrigante. Vou incluir a chapada em meu roteiro de férias.

Ana Teresa Baptista disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Teresa Baptista disse...

Cris, preciso arranjar um tempinho para ler as suas crônicas com calma. As ilustrações estão muito bonitas!