Está cada dia mais difícil de se encontrar uma empregada doméstica que seja, boa ou ruim. Segundo o ex-deputado Delfim Neto, “quem teve este animal, teve. Quem não teve, nunca mais vai ter.”, que o brasileiro não sabe viver sem esta comodidade que remonta os tempos das senzalas. Em pleno século XXI e passados mais de 120 anos da Abolição, ainda carregamos o velho ranço daqueles obscuros tempos, que é o de sempre termos à nossa mão um servo ao nosso bel dispor dentro de nossa própria casa. Alguém que não apenas cozinhe, mas dê também uma geral na casa, vá pegar as crianças na escola e dê o almoço delas, e as eduque – e as ature - um pouco até a hora dos responsáveis reassumirem a paternidade. E seja conselheira sentimental da filha adolescente que está passando por uma fase difícil, pois tem dúvidas se perde a virgindade com a sua melhor amiga ou com o namorado. Que lave umas roupinhas e passe o ferro em outras, e pregue o botão de uma camisa do doutor fulano. Que vá até o banco pagar umas contas ou acompanhe a madame ao supermercado, para empurrar o carrinho porque ela não consegue tirar os produtos da prateleira, pôr no carrinho e empurrá-lo ao mesmo tempo, ou a acompanhe na ida à feira carregando as pesadas sacolas feito uma mula de carga, enquanto a digníssima já tem trabalho demais carregando a sua Louis Vuitton. E se não for pedir muito, que jogue uma água no carro do patrão e dê uma boa esfregada nos tapetes que estão precisando. Mas o almoço deve sempre ficar pronto ao meio dia. A figura da empregada domestica está tão arraigada em nossa sociedade que até influencia a arquitetura de prédios residenciais ao estabelecer um certo elevador de serviço que evita misturar empregadas com finos moradores, ou cria um cubículo apertado nos fundos da habitação, tendo apenas uma fenda na parede em lugar da janela — onde ninguém de coração ousaria por o próprio cão — e o batizou candidamente de quarto de empregada.
A senhora JR mandou vir da roça uma “menina” para ajudá-la no serviço de casa, pois não dava conta de ser mãe de três lindas crianças, esposa maravilhosa, dona de casa perfeita, funcionária publica exemplar e ela mesma em constante crise existencial. Semanas depois, a “menina” chegou. Chamava-se Daiana Aparecida. Era do tipo tímida e calada, mas logo demonstrou ser muito trabalhadora e rápida de aprender o serviço. Não tinha mais que vinte anos e a compleição de seu corpo era de uma mulher saudável e forte. E se por falar em seu corpo, este merecia atenção especial, pois a moça era uma delicia de se por os olhos... e as mãos, também. Sua pele era macia e delicada como a do figo e da cor do açúcar queimado. Os olhos eram grandes e da cor de amêndoa, e os cabelos, estes eram sarará, assanhados como os de alguém que tivesse sido atingido por um raio. Seu cheiro, hummm... era delicioso como o de terra e palha molhada. Ela logo chamou a atenção de tudo quanto era marmanjo que tinha o prazer e a sorte de cruzar em seu caminho, mas não dava bola pra nenhum deles pois não era moça disso, e nem daquilo. Ao contrário, ela era muito da caseira, gostava de trabalhar ouvindo o ràdio e assistia a tevê quando lhe sobrava algum tempo, pois serviço era o que não lhe faltava. Seu ‘job description’ incluía desde tudo até quase tudo, de modo que a patroa, ao voltar para casa à noite, encontrava a casa toda limpa e cheirosa, o chão encerado, a cozinha brilhando com um jantar delicioso — a "menina" encontrou um exemplar do livro de culinária “Dona Benta” e nele mergulhou no mundo dos sabores e temperos — aguardado sobre o fogão para ser consumido pela família, e as crianças de banho tomado depois de chegarem da escola. Tudo parecia perfeito e todos estavam felizes. A senhora JR se sentia como se tivesse ganhado o prêmio na "Mega sena" e, até o marido, que era um sujeito meio carrancudo, andava com um sorriso de satisfação nos lábios.
Sobre este sorriso dele, ela começou a ficar intrigada quando ele passou a não solicitar os seus favores com a frequência que lhe era habitual e quando isto acontecia ela percebeu que havia uma certa escassez do produto de seu afeto. Será que havia alguma coisa com ele, um problema de trabalho que ele não lhe revelava, talvez? Mas ele parecia tão bem humorado ultimamente, talvez fosse outra coisa. E essa outra coisa ficou martelando na cabeça da madame até que um certo dia ela achou por bem não tomar seu comprimido para insônia pois queria estar bem acordada para investigar o que se passava sob o seu teto depois que tombava no sono como efeito do poderoso sonífero.
Como era de se esperar, naquela noite, a insônia veio fazer companhia às preocupações da senhora JR. Ao invés de se sentar na cama para ler um livro, como sempre fazia neste caso, ou ir na sala ver um daqueles bons programas evangélicos de madrugada a dentro que tanto fazem bem para chamar o sono, ela, no entanto, ficou quietinha na cama fingindo-se de morta. E no meio da noite, o doutor fulano chamou suavemente pelo seu nome e como ela não respondesse, ele levantou-se e foi, na pontinha dos pés, para fora do quarto. A senhora JR deixou o tempo passar e como ele demorasse, foi investigar o motivo da delonga. Não o encontrou vendo tevê, nem em seu escritório e tão pouco na cozinha. Mas percebeu uma estanha agitação no quartinho dos fundos. Pelos sons familiares que vinham lá de dentro ou alguém estava sofrendo muito ou se divertindo horrores. Para ter certeza do que seus ouvidos lhe diziam, ela pôs a mão na maçaneta e a girou escancarando a porta. E o que presenciou a deixou indignada. Lhes pouparei dos detalhes sórdidos daquela cena imoral que remonta os tempos do senhorzinho satisfazendo os seus lascivos desejos na senzala. Um misto de revolta e ciúmes dominou a senhora JR ao ver que do jeito que seu esposo fazia na “menina”, ele jamais tinha feito ou tentado nela, e nem nenhuma freira do Colégio Sagrado Coração lhe avisara que aquilo era ilegal ou não, mas de qualquer forma, uma mulher respeitável como ela nunca se rebaixaria a tanto, embora não lhe fizesse mal algum dia experimentar aquilo pelo menos uma vez por ano, em alguma data comemorativa, mas que não fosse em nenhuma data Santa que aquilo seria uma heresia.
A senhora JR sofreu com aquela punhalada, logo executada sob o teto sagrado de seu lar, logo a “menina”, tão trabalhadora e eficiente, sua melhor empregada, que nunca na vida ela iria encontrar outra igual, ainda mais que mulher nenhuma queria mais trabalhar como doméstica. Como é que agora ela ia se virar sem a sua excelente serviçal? Vislumbrou o futuro e viu o caos em sua vidinha de madame de classe média sem uma criada. Mas ela era uma mulher de caráter e de decisão, faria o que era o moralmente correto mesmo que isto lhe causasse algum sofrimento. Não teve dúvidas, mandou o marido embora! Que homem como ele era o que mais se encontrava, mas uma boa doméstica era insubstituível.
Rio Vermelho, 27 de maio de 2011.
4 comentários:
Adorei
Kathy Albech
Muito bem...a cada dia melhor !
A senhora JR fez muito bem! rsrsrs
Parabéns, Cristiano!
Muito boa crônica!!!
Eu entrei, li e gostei muito! Vc escreve bem, com leveza e fluidez. Muito bom!
Isa Magalhães
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