terça-feira, 12 de junho de 2012

Apego a formalidades.

Andava com os nervos à flor da pele por causa de noites mal dormidas e irritação com a vizinhança. Na verdade, só um vizinho o aborrecia tanto assim, e acontecia de este ser, também, o motivo das noites perdidas. É que abriram um bar em frente à sua casa. Destes frequentados por gente que fala aos berros, bebe muito e dá vazão desmesurada às emoções, que um bar é quase sempre um vizinho indesejável.
         Francisco era justamente o oposto, não frequentava bares, bebia como um passarinho e estava sempre mal humorado. Mas a sua querela com o inoportuno vizinho justificava-se: o estabelecimento só abria para a noite, mas o vigia do local colocava música o dia inteiro e com o volume nas alturas, pois estava decidido a compartilhar o seu gosto musical duvidoso com a vizinhança, para desespero do desafortunado Francisco que trabalhava em casa e precisava de silêncio. Resultado: de dia ele não conseguia trabalhar direito por causa da música alta do vigia e à noite a zoada do bar roubava-lhe o sono. Era um inferno!
Foi reclamar ao proprietário que, para seu azar, era um homem grosseiro e alheio a princípios da boa vizinhança. O vigia não estava fazendo nada de mais ao se distrair ouvindo música e podia ouvi-la no volume que bem desejasse, respondeu indiferente a Francisco, dando por encerrada a conversa. E como se não bastasse, nas noites das quartas-feiras tinha um telão para a clientela assistir o futebol. Aí sim é que aquilo lá virava um inferno quando alguém gritava “gol!”.
         Mas Francisco, que era um tipo muito educado e reservado, não tolerava desaforo algum, brigava por seus direitos com unhas e dentes. No dia seguinte, foi no órgão da prefeitura responsável por aquele tipo de abuso e formalizou uma queixa. Agora o dono do bar vai se ver com as autoridades, profetizou satisfeito. Passados três longas semanas, finalmente o fiscal da prefeitura deu as caras no local, mas os argumentos do proprietário foram mais convincentes, qual barnabé não é sensível a uma boa explicação recheada de dinheiro? Francisco aguardou até que ele saísse do bar para interpelá-lo e este veio com uma explicação de fazer cair o queixo: não poderia fazer nada a respeito uma vez que o estabelecimento não possuía alvará de funcionamento, não estava legalizado, portanto, e como este não existia formalmente para a prefeitura, não tinha como autuá-lo, pois o bar não existia! E foi-se embora satisfeito com os bolsos cheios de dinheiro.
         Indignado, Francisco resolveu voltar à prefeitura com a intenção de resolver aquela questão a qualquer custo, desde, é claro, que fosse de forma lícita, pois ele se pautava pela correção e honestidade, não iria molhar a mão de ninguém para ter seus direitos reconhecidos, a paz e sossego eram direitos fundamentais do cidadão. Como não podiam fazer nada contra um estabelecimento clandestino? Que espécie de desculpa esfarrapada era aquela? Desta vez, chamou seu amigo Josivaldo para acompanhá-lo na empreitada, este serviria para lhe dar apoio moral. Francisco queria falar com algum funcionário superior, alguém dotado de discernimento que percebesse o absurdo dito por aquele fiscal corrupto e que tomasse as devidas providências. No dia seguinte, voltou ao órgão municipal com Josivaldo a tiracolo.
         Francisco não era o único a brigar por uma causa junto à prefeitura e, por isso, a sua senha de atendimento era a de número 237 mas, para o seu desespero, o placar estava ainda no número 56! Felizmente não esperaria todo aquele tempo sozinho, pois Josivaldo estava ali ao seu lado para fazer-lhe companhia, ficariam jogando conversa fora até que chegasse a sua vez. Pobre Josivaldo, há coisas aborrecidas que só mesmo por um amigo do peito se faz, e uma delas é fazer-lhe companhia numa fila de espera de uma repartição burocrática da prefeitura. E quem tem amigos, espera um dia poder contar com eles numa eventualidade. Foi quando Dagoberto, um amigo de Francisco dos tempos de faculdade e companheiro de farras homéricas apareceu por detrás do balcão. Ao vê-lo Francisco surpreendeu-se e logo concluindo que o grande Dagoberto deveria ser um funcionário daquela repartição. Havia anos que ambos não se falavam e Francisco foi lá cumprimentá-lo enquanto, de longe, sentado em seu lugar, ficou Josivaldo assistindo a cena, torcendo para que Dagoberto se mostrasse útil e desse um jeitinho para resolver o problema de Francisco, para que os dois fossem embora dali o quanto antes.
         Trocaram abraços calorosos, rizadas, tapinhas nas costas em meio à conversa. Pelo entrosamento entre os dois, Josivaldo concluiu que o problema já estava bem encaminhado, sentiu-se quase chegando de volta em casa.
         — E aí, falou com ele? – quis saber Josivaldo ao retorno de Francisco.
         — Nem toquei no assunto. – respondeu Francisco desanimado.
         — Mas por quê?
         — Ele não me perguntou o que estava fazendo aqui. – respondeu Francisco amuado.
         — Que é isso! – exclamou Josivaldo perdendo a paciência. – Era só contar o problema e pedir a ele para dar uma força!
 — Mas se ele nem quis saber o motivo porque eu estou aqui, é porque não está interessado em me ajudar, não sou eu quem vai pedir favores! – disse Francisco dando por encerrada a questão, com o orgulho ferido.
         Josivaldo aborreceu-se com aquele comportamento de Francisco, nunca vira tanto pudor assim. Os dois ficaram mudos sem trocar mais palavras. O jeito era ficar aguardando até que chamassem o número 237 mas só Deus sabia quando isto aconteceria, e tudo isso por causa de uma mera formalidade.

Rio Vermelho, 11 de junho de 2012.
         

Um comentário:

Sarnelli disse...

Será que o Josivaldo , com o número 237 , já foi atendido ? Que azar, hein ?