Andava com os nervos à flor da
pele por causa de noites mal dormidas e irritação com a vizinhança. Na verdade,
só um vizinho o aborrecia tanto assim, e acontecia de este ser, também, o
motivo das noites perdidas. É que abriram um bar em frente à sua casa. Destes
frequentados por gente que fala aos berros, bebe muito e dá vazão desmesurada às
emoções, que um bar é quase sempre um vizinho indesejável.
Francisco era justamente o oposto, não frequentava bares,
bebia como um passarinho e estava sempre mal humorado. Mas a sua querela com o
inoportuno vizinho justificava-se: o estabelecimento só abria para a noite, mas
o vigia do local colocava música o dia inteiro e com o volume nas alturas, pois
estava decidido a compartilhar o seu gosto musical duvidoso com a vizinhança,
para desespero do desafortunado Francisco que trabalhava em casa e precisava de
silêncio. Resultado: de dia ele não conseguia trabalhar direito por causa da
música alta do vigia e à noite a zoada do bar roubava-lhe o sono. Era um
inferno!
Foi
reclamar ao proprietário que, para seu azar, era um homem grosseiro e alheio a
princípios da boa vizinhança. O vigia não estava fazendo nada de mais ao se
distrair ouvindo música e podia ouvi-la no volume que bem desejasse, respondeu indiferente
a Francisco, dando por encerrada a conversa. E como se não bastasse, nas noites
das quartas-feiras tinha um telão para a clientela assistir o futebol. Aí sim é
que aquilo lá virava um inferno quando alguém gritava “gol!”.
Mas Francisco, que era um tipo muito educado e reservado, não
tolerava desaforo algum, brigava por seus direitos com unhas e dentes. No dia
seguinte, foi no órgão da prefeitura responsável por aquele tipo de abuso e
formalizou uma queixa. Agora o dono do bar vai se ver com as autoridades,
profetizou satisfeito. Passados três longas semanas, finalmente o fiscal da prefeitura
deu as caras no local, mas os argumentos do proprietário foram mais convincentes,
qual barnabé não é sensível a uma boa explicação recheada de dinheiro? Francisco
aguardou até que ele saísse do bar para interpelá-lo e este veio com uma
explicação de fazer cair o queixo: não poderia fazer nada a respeito uma vez
que o estabelecimento não possuía alvará de funcionamento, não estava
legalizado, portanto, e como este não existia formalmente para a prefeitura, não
tinha como autuá-lo, pois o bar não existia! E foi-se embora satisfeito com os
bolsos cheios de dinheiro.
Indignado, Francisco resolveu voltar à prefeitura com a
intenção de resolver aquela questão a qualquer custo, desde, é claro, que fosse
de forma lícita, pois ele se pautava pela correção e honestidade, não iria
molhar a mão de ninguém para ter seus direitos reconhecidos, a paz e sossego
eram direitos fundamentais do cidadão. Como não podiam fazer nada contra um
estabelecimento clandestino? Que espécie de desculpa esfarrapada era aquela?
Desta vez, chamou seu amigo Josivaldo para acompanhá-lo na empreitada, este serviria
para lhe dar apoio moral. Francisco queria falar com algum funcionário superior,
alguém dotado de discernimento que percebesse o absurdo dito por aquele fiscal
corrupto e que tomasse as devidas providências. No dia seguinte, voltou ao órgão
municipal com Josivaldo a tiracolo.
Francisco não era o único a brigar por uma causa junto à prefeitura
e, por isso, a sua senha de atendimento era a de número 237 mas, para o seu
desespero, o placar estava ainda no número 56! Felizmente não esperaria todo
aquele tempo sozinho, pois Josivaldo estava ali ao seu lado para fazer-lhe
companhia, ficariam jogando conversa fora até que chegasse a sua vez. Pobre
Josivaldo, há coisas aborrecidas que só mesmo por um amigo do peito se faz, e
uma delas é fazer-lhe companhia numa fila de espera de uma repartição
burocrática da prefeitura. E quem tem amigos, espera um dia poder contar com
eles numa eventualidade. Foi quando Dagoberto, um amigo de Francisco dos tempos
de faculdade e companheiro de farras homéricas apareceu por detrás do balcão. Ao
vê-lo Francisco surpreendeu-se e logo concluindo que o grande Dagoberto deveria
ser um funcionário daquela repartição. Havia anos que ambos não se falavam e
Francisco foi lá cumprimentá-lo enquanto, de longe, sentado em seu lugar, ficou
Josivaldo assistindo a cena, torcendo para que Dagoberto se mostrasse útil e desse
um jeitinho para resolver o problema de Francisco, para que os dois fossem embora
dali o quanto antes.
Trocaram abraços calorosos, rizadas, tapinhas nas costas em
meio à conversa. Pelo entrosamento entre os dois, Josivaldo concluiu que o
problema já estava bem encaminhado, sentiu-se quase chegando de volta em casa.
— E aí, falou com ele? – quis saber Josivaldo ao retorno de
Francisco.
— Nem toquei no assunto. – respondeu Francisco desanimado.
— Mas por quê?
— Ele não me perguntou o que estava fazendo aqui. –
respondeu Francisco amuado.
— Que é isso! – exclamou Josivaldo perdendo a paciência. –
Era só contar o problema e pedir a ele para dar uma força!
— Mas se ele nem quis saber o
motivo porque eu estou aqui, é porque não está interessado em me ajudar, não
sou eu quem vai pedir favores! – disse Francisco dando por encerrada a questão,
com o orgulho ferido.
Josivaldo aborreceu-se com aquele comportamento de
Francisco, nunca vira tanto pudor assim. Os dois ficaram mudos sem trocar mais
palavras. O jeito era ficar aguardando até que chamassem o número 237 mas só Deus
sabia quando isto aconteceria, e tudo isso por causa de uma mera formalidade.
Rio Vermelho, 11 de
junho de 2012.
Um comentário:
Será que o Josivaldo , com o número 237 , já foi atendido ? Que azar, hein ?
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