O aparelho de celular veio dar
outro sentido à privacidade das pessoas que há tempos andava meio escondida. Nunca
se expôs tanto a própria intimidade em público quanto depois que este pequeno
telefone de bolso que se carrega para todos os lados, que ora serve para se
comunicar e ora para se usar como canivete suíço, passou a fazer parte de nosso
cotidiano e, ao se separem deste por alguns momentos, muitos de seus usuários sofrem
calafrios e ficam angustiados. Eu já vi como o peixe se debate ao ser tirado da
água e é assim também que se comporta um usuário sem o seu celular. Os olhos
ficam esbugalhados e parecem que vão pular para fora das órbitas a qualquer instante.
Nunca vi ninguém espumando nestes casos, mas com certeza deve haver registros
médicos a este respeito.
Voltando
à velha e desprestigiada privacidade, depois do celular, conversas antes reservadas
apenas aos ouvidos de seus interlocutores, são agora compartilhadas sem a menor
cerimônia com uma plateia de estranhos, na rua, na fila, no transporte público,
na mesa ao lado no restaurante, expondo estes ouvintes passivos a assuntos que não
lhes diz respeito e que certamente gostariam de ser poupados do absurdo de ter
de ouvi-los. A verdade é que são estes ouvintes que têm a sua privacidade invadida
pela conversa do indiscreto usuário de celular.
No entanto,
devo admitir um pecado, eu descaradamente presto atenção na conversa dos outros
e fico puto quando esta é interessante, mas os seus participantes falam muito
baixo. Dá pra falar um pouco mais alto aí? Este sussurro está me matando! Mas
ninguém pode me censurar por isso, do contrário, eu não teria material para
entretê-los com as minhas histórias.
Outro
dia, eu fui andando até a farmácia à procura de umas gotas mágicas que
aliviassem uma súbita dor de ouvido, quando testemunhei uma dessas conversas.
Eu seguia pelo passeio e, do sentido oposto, do outro lado da rua, vinha um
rapaz com o seu telefone celular colado ao ouvido. Cerca de vinte metros nos
separavam, mas eu tive a impressão de que ele falava ao pé do meu ouvido. Ele esbravejava
a plenos pulmões com a pessoa do outro lado da linha – celular também tem
linha? – que me pareceu ser uma mulher que tinha afeição por ele: “Velho, você me
liga toda semana pedindo pra sair comigo. (Este “velho” aqui em nada tem a ver
com a idade e é aplicado desta forma independente do sexo da pessoa, comumente
utilizado por aqueles portadores de deficiência de elocução. Outras pessoas, no
entanto, preferem utilizar o “rei” no lugar do “velho”, e, também neste caso,
em nada tem a ver com a provável estirpe nobre do interlocutor.) Velho, você fica
querendo me ver toda semana. Velho, eu já lhe disse pra você parar com isso.
Toda semana você me procura querendo sair comigo, velho. Não, de três em três
meses não, você liga é toda semana, tá maluca? Pô, velho, procure suas amigas e
me dá um tempo. Chame outra pessoa pra sair com você...” E foi quando eu entrei
na farmácia e perdi o resto do espetáculo.
Ah... Como eu adoraria ser procurado por uma mulher apaixonada
pelo menos uma vez por mês e ouvir dela juras de amor eterno. No entanto,
aquele rapaz só quer a pobre moça quando lhe é conveniente, que calhorda ele. Faltou-me
presença de espirito para ir até ele com o meu número anotado num papelzinho dizendo-lhe
algo assim: diga a ela que me procure neste número a qualquer hora do dia ou da
noite todos os dias da semana que será sempre bem tratada! (a menos que lhe
falte autoestima e o seu prazer seja o desprezo e a grosseria dos homens. Quanto
a isto, eu jamais poderei lhe ser útil.)
Rio Vermelho, 26 de
abril de 2014.