domingo, 27 de abril de 2014

A Privacidade Escancarada

O aparelho de celular veio dar outro sentido à privacidade das pessoas que há tempos andava meio escondida. Nunca se expôs tanto a própria intimidade em público quanto depois que este pequeno telefone de bolso que se carrega para todos os lados, que ora serve para se comunicar e ora para se usar como canivete suíço, passou a fazer parte de nosso cotidiano e, ao se separem deste por alguns momentos, muitos de seus usuários sofrem calafrios e ficam angustiados. Eu já vi como o peixe se debate ao ser tirado da água e é assim também que se comporta um usuário sem o seu celular. Os olhos ficam esbugalhados e parecem que vão pular para fora das órbitas a qualquer instante. Nunca vi ninguém espumando nestes casos, mas com certeza deve haver registros médicos a este respeito.
Voltando à velha e desprestigiada privacidade, depois do celular, conversas antes reservadas apenas aos ouvidos de seus interlocutores, são agora compartilhadas sem a menor cerimônia com uma plateia de estranhos, na rua, na fila, no transporte público, na mesa ao lado no restaurante, expondo estes ouvintes passivos a assuntos que não lhes diz respeito e que certamente gostariam de ser poupados do absurdo de ter de ouvi-los. A verdade é que são estes ouvintes que têm a sua privacidade invadida pela conversa do indiscreto usuário de celular.
No entanto, devo admitir um pecado, eu descaradamente presto atenção na conversa dos outros e fico puto quando esta é interessante, mas os seus participantes falam muito baixo. Dá pra falar um pouco mais alto aí? Este sussurro está me matando! Mas ninguém pode me censurar por isso, do contrário, eu não teria material para entretê-los com as minhas histórias.
Outro dia, eu fui andando até a farmácia à procura de umas gotas mágicas que aliviassem uma súbita dor de ouvido, quando testemunhei uma dessas conversas. Eu seguia pelo passeio e, do sentido oposto, do outro lado da rua, vinha um rapaz com o seu telefone celular colado ao ouvido. Cerca de vinte metros nos separavam, mas eu tive a impressão de que ele falava ao pé do meu ouvido. Ele esbravejava a plenos pulmões com a pessoa do outro lado da linha – celular também tem linha? – que me pareceu ser uma mulher que tinha afeição por ele: “Velho, você me liga toda semana pedindo pra sair comigo. (Este “velho” aqui em nada tem a ver com a idade e é aplicado desta forma independente do sexo da pessoa, comumente utilizado por aqueles portadores de deficiência de elocução. Outras pessoas, no entanto, preferem utilizar o “rei” no lugar do “velho”, e, também neste caso, em nada tem a ver com a provável estirpe nobre do interlocutor.) Velho, você fica querendo me ver toda semana. Velho, eu já lhe disse pra você parar com isso. Toda semana você me procura querendo sair comigo, velho. Não, de três em três meses não, você liga é toda semana, tá maluca? Pô, velho, procure suas amigas e me dá um tempo. Chame outra pessoa pra sair com você...” E foi quando eu entrei na farmácia e perdi o resto do espetáculo.
         Ah... Como eu adoraria ser procurado por uma mulher apaixonada pelo menos uma vez por mês e ouvir dela juras de amor eterno. No entanto, aquele rapaz só quer a pobre moça quando lhe é conveniente, que calhorda ele. Faltou-me presença de espirito para ir até ele com o meu número anotado num papelzinho dizendo-lhe algo assim: diga a ela que me procure neste número a qualquer hora do dia ou da noite todos os dias da semana que será sempre bem tratada! (a menos que lhe falte autoestima e o seu prazer seja o desprezo e a grosseria dos homens. Quanto a isto, eu jamais poderei lhe ser útil.)

Rio Vermelho, 26 de abril de 2014.

2 comentários:

Ramon disse...

Gostei da reflexão.
Muito boa.

Anônimo disse...

O que não faltam são pessoas querendo apenas serem maltratadas.
Henrique Fenocchio