Mia foi passar o Natal no belo sítio dos avós,
acompanhada da mãe. Mas ela não estava tão contente com a novidade, apesar de
que ela adorava os avós e o sítio era muito divertido. É que o pai era aviador,
e na noite de Natal, ia atravessar o Atlântico num longo voo levando
passageiros. Mas que graça tem em se passar a noite mais linda do ano dentro de
um avião, ela se perguntava, inconformada por não estar perto do pai. Como toda
criança, ela via magia na noite de Natal, sempre torcia para ganhar muitos
presentes e por comer muitas delicias na ceia natalina.
Os avós ficaram radiantes com a ideia de ter pela
primeira vez a neta na comemoração. E sabe como são os avós, não queriam perder
a oportunidade de mimá-la de todas as formas. Sendo Mia a sua única neta, tinham
poucas oportunidades de estarem juntos, separados que estavam pela longa
distância.
Quando Mia chegou ao sítio, foi uma alegria para todos
aquele reencontro, comemorado com um belo almoço com o prato preferido da filha,
frango ao molho pardo, e a sobremesa que a menina mais gostava, o famoso creme
de quatro camadas, receita da avó. Depois da confraternização, o avô foi com
Mia selar dois cavalos para fazerem juntos um passeio, e na estrabaria uma
surpresa a aguardava: um belo potro branco, presente do avô. Mia pulou de
alegria ao ser apresentada ao animal, e ela adocicou o coração do velho com beijos
e muitos obrigados.
— Ele já tem um nome, vovô?
— Não, querida. Está aguardando para que você lhe dê
um.
— Pronto, vai se chamar Branca de Neve! – proclamou
orgulhosa da escolha.
O doce avô torceu o nariz para aquele incomum nome
para um cavalo, e ainda mais sendo ele um macho, mas lançou à menina um sorriso
de aprovação, para não desapontá-la.
No sítio, Mia sentia o que era a liberdade, podia
andar para lá e para cá, sem os excessos de proteção dos pais, o campo não era
um lugar cheio de medos como a cidade grande. E num de seus passeios
investigativos pelo quintal da casa, ela deu de cara com um animal que nunca
tinha visto.
— Que pássaro é este, seu Saturnino? – perguntou ao
faz-tudo do sítio que alimentava o animal.
— Oxi, nunca viu? Este é um peru! – respondeu o rapaz
surpreso.
Até então, Mia só conhecia aquela versão encontrada no
freezer do supermercado, já pronta para ir ao forno. A visão da ave viva com a
sua exótica cabeça e plumagem a encantou.
— Nossa, é assim que é um peru? – bateu palminhas de
felicidade.
— E este é um dos grandes! – acrescentou Saturnino,
orgulhoso de o ter alimentado ao longo do ano, para aquela celebração.
— É grande mesmo! – disse a menina impressionada. –
Vou tirar uma foto agora mesmo.
Dito isto, foi correndo dentro de casa e voltou com a câmera.
Fotografou o bicho de todos os ângulos, para mostrar aos amigos a sua grande aventura.
Saturnino até registrou o momento em que ela ficou ao lado do animal, numa
demonstração de bravura. E como não podia deixar de ser, batizou de Leopoldo a nobre
ave.
Na manhã seguinte, o sol brilhava alegre anunciando uma
bela véspera de Natal. Mia acordou feliz e saltitante, ansiosa para que não
demorasse muito para a noite chegar para ela abrir seus presentes. Correu até a
árvore de Natal para contar os seus presentes, que eram muitos. Da mãe, do pai,
da avó, do avó, da madrinha, embrulhados em lindos papéis de presentes com fitas
coloridas. Ela aproximou cada caixa do ouvido e a balançou para tentar
adivinhar o que havia dentro. A que mais lhe despertou curiosidade foi uma
grande em formato de cilindro, embrulhada em papel vermelho brilhante e com um
grande laço de fita verde.
Depois do café, Mia foi procurar Leopoldo, o peru,
para lhe desejar bom dia.
— Hoje ele vai cumprir a missão dele. – disse
Saturnino com um sorriso enigmático ao ver a menina aproximar-se do peru. –
Você quer ver como se mata um peru para a ceia de Natal?
O convite chocou Mia. Como se podia matar um animal
tão belo? Mas depois ela pensou melhor, afinal, os perus congelados de
supermercado já tinham sido iguais ao Leopoldo quando estavam vivos, e se ele
não fizesse a parte dele, não haveria ceia de Natal à noite.
— Quero sim! – respondeu com inocente entusiasmo, a
imagem de um belo peru assado na travessa lhe veio à mente.
— Venha ver. – disse Saturnino.
O animal, em sua inocência, deixou-se pegar por aquele
que o tinha alimentado e cuidado desde então, ele não lhe faria nenhum mal. Saturnino,
em seguida, encheu um copo de cachaça que foi fazendo o animal beber às
colheradas.
— Para que isso, Saturnino?
— Isso é cachaça, minha querida. Ele não vai sentir
dor e a carne vai ficar uma macia, você vai ver!
— Nossa, eu não sabia disso. – disse Mia atenta a cada
gesto de Saturnino.
— Veja como ele está bebum! – ele disse soltando o animal
que ao sentir-se livre das mãos de Saturnino andou cambaleando feito um bêbado.
— Nossa, ele está bêbado mesmo! – disse Mia dando
palminhas de satisfação.
— Agora, é a parte que eu mais gosto! He, he, he –
disse Saturnino capturando o animal novamente e levando-o em seus braços enquanto
afagava a sua macia plumagem.
Ele carregou a ave até um tronco de árvore serrado e
posto na posição vertical como um altar, preparado para aquele sacrifício
natalino. E com uma mão, num gesto rápido, deitou-a sobre a parte plana, mantendo-a
quieta segurando-a pela cabeça, enquanto com a outra mão desferia um golpe
certeiro no pescoço com uma afiada machadinha que faiscava ao sol, surgida não
se sabe de onde. A cabeça rolou para o chão sem que o peru tivesse tempo de
gritar um “ai!”. Mia, assustada, soltou
um gritinho surpresa e levou as mãos até a boca ao ver o sangue do animal
esguichar pelo pescoço feito uma mangueira de jardim. Depois, Saturnino soltou
a ave no chão que andou para lá e para cá deixando um rastro de sangue até entregar-se
aos fatos, deitando inerte sobre a grama.
— Sangue! Sangue! – gritou Mia correndo até onde
estava o peru. – Ele não está se movendo, Saturnino.
— Ele morreu, minha filha. – disse Saturnino. – Agora
vá para casa e deixe eu fazer o resto para entregá-lo para dona Ana assá-lo
para a ceia de Natal.
Naquela noite, quando a avó pôs o peru diante do avô à
mesa, não parecia que algum dia ele tivesse tido uma cabeça. Jazia numa
travessa de porcelana branca numa resignação belamente corada, enfeitado com
frutas de compota ao redor.
Era difícil dizer qual dos dois estava mais corado, Mia
ou o peru, ambos tinham uma bela cor, ambos tinham a mesma aparência brilhante
e o mesmo ar esforçado. Mas o corado de Mia puxava para o vermelho e o do peru
para o tostado.
O avô pegou a faca e o garfo com um sorriso largo de
satisfação e começou a destrinchar o peru.
— Quem vai querer o primeiro pedaço? – perguntou
olhando solicito em volta da mesa?
Mia balançou a cabeça em sinal de negação, ficando
ainda mais corada.
Rio Vermelho, 25 de dezembro de 2016.
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