Ontem eu vi um gavião. Ele não
voava alto no céu azul, vergando as suas longas e poderosas asas, como o fazem
as aves de rapina. Sempre associo estas aves ao domínio de florestas e vastas
planícies onde, de uma altura espetacularmente alta, ela é capaz de ver até um
pequeno e incauto roedor, e lançar-se feito um dardo mortal em sua captura. No
entanto, aquela ave de rapina plainava sobre a estreita extensão de areia que hoje
leva o inusitado nome de Praia dos Complexados, aqui no Rio Vermelho.
Aquela visão me surpreendeu. Jamais
vi uma ave daquela magnitude no domínio que são próprios das gaivotas e outras
aves praianas, e que se alimentam de pequenos peixes e criaturas da areia.
Aquele gavião era majestoso. As suas asas longas eram negras e uma plumagem
branca com esparsas penas pretas cobria-lhe do peito ao pescoço como sinais. O
bico afiado era amarelo igual à gema do ovo e toda a sua cabeça era preta como
o capuz de um carrasco.
Mas o que mais me intrigava,
era o que uma ave como aquela fazia numa praia. Eu nunca tinha visto um gavião
na praia antes, pois sempre os associei às matas e aos campos. O gavião deu
meia volta plainando até pousar sobre a areia. E ainda com as asas abertas,
numa posição ameaçadora, soltou um agudo e alto pio. Algo lhe chamava a atenção
ali próximo. Seu olhar arguto deixava os seus nervos em alerta. A cabeça mal se
movia, focada no objeto de sua atenção. Em seguida, deu dois passos para frente,
ergueu as asas novamente e lançou-se para um pouco mais adiante. E eu estava lá
em cima da balaustrada observando curioso aquela sucessão de acontecimentos e
ao mesmo tempo maravilhado com a presença do gavião solitário na praia.
A poucos quilômetros do mar,
havia até a bem poucos anos uma região, que embora fosse povoada com casas, era
em sua maioria tomada por frondosas árvores. Hoje é uma selva de altos prédios
de apartamentos de alto luxo e o único verde que se vê são os dos carpetes no
hall de entrada ou dos vidros das janelas. A floresta que era habitada por
sabiás, curiós, cardeais, pintassilgos, pica-paus, corujas, gaviões, coelhos,
lagartos, macacos, saguis, sariguês, jiboias, sucuris, só existe na memória de
criança que eu fui, criada na liberdade das ruas do bairro, quando ia se
aventurar com a turma de amigos naquele lugar fascinante por causa de seu verde
no coração da cidade. O gavião trocou a floresta pela praia, e ao invés de
morar no galho mais alto da árvore mais alta, foi refugiar-se na cumeeira de
algum velho prédio nas redondezas. Triste sina.
Novamente o gavião abriu as
asas e lançou-se sobre a presa que estava na areia à sua frente. Não pude
perceber que bicho se tratava, pois, ao contrário da ave de rapina, a minha
visão não é assim tão perfeita. Ele atacou-a com bicadas mortais antes de
agarra-la com uma de suas presas e levantar voo. Voou baixo sobre o espelho da
água do mar, margeando sempre a praia, ganhando altura, batendo suas asas
lentamente como se fosse o senhor do tempo e do espaço. Por um breve instante,
a minha visão se confundiu entre a ave e a superfície da água e eu o perdi de
vista. Mas depois ele reapareceu num ponto mais alto e quando chegou próximo à igrejinha
de Santana, ele fez uma curva em direção à terra e sumiu entre os casarões
velhos e prédios do largo de Santana. Nunca mais o vi.
Rio Vermelho, 2 de maio
de 2017
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