quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Papo canino

 Depois do doloroso rompimento após dois anos de namoro, ela não soube que destino dar ao buldogue que ganhara de presente — um cão tão feio e deselegante — quando completaram o primeiro ano. Ela até pensou em recusá-lo, mas a paixão que sentia pelo namorado e sua vontade de sempre agradá-lo a impediu de ser sincera. Agora ela se arrependia amargamente de não ter devolvido o animal quando o namorado lhe comunicara solenemente que tudo estava acabado entre eles. O sentimento de prudência a fez desistir da ideia, por receio de parecer mesquinha ou vingativa. Entretanto, toda vez que olhava para o cão feioso, se lembrava do ex-namorado, cuja pessoa, ela, magoada, tentava esquecer para sempre.

Apesar de sua feiura canina, de seu corpo atarracado e andar desajeitado, o cão era um animal doce e afetuoso, e ela decidiu mantê-lo, a despeito de suas reservas. Mas o que ela mais queria era arranjar um novo namorado para esquecer o outro que a deixara. Ela não sabia viver sem um homem, um homem era tão bom. Ela se sentia completada, quando estava amando.

Um dia ela resolveu levar o cão para passear, estava cheia de ficar em casa remoendo as lembranças de um amor que passou. Já era hora de virar a página, trocar o disco, partir para outro. Embonecou-se toda, pôs a coleira no cão e foi caminhar no calçadão entre a praia de Santana e a da Paciência. Era o primeiro dia de primavera, o fim de tarde estava esplendoroso e logo o sol ia sumir por traz dos coqueiros do morro da Sereia em uma hora.

Naquela tarde ela percebera que não fora a única a ter semelhante ideia. O calçadão fervilhava de ciclistas, skatistas, corredores e de gente saudável demais para praticar qualquer esporte, e, sim, claro, os habituais donos de cachorro e suas crias, alguns muito civilizados, atentos em recolher os dejetos de seus preciosos animais, e outros, nem tanto, afinal entendem que a rua é um lugar público que cada um faz o que quiser, e danem-se quem não gostar! Importante dizer que todos usavam máscaras para se protegerem do vírus maldito, até alguns cães.

Sentado à balaustrada, havia um belo rapaz, que ao ver a moça caminhando com o seu buldogue, fez sinais insistentes, com uma expressão alegre, para que ela se aproximasse. A moça se sentiu lisonjeada, não esperava arranjar um paquera logo na primeira saída, e muito menos assim que parecia ser tão bonito — que a máscara, além de proteger do vírus, também tem a vantagem de esconder a feiura. — Embora os ensinamentos para que não desse ousadia a desconhecidos fosse uma orientação materna que sempre observara, seu coração despedaçado dizia-lhe para chegar próximo ao rapaz e deixar de lado aquele conselho  antiquado. O rapaz olhou para o cão com excitamento e perguntou à moça que se aproximava.

— Posso conversar com o seu cão?

O incomum pedido pegou de surpresa a moça. Se aquilo era uma cantada, era muito original, ela pensou. O rapaz nem esperou pela resposta. Abaixou-se e fez uma festa para o animal. O cão não fez a menor cerimônia, retribuiu as demonstrações de afeto do desconhecido com lambidas em seu rosto e balançou o rabo.

— E ai, meu velho, como está você? Passeando com a sua mãe? — o rapaz disse, num tom afetuoso.

A moça ficou pasma, o rapaz queria mesmo conversar com o cão! Mais chocada ainda ficou quando o ouviu referir-se a ela como mãe do animal. Aquele tipo de tratamento, embora muito comum entre proprietários de animais, não lhe agradou nem um pouco, sentiu-se uma aberração. Em um segundo, ela tomou antipatia pelo rapaz, confundi-la com uma cadela era demais. O rapaz justificou todo aquele seu entusiasmo, levantando a cabeça e olhando para a moça.

— Eu tive um igualzinho a ele. O pobrezinho morreu faz um ano — disse emocionado, com os olhos húmidos.

— Eu lamento a sua perda. — Ela esforçou-se para demonstrar empatia.

— Estou procurando outro igual, mas é tão difícil encontrar dessa raça — ele explicou.

— É mesmo? — ela disse pensativa. — Esse tem apenas um ano.

— Sim, eu percebi que ele ainda é um meninão. — Voltou-se para o cão. — Você não é um meninão? Você não é um meninão lindo? — disse o rapaz enquanto fazia cócegas no bicho, que se deitou de patas para cima, para, em seguida, receber afagos na barriga.

Quem dera ele fizesse o mesmo comigo, pensou a moça, enquanto lhe vinha à mente uma ideia.

— Você pode ficar com ele, se você quiser. Eu estava mesmo procurando alguém para adotá-lo, pois no lugar para onde vou me mudar não é permitido animais — ela disse, satisfeita com sua engenhosidade.

— Está falando sério?

— Estou sim. Acho que foi o destino que fez com que nos encontrássemos hoje. E vendo como você se afeiçoou a ele e parece que foi recíproco, fico mais tranquila por o estar dando à pessoa certa.

— Tem certeza que quer fazer isso? — perguntou o rapaz, incrédulo.

— Absoluta. E pode levá-lo para casa agora mesmo — disse a moça aliviada, por ter se livrado do cão e da última lembrança do seu antigo namorado.

 

Rio Vermelho, 22 de setembro de 2020.

      

6 comentários:

Anônimo disse...

final feliz!! muito boa história

Anônimo disse...

Como mãe de um, sei não, a gente se apega tanto. Não me separaria do meu Jake!

Blogue do Pita disse...

Sou um cachorreiro incondicional , mas este negócio pai, mãe, vovô e vovó, além de inviável pela natureza , é um treco antipático . Pita

Anônimo disse...

Parabéns.
Você coloca o leitor no lugar onde a história acontece.
Grande abraço!
Irema Santos Silva

Anônimo disse...

Hahahahhahahahaha dondoca azarada!!!
Prefiro gatos, não precisa levar pra passear, fazem as necessidades em casa mesmo e eles não tem odor, porque eles mesmos se dão banho todo dia, o pior dos gatos é que algumas vezes regurgitam.bolas se pêlo, que comem ao se lamberem pra fazer a sua higiene kkkkkk
Ivana Braga

Anônimo disse...

Cristiano, essa sua capacidade de observar o comportamento humano é fantástica! Parabéns pela narrativa
Carmela Talento