domingo, 19 de junho de 2011

Sobre pedaços de mamão e banana... e a natureza.

Para D.G.M.C. com carinho.

Fui subitamente retirado de meu sono certa manhã, antes da hora de eu habitualmente me por de pé. Justamente neste que é o mais gostoso dos sonos, por que este é o intervalo entre a vigília e a consciência, o que nos faz sentir uma agradável sensação de preguiça e de desejo de prolongar aquele momento de bem estar até o infinito. Acordei porque alguém ousava dar batidas em algum lugar lá fora pelas cercanias. Eram como suaves marteladas sobre a madeira verde, mas ainda assim irritavam. Batia duas vezes e parava, e depois reiniciava com uma só batida de cada vez entre breves intervalos. Eram batidas irregulares que começavam e se interrompiam, para depois de alguns instantes reiniciarem novamente, alguém lá fora não sabia cravar um prego. Praguejei contra aquele miserável que resolvera trabalhar naquela preciosa hora da manhã. E como o renitente barulho parecia não ter fim, levantei-me, a contragosto, para ver o que se passava e me arrastei até a janela do meu quarto, que naquela noite tinha dormido fechada, o que contrariava o meu hábito de deixa-la escancarada. Eis que me surpreendi ao ver a figura do meu inconveniente martelador pousado no parapeito bicando o vidro da janela, um pica-pau. Sem saber o que fazer, uma vez que qualquer reclamação verbal seria inútil dada à falta de compreensão que um pica-pau tem da linguagem humana, mesmo que este fosse um poliglota, resolvi apenas abrir a janela para que ele não bicasse mais o vidro. Dei o assunto por resolvido e voltei para onde eu estava e tentei voltar ao sono merecido.

Acordo todas as manhãs com o gorjeio dos pássaros anunciado o início de um novo dia, apesar de eu morar no coração da cidade e não no meio do mato. Pássaros e outros pequenos seres do mundo animal visitam livremente a nossa casa e vem e se vão a toda hora e por isso me sinto um bem afortunado por tais visitas. Nunca lhes faltam pedaços de mamão ou banana espalhados pelo jardim para saudar tão ilustres visitantes, graças aos cuidados de minha mãe que faz assim desde que me entendo por gente. Meu pai, quando andava nesta terra, tinha o mesmo hábito e não me recordo se isto foi invenção dele ou dela, coisa de gente que nasceu e se criou em fazenda. Os passarinhos são os primeiros que chegam, fazem o seu banquete até se fartarem e depois alçam voo para outras vizinhanças, em seguida, aparecem bandos de saguins que vem trepando pelos fios elétricos e depois pulam para as árvores aqui de casa e vão descendo de galho em galho até alcançar os pedaços das frutas bicadas que depois de comer bastante vão se embora para que lagartixas e calangos tenham a sua vez, sim porque do homem até as diminutas formigas comem daquelas frutas. À noite, no silêncio e no breu entre os galhos das árvores e plantas, surgem silenciosamente morcegos frugívoros que põem fim ao que sobrou, nada é desperdiçado nesta cadeia alimentar formidável.

Eu nem bem pregara os olhos de novo e senti sobre o rosto algo caído do teto e ao olhar procurando pelo o que se passava lá em cima me surpreendi com o mesmo pica-pau da janela fazendo seu ninho entre as ferragens da luminária logo acima de minha cama. Não quis entrar numa polêmica com a ave e achei mais sensato apenas empurrar minha cama para o outro lado e tentar continuar o meu sono. Os bichos circulam livremente por fora e dentro de casa, no meu quarto entrou este e fez um ninho mas não foi o único. Na ausência de gente na cozinha, pela porta que dá para o quintal, entram pássaros e lagartixas procurando por migalhas; os saguins arriscam-se até o peitoril da janela onde alguém esqueceu um pedaço de fruta ou biscoito. Até os morcegos erram o caminho no meio da noite e voam janela a dentro sobre nossas cabeças na sala procurando pela porta de saída. Certa noite, vi maravilhado uma imensa coruja branca empoleirada num galho da árvore em frente à minha janela, que alçou voo com suas compridas asas ao me olhar olho no olho. Acho que isto é o mais bucólico que se pode conseguir ao se viver num centro urbano onde, aqui em casa, gente e bichos convivem harmoniosamente, desfrutando da presença do outro, nós humanos por termos o privilégio da companhia de criaturinhas de Deus e elas por terem quem as alimente com frutas frescas.

Aquela noite, dormi de janela aberta para não ser acordado para abri-la de madrugada pelo pica-pau. Mas quando me levantei, percebi que ele não aparecera. Não veio também no dia seguinte, o que me deixou preocupado com a sua súbita ausência, será que ele se ofendeu com alguma coisa ou foi o meu ronco que o afugentou? Ou será que ele mudou seu horário de trabalho? De uma coisa eu estava certo, ele não voltara mais, apesar de minha janela estar sempre aberta para ele e ele ser bem-vindo. Percebi que a construção de seu ninho tinha sido deixada para trás inacabada. Lamentei e fiquei matutando o que teria acontecido ao bichinho.

Quando eu venho do banho de mar, tenho por hábito de tirar o sal do corpo no quartinho lá dos fundos por que a água de lá cai deliciosamente forte e fria como uma bica e completa toda a experiência de uma agradável manhã na praia. Ao abrir a torneira, a água bateu forte sobre o piso fazendo um estardalhaço e provocando uma agitação sobre a minha cabeça. Olhei para cima e vi no buraco da fiação elétrica onde fica o bocal da luz um ninho habitado e em volta dele voava o famoso pica-pau. Imediatamente fechei a água e saí de lá para não assustar aquela pequena família. O mistério do sumiço do pica-pau estava desvendado, que foi construir o seu ninho onde houvesse mais privacidade. Enquanto escrevo estas mal traçadas linhas, no final de uma tarde de domingo depois da chuva, ouço um trinado ao longe... bem-te-vi, bem-te-vi!

Rio Vermelho, 19 de junho de 2011.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sobre germes e colheres de pau.

Assisti a uma cena curiosa. Um senhor lavava as mãos. Mas ele o fazia de forma tão diligente e cuidadosa que não pude deixar de prestar atenção naquele gesto que era mais que um corriqueiro cuidado com a higiene pessoal. Primeiro, ele tirou do pulso o pesado relógio de metal que pousou cuidadosamente sobre a bancada da pia e, em seguida, encheu com sabonete líquido as mãos que se uniram em concha debaixo da torneira que jorrava água em abundância. Esfregou uma mão contra a outra demoradamente e depois cada dedo vigorosamente para, em seguida, ensaboar os braços até a altura dos cotovelos e depois enxaguá-los. Ao final, exibiu uma expressão de satisfação ao se secar num daqueles secadores barulhentos de ar quente. Eu diria que aquele senhor seria um neurocirurgião prestes a entrar na sala de cirurgia para realizar o milagre de salvar mais uma vida, se aquela patética cena não tivesse acontecido num banheiro de um shopping center.

Como comprovei em seguida, aquele senhor assistira uma recente reportagem de TV sobre germes e que ensinava como lavar as mãos corretamente. Ele não lava as mãos de outra maneira desde então, contou-me satisfeito. Acho engraçado como a televisão tem certa influência sobre a vida das pessoas e como elas acreditam em tudo o que assistem. Ora, a humanidade chegou até aqui sem precisar gastar tanta água e sabão para manter as mãos limpas e nem por isso sumiu da face da terra. O mundo nunca esteve tão asséptico, não desde que a indústria de material de higiene e limpeza descobriu as temíveis bactérias. Todos estão preocupados em acabar com elas onde quer que elas estejam, e haja bactericidas e água!

Existe, hoje em dia, uma infinidade de produtos de limpeza domésticos oferecidos nas prateleiras de supermercados que prometem nos livrar dos incômodos germes e bactérias, desde o tradicional sabão até gels perfumados em embalagens sofisticadas ou sprays que vão caçá-los flutuando no ar. Nunca o aparato foi tão grande e variado para combater estes invisíveis inimigos e as pessoas estiveram tão preocupadas em se livrar deles, como se estes fossem um incômodo que realmente perturbasse o nosso sossego e minasse a saúde. Faltou ainda inventarem um germicida para o beijo na boca, sim porque esta expressão amorosa de troca de salivas deve, indubitavelmente, conter germes e outro para o sexo buco-genital, por razões óbvias, é claro. Imagine a cena nada sensual, os amantes, pouco antes de se beijarem, gargarejam o produto que é cuspido e depois tascam o beijo! E quanto à outra forma... bem, dá pra imaginar, né? Eu, particularmente acho que essas coisas são como o sarapatel, se lavar demais, perde a graça...

Eu fico me perguntando o porquê de tanta preocupação com as pobres das bactérias e germes – elas são a mesma pessoa com nomes diferentes? – e se são elas mesmo que nos preocupam tanto. Não me refiro às boas práticas com a higiene mas ao zelo excessivo que afeta nossa rotina e nos deixa tão preocupados. Sem nos darmos conta, tais preocupações vem nos tornando indivíduos assépticos que evitam de se tocar para não se contaminar, começamos a desenvolver nojo por tudo. Aonde iremos parar com tanta limpeza? Do que temos tanto medo, mesmo?

E nesta febre contra os temíveis germes e bactérias, um restaurante abriu suas portas com uma novidade bizarra. Armou todos os garçons com colheres de pau que serviam como extensão de suas mãos ao servir a clientela, pareciam o Edward Mãos de Tesouras. Deste modo, suas mãos infectadas com o inimigo não tocariam em nada. Fui lá almoçar, o lugar estava estalando de novo. Pedi um ‘peixe delícia’, que é aquele que vem acompanhado de bananas fritas por que eu gosto muito dessa combinação. Ao provar o peixe, percebi pelo sabor que era um de água doce. E para confirmar minhas suspeitas, perguntei ao garçom que me servira e passava batido por minha mesa. “Pirarucu?” apontei para o prato, ao que ele respondeu sem parar: “Tiraram, sim, senhor!”

Ao final da deliciosa refeição, fiz um elogio.

— A comida estava uma delícia!

— Obrigado senhor, vou repassar esta informação ao nosso chef.

— Fiquei impressionado com a habilidade de vocês para manusear tudo com estas colheres de pau, vocês são muito higiênicos, nunca vi igual.

— O patrão é muito exigente quanto à limpeza. Imagine o senhor que até temos um cordãozinho amarrado no zíper da calça para não tocá-lo com a mão ao ir ao banheiro.

— É mesmo? Hum... E como é que vocês fazem para colocar o pau de volta dentro da calça? - perguntei educadamente.

—Ah! Para isto, usamos as colheres de pau! — respondeu orgulhoso o homem.

Rio Vermelho, 8 de junho de 2011.

sábado, 28 de maio de 2011

Um espécimen em extinção

Está cada dia mais difícil de se encontrar uma empregada doméstica que seja, boa ou ruim. Segundo o ex-deputado Delfim Neto, “quem teve este animal, teve. Quem não teve, nunca mais vai ter.”, que o brasileiro não sabe viver sem esta comodidade que remonta os tempos das senzalas. Em pleno século XXI e passados mais de 120 anos da Abolição, ainda carregamos o velho ranço daqueles obscuros tempos, que é o de sempre termos à nossa mão um servo ao nosso bel dispor dentro de nossa própria casa. Alguém que não apenas cozinhe, mas dê também uma geral na casa, vá pegar as crianças na escola e dê o almoço delas, e as eduque – e as ature - um pouco até a hora dos responsáveis reassumirem a paternidade. E seja conselheira sentimental da filha adolescente que está passando por uma fase difícil, pois tem dúvidas se perde a virgindade com a sua melhor amiga ou com o namorado. Que lave umas roupinhas e passe o ferro em outras, e pregue o botão de uma camisa do doutor fulano. Que vá até o banco pagar umas contas ou acompanhe a madame ao supermercado, para empurrar o carrinho porque ela não consegue tirar os produtos da prateleira, pôr no carrinho e empurrá-lo ao mesmo tempo, ou a acompanhe na ida à feira carregando as pesadas sacolas feito uma mula de carga, enquanto a digníssima já tem trabalho demais carregando a sua Louis Vuitton. E se não for pedir muito, que jogue uma água no carro do patrão e dê uma boa esfregada nos tapetes que estão precisando. Mas o almoço deve sempre ficar pronto ao meio dia. A figura da empregada domestica está tão arraigada em nossa sociedade que até influencia a arquitetura de prédios residenciais ao estabelecer um certo elevador de serviço que evita misturar empregadas com finos moradores, ou cria um cubículo apertado nos fundos da habitação, tendo apenas uma fenda na parede em lugar da janela — onde ninguém de coração ousaria por o próprio cão — e o batizou candidamente de quarto de empregada.

A senhora JR mandou vir da roça uma “menina” para ajudá-la no serviço de casa, pois não dava conta de ser mãe de três lindas crianças, esposa maravilhosa, dona de casa perfeita, funcionária publica exemplar e ela mesma em constante crise existencial. Semanas depois, a “menina” chegou. Chamava-se Daiana Aparecida. Era do tipo tímida e calada, mas logo demonstrou ser muito trabalhadora e rápida de aprender o serviço. Não tinha mais que vinte anos e a compleição de seu corpo era de uma mulher saudável e forte. E se por falar em seu corpo, este merecia atenção especial, pois a moça era uma delicia de se por os olhos... e as mãos, também. Sua pele era macia e delicada como a do figo e da cor do açúcar queimado. Os olhos eram grandes e da cor de amêndoa, e os cabelos, estes eram sarará, assanhados como os de alguém que tivesse sido atingido por um raio. Seu cheiro, hummm... era delicioso como o de terra e palha molhada. Ela logo chamou a atenção de tudo quanto era marmanjo que tinha o prazer e a sorte de cruzar em seu caminho, mas não dava bola pra nenhum deles pois não era moça disso, e nem daquilo. Ao contrário, ela era muito da caseira, gostava de trabalhar ouvindo o ràdio e assistia a tevê quando lhe sobrava algum tempo, pois serviço era o que não lhe faltava. Seu ‘job description’ incluía desde tudo até quase tudo, de modo que a patroa, ao voltar para casa à noite, encontrava a casa toda limpa e cheirosa, o chão encerado, a cozinha brilhando com um jantar delicioso — a "menina" encontrou um exemplar do livro de culinária “Dona Benta” e nele mergulhou no mundo dos sabores e temperos — aguardado sobre o fogão para ser consumido pela família, e as crianças de banho tomado depois de chegarem da escola. Tudo parecia perfeito e todos estavam felizes. A senhora JR se sentia como se tivesse ganhado o prêmio na "Mega sena" e, até o marido, que era um sujeito meio carrancudo, andava com um sorriso de satisfação nos lábios.

Sobre este sorriso dele, ela começou a ficar intrigada quando ele passou a não solicitar os seus favores com a frequência que lhe era habitual e quando isto acontecia ela percebeu que havia uma certa escassez do produto de seu afeto. Será que havia alguma coisa com ele, um problema de trabalho que ele não lhe revelava, talvez? Mas ele parecia tão bem humorado ultimamente, talvez fosse outra coisa. E essa outra coisa ficou martelando na cabeça da madame até que um certo dia ela achou por bem não tomar seu comprimido para insônia pois queria estar bem acordada para investigar o que se passava sob o seu teto depois que tombava no sono como efeito do poderoso sonífero.

Como era de se esperar, naquela noite, a insônia veio fazer companhia às preocupações da senhora JR. Ao invés de se sentar na cama para ler um livro, como sempre fazia neste caso, ou ir na sala ver um daqueles bons programas evangélicos de madrugada a dentro que tanto fazem bem para chamar o sono, ela, no entanto, ficou quietinha na cama fingindo-se de morta. E no meio da noite, o doutor fulano chamou suavemente pelo seu nome e como ela não respondesse, ele levantou-se e foi, na pontinha dos pés, para fora do quarto. A senhora JR deixou o tempo passar e como ele demorasse, foi investigar o motivo da delonga. Não o encontrou vendo tevê, nem em seu escritório e tão pouco na cozinha. Mas percebeu uma estanha agitação no quartinho dos fundos. Pelos sons familiares que vinham lá de dentro ou alguém estava sofrendo muito ou se divertindo horrores. Para ter certeza do que seus ouvidos lhe diziam, ela pôs a mão na maçaneta e a girou escancarando a porta. E o que presenciou a deixou indignada. Lhes pouparei dos detalhes sórdidos daquela cena imoral que remonta os tempos do senhorzinho satisfazendo os seus lascivos desejos na senzala. Um misto de revolta e ciúmes dominou a senhora JR ao ver que do jeito que seu esposo fazia na “menina”, ele jamais tinha feito ou tentado nela, e nem nenhuma freira do Colégio Sagrado Coração lhe avisara que aquilo era ilegal ou não, mas de qualquer forma, uma mulher respeitável como ela nunca se rebaixaria a tanto, embora não lhe fizesse mal algum dia experimentar aquilo pelo menos uma vez por ano, em alguma data comemorativa, mas que não fosse em nenhuma data Santa que aquilo seria uma heresia.

A senhora JR sofreu com aquela punhalada, logo executada sob o teto sagrado de seu lar, logo a “menina”, tão trabalhadora e eficiente, sua melhor empregada, que nunca na vida ela iria encontrar outra igual, ainda mais que mulher nenhuma queria mais trabalhar como doméstica. Como é que agora ela ia se virar sem a sua excelente serviçal? Vislumbrou o futuro e viu o caos em sua vidinha de madame de classe média sem uma criada. Mas ela era uma mulher de caráter e de decisão, faria o que era o moralmente correto mesmo que isto lhe causasse algum sofrimento. Não teve dúvidas, mandou o marido embora! Que homem como ele era o que mais se encontrava, mas uma boa doméstica era insubstituível.
Rio Vermelho, 27 de maio de 2011.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Adônis ao contrario

A minha feiura é extrema e a tal ponto de meus olhos se recusarem a acreditar no que estão vendo e, não é à toa que quase nunca me olho ao espelho, para não ter de encara-la todo santo dia. Ela chega a ser antiecológica e, por isso, vivo com o temor de ser multado pelo IBAMA por agressão ao meio ambiente. Entretanto, eu jamais moveria um único dedo para modificar este meu flagelo, sob pena de eu me transformar em outra pessoa ou num embuste. Ele faz parte da minha historia de vida e identidade, não tenho como reescreve-la. Seria como tentar apagar o meu passado, quando muito, eu conseguiria empurrá-lo para debaixo do tapete, mas como não sou nenhum presidente da republica ou político, deixo como está. Se a pessoa não consegue aceitar como ela é, engana-se ao pensar que algumas intervenções cosméticas irão realmente melhorá-la, não, pelo menos, como pessoa. A bondade, a humanidade, a correção de uma pessoa estão escondidos debaixo de sua epiderme e, poucos são aqueles privilegiados que têm o dom de enxergá-la.

Não tenho hábito de tomar o café da manhã assistindo TV, porque acho isso uma péssima maneira de se começar o dia, assistindo noticiários que primam pelo mau gosto ou enfadonhos programas que se propõem direcionados ao publico feminino, que ensinam a fazer pratos maravilhosos aproveitando as sobras do dia anterior ou dão dicas de economia domestica inúteis. Neste dia, porém, encontrei o aparelho ligado quando cheguei na sala e não me dei ao trabalho de desliga-lo enquanto comia o meu desjejum. Enquanto devorava meus ovos mexidos com crocantes torradas integrais, acompanhados de um delicioso e natural suco de laranja em caixa, ouvia a voz de um rapaz sendo entrevistado e, só depois de algum tempo fixei meu olhar no aparelho e minha atenção no programa, não tanto por ser um assunto de interesse, mas por sua bizarrice.

O entrevistado daquela gloriosa manhã era um desses ratos de academia, tão comuns nos dias de hoje. Seu corpo, muito atlético, era coberto por uma fina camisa regata para deixar à mostra a musculatura estufada e dura. O vocabulário era limitado, mas perfeitamente compreensível sem a ajuda de um interprete. Seu rosto tinha um olhar sereno e um sorriso que lhe conferia uma expressão meio parva. Na verdade, havia algo de muito perfeito e ao mesmo tempo pobre de expressão em seu rosto que me fazia lembrar as capas de revistas masculinas nas quais celebridades sofrem uma maquiagem virtual que nos faz ter duvidas de quem realmente sejam aquelas pessoas. Com redobrado orgulho ele contava sobre as intervenções que fez no corpo para transformar o raquítico e tímido jovem da foto que era exibida enquanto ele falava diante das câmeras, naquele monumento atlético no qual ele fora transformado.

Assim como muitas mulheres recorrem a implantes nos seios para ficarem mais exuberantes, ele fizera semelhante, poupando suor na academia, aumentou o tórax, disse sorridente. Parecia aquela sinistra e deliciosa ave “chester”, de peito avantajado e estufado que comemos na ceia natalina e que não existe na natureza e sabe-se lá de que mundo é que veio. Mas, para que o resultado de sua intervenção do peito não ficasse desproporcional com o resto do corpo, aplicou, também, silicone nas coxas para engrossa-las, na batata da perna e na bunda – no lado exterior dela, me refiro - que esta era muito minguada e não chamava a devida atenção, explicou. Eu nunca havia reparado, antes, em bunda de homem, mas agora ao ver uma redonda e bem torneada vou suspeitar que seja de silicone. Quando o seu corpo adquiriu as formas de um Adônis da modernidade, ele partiu para dar um jeito no rosto que não era feio assim, mas apenas não combinava com a expressão de “bad-boy” que queria causar com a sua nova imagem. Diminuiu a testa, não compreendi exatamente como, mas, talvez isto seja uma operação simples quando se tem o crânio oco como o dele. Acrescentou mais um pouco de silicone ao redor do queixo e estava pronto! Ficou com cara de alguém que sofria de constipação intestinal.

Meus caros, muitas horas de academia foram poupadas com as manobras do mestre do bisturi. Tanto esforço assim ele explicava, era para ingressar no mundo do cinema como ator de filmes de ação que, como todos sabem, o Brasil é um dos maiores produtores do mundo. Passados três anos de sua metamorfose, ainda não pintou aquele convite para fazer o tal filme e também nenhum outro. Mas ele está muito satisfeito com o seu novo corpo e garante que sua vida mudou para melhor. Enquanto aguarda ser “descoberto”, exibe o seu corpinho todas as sextas e sábados à noite como “go go boy” numa boate no centro de São Paulo.

Eu, por outro lado, devo admitir que eu não fui totalmente honesto com vocês. Sou um ser humano todo cheio de defeitos e me deixei levar pela vaidade... Certa vez, li um artigo de uma psicóloga conclamando a mulherada a namorar os barrigudos e discorria em seu texto sobre todas as vantagens e utilidades desse peculiar gosto. Que homens de verdade são os barrigudos, estes são fofinhos, confortáveis de deitar em cima e, se sabem cozinhar, não deviam deixar escapa-los pois dariam prazer tanto na mesa como na cama! Não são exibicionistas, estão sempre bem humorados porque não fazem dieta alguma e são ótimos amantes. Eu me animei, já estava cansado de minha vida de atleta malhando em academia, da minha barriga modelo tanquinho e de todas aquelas dietas. Fui num especialista e paguei para que ele implantasse em mim uma bela barriga de silicone estilo barril de cerveja! Nunca fiquei tão feliz na vida. Agora, só estou esperando para ser descoberto pela mulherada, mas esta parte terá de esperar até a próxima encarnação, e que não está muito longe!

Rio Vermelho, 17 de maio de 2011.

terça-feira, 10 de maio de 2011

O Don Juan de Laranjeiras

Sou fã de mulheres que transgridem normas sociais, interpretando ao pé da letra e sem rodeios a tão falada igualdade entre os sexos e, ainda, a colocando em prática dia-a-dia, desprezando os papeis convencionais que a sociedade lhes impingiu. São estas mulheres que transformam o mundo e abrem o caminho para as menos aguerridas. A igualdade entre os sexos deveria, era sim, se extrapolar para além dos direitos trabalhistas e do mercado de trabalho, para ser de verdade mesmo.
Certa vez, num passado recente, uma moça me abordou no balcão de um bar e se ofereceu para me pagar uma cerveja. Aceitei desconfiado, que nunca ninguém jamais se ofereceu para me pagar coisa alguma até então e, quando geralmente uma mulher bonita me aborda, ou é para pedir a direção de uma rua ou para me avisar que o cadarço do meu tênis está solto. Mas, para minha alegria, depois de um papo agradável, ela pediu o meu numero de telefone dizendo que gostaria de me convidar para dar um passeio de carro qualquer dia. Vocês devem estar pensando que eu entrei numa fria, mas eu tive a mesma dúvida. Antes de lhe passar o meu número, entretanto, quis me certificar se ela era uma mulher nascida de berço, sabe. Há muita pirataria transitando por aí, como sabem, e a menos que os chineses tenham feito um cópia perfeita, aquela era uma mulher tão autentica como um bom uísque escocês, que não causa dor de cabeça e nem arrependimento na manhã seguinte!
Eu lhes falarei sobre Corina, uma bela e voluntariosa e pálida jovem de olhar aflito e expressão sisuda que encontrei numa agradável manhã na São Salvador, no Flamengo, embora residisse em Laranjeiras, não muito distante dali. Sentei-me ao seu lado num banco de alvenaria, para ouvir a costumeira sessão de chorinho que acontece na praça aos domingos... Corina sentia-se como se fosse a única mulher no mundo quando estava em companhia de JR porque realmente ele sabia como faze-la sentir-se uma pessoa especial. Ele lhe enchia de mimos, carinhos e elogios, levava-a para jantar em lugares da moda, chamava-a de modos gentis e carinhosos como minha gatinha, minha linda e coisas desse gênero que embevecem qualquer alma feminina, enfim, não tinha como resistir a seus encantos. Depois que conheceu JR, o mundo se tornou um lugar incrivelmente maravilhoso, cada folha, cada galho, cada criaturinha viva parecia um pequeno milagre, tudo à sua volta estava subitamente cheio de significados ocultos que ela jamais reconhecera antes. A vida parecia perfeita para Corina que jurava para si mesma ter, finalmente, encontrado o homem de sua vida. Os primeiros meses de namoro foram como num sonho e, embora eles não se encontrassem com tanta frequência, porque JR era um sujeito muito ocupado, combinaram, então, que as quintas-feiras, chovesse ou fizesse sol, teriam a metade do dia só para eles, graças à facilidade de ambos trabalharem para si próprios. E assim, a vida transcorria feliz feito um rio deslizando lacidamente entre campos verdes e floridos.
Entretanto, não demorou muito para Corina perceber que algo de estranho havia com o seu namorado, quanto às suas obrigações masculinas. Seu desempenho oscilava a cada encontro entre “maravilhoso” e “isso pode acontecer a qualquer um”! Havia dias que ele era o todo poderoso, uma verdadeira rocha incansável que por vezes a levava a pedir arrego. Outras vezes, no entanto, ele cansava antes mesmo de começar, mal aplacando a gula da apaixonada amada. Corina foi tomada de crescente preocupação e, embora tentasse conversar com ele sobre o assunto, com a devida cautela evitando melindrá-lo, ele se esgueirava da conversa. Ela resolveu, então, não mais incomodá-lo, pelo menos por algum tempo. Com tudo, uma crescente inquietação passou a lhe atormentar intimamente, que ela não se sentia mais tão saciada como antes. Nem tudo são rosas nesta vida, concluiu, desanimada.
Certa tarde de uma quinta-feira chuvosa em que JR estava surpreendentemente inspirado, depois de uma sessão lasciva e extenuante no final da qual Corina tombou-o no leito, ela resolveu, subitamente, que tinha de fazer uma faxina no apartamento, aproveitando que ele estava prostrado, depois de ter caído no sono dos justos. Mexe aqui, mexe dali, até que, acidentalmente, ela esbarrou com a carteira do “bunito”, que estava guardada no interior de sua valise, em meio a toda aquela despropositada arrumação doméstica. Depois de passar um pente fino no artigo para livrar-lhe do pó, descobriu uma coisinha azul bonitinha que parecia um comprimido, mais precisamente um daqueles que levanta defunto e que tem sido o motivo de alegria de quem já se considerava há tempos fora de combate. Mas como podia um varão daqueles, que mal chegara à casa dos trinta, já recorrer ao socorro da ciência farmacêutica, ruminou Corina. Deveria haver alguma explicação para aquele mistério, mas, pelo menos o milagre que ele acabara de praticar já estava esclarecido, que aquela sua duradoura disposição era coisa fabricada. Corina ficou com aquela aflição no coração, será que seu amado tinha uma moléstia? Entretanto, a natureza feminina desconfiada lhe insinuava ao ouvido a suspeita de que aquela canseira que volta e meia lhe assombrava tinha outra explicação. Depois daquela reveladora tarde, Corina ficou esperta e atenta feito um perdigueiro à espreita de alguma pista que justificasse a sua inquietação que não fazia ideia que motivação que era, mas não daria trégua enquanto não a descobrisse. E foi o que aconteceu, não demorou muito. Seu mundinho veio abaixo quando ela descobriu, irada, que ela era a foda das quinta e, que a de quarta morava em Botafogo e a de sexta no Grajaú. Sabiamente, ela não quis ir mais adiante para descobrir o que se passava nos outros dias da semana pois, já lhe parecia óbvio. Por fim, estava explicado o Viagra e os cansaços, afinal o homem não era de ferro e nem ele podia tomar o comprimidinho milagroso todo santo dia. Ela caíra nas garras de um verdadeiro Don Juan! O “bunito” era muito habilidoso, usava de ardileza para manter oculto a sua vida clandestina, por exemplo, para não dar mancada chamando uma amante pelo nome de outra, ele tinha a artimanha de nunca trata-las pelos próprios nomes, eram todas gatinhas, fofinhas e princesas. Olha aí, companheiros, uma dica importante!
Aquela terrível situação demonstrou a Corina que neste mundo ninguém pertence a ninguém. Embora ela agora soubesse que não era assim mais a única mulher no mundo, não quis se desfazer de seu Don Juan assim tão facilmente, partiu, então, para por as cartas na mesa. Confrontado, admitiu não ser homem de uma mulher só, precisava ter delas em fartura porque seu amor era infinito e em seu coração cabia muito mais que uma, mas por cada uma delas nutria o mesmo amor em igual proporção. Mas é que ela gostava tanto dele como se ele fosse um vício difícil de se livrar. Seria mais fácil conviver com sua poligamia do que simplesmente extrai-lo de sua vida feito um dente estragado, que ela não queria passar pelo sofrimento. Corina, magoada, começou a refletir sobre aquele modo de vida. Se ele podia ter um harém, nada a impedia de ela ter o seu também, de homens. A partir de então, decidiu, seria uma mulher libertaria, faria sua revolução sexual. Conquistaria homens e os assustaria com a sua franqueza ao lhes informar que não era mulher de um homem só, porém, amaria cada um como se fosse o único, estava escrito. Praticaria a sua liberdade de amar quem quisesse e multiplicaria este seu amor quantas vezes assim o desejasse, com transparência, sem segredos, nem mentiras e subterfúgios. Doravante, JR seria a sua foda das quintas-feiras, tendo ainda vantagem sobre ele, porque jamais estaria cansada e nem precisaria de pílula azul alguma para ter e dar prazer a quem quer que fosse.
Rio Vermelho, 10 de maio de 2011.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Mas como é ridículo o amor... alheio!

“Como é ridículo o amor... alheio!” versificou Quintana numa espirituosa poesia ao amor. Assim como o amor é cego, não raro, também, falta-lhe o devido juízo que nos poupe de fazer papel de tolos. Realmente, quando estamos apaixonados, somos capazes de proezas que desafiam a nossa autocritica e senso de ridículo. Mas, ainda assim, pouco importa se fazemos papel de tolo ou não, o que importa é que temos para quem faze-lo.

Nem bem a internet veio ao mundo e ela logo se tornou numa daquelas novidades que todos querem experimentar, eu mesmo embarquei logo nela. E como muita pouca gente sabia para que servia e as ofertas de entretenimento, também, ainda eram escassas, o povo, então, descobriu nas salas-de-bate-papo o modo de se divertir fazendo novos e virtuais amigos mundo afora. Pois, foi nesta época que JR, um pequeno empresário de Maceió, adquiriu o seu primeiro computador, para conectar-se logo à rede e descobrir aquela incomum forma de fazer amizades com o nariz colado na telinha, pelas madrugadas a fora. Foi numa dessas sessões noturnas que ele conheceu a “Gatinha_da_serra”, codinome para LRJ, uma agente de viagens numa pequena agencia de passagens em Petrópolis. Ele próprio tinha o seu apelido que era Gato_escaldado_baiano, apesar de ele viver um pouco mais ao norte, que codinomes agente inventa do jeito que quiser, não é lavrado em cartório e nem precisa ser batizado.

Não era que quase toda noite, lá estava ele, o Gato_escaldado_baiano, teclando animadamente nas salas-de-bate-papo e, quando a Gatinha_da_serra aparecia e vinha conversar com ele, era como se o mundo ganhasse novas cores bonitas. Era um sentimento de alegria juvenil que ele não sabia expressar, ficar assim tão feliz feito um colegial por uma mulher que ele sabia só existir em forma de letrinhas na tela de seu computador. E, como era de se esperar, tais encontros virtuais tornaram-se obrigatórios e não havia um dia que eles não conversassem noite adentro pela boca da madrugada. Feito menino, JR ficava ansioso ao longo do dia esperando a hora do relógio bater meia-noite para ligar o seu computador para encontrar a Gatinha_da_serra na sala-de-bate-papo, sentimento igualmente compartilhado por ela em igual grandeza. Assunto, era o que parecia que não lhes faltava e quando não havia um, se inventava. É bom lembrar que naquele tempo só existia a conexão discada, que ocupava a linha telefônica enquanto se estava conectado na internet e só depois da meia noite é que era quase de graça, uma inconveniência danada. E foi assim que começou uma estória de amor entre um homem e uma mulher, dois desconhecidos, que navegavam pela internet perdidos na noite. O amor tem dessas coisas que eu considero sobrenatural, como podem pessoas que nem nunca se viram cair de paixão uma pela outra?

A vontade de se conhecerem pessoalmente foi um sonho que se tornou realidade. A força do o amor é capaz de tudo, inclusive colocar um homem para viajar 36 horas de ônibus até o Rio, que JR se pelava de medo de entrar em avião. Pois foi isso que o nosso herói fez, mas como eles se reconheceriam sem nunca terem se visto antes? Para tanto, LRJ teve uma luminosa ideia, embora não muito ortodoxa, que ela era uma mulher muito romântica e brincalhona, por isso, queria que este primeiro encontro fosse o mais romântico que alguém pudesse ter e fora do comum. Embora relutante, JR aquiesceu ao pequeno capricho da amada, como testemunharão adiante.

Nosso rapaz se enfiou num ônibus e rumou na jornada ao encontro da amada pela estrada afora, contando cada minuto que se passava até chegar ao seu destino que parecia estar do outro lado do mundo, enquanto assistia, pouco interessado, a paisagem se revelar através da janela ao seu lado. Ela, por sua vez, nos dias que antecederam à sua chegada, não falava em outra coisa com as amigas e na loja de passagens onde trabalhava, até os clientes já estavam casados de ouvir a estória de como se conheceram pela internet e que ele estava a caminho para encontra-la finalmente. E só demorou um dia e meio para que ele chegasse na rodoviária do Rio e embarcasse em outro ônibus para Petrópolis na sequencia. Chovia muito naquela tarde, uma neblina espessa cobria as serras no caminho para a Cidade Imperial como um imenso manto de vapor frio transformando o dia numa noite fora de hora. O ônibus serpenteava a estrada abrindo caminho com os seus potentes faróis. JR não via mais a hora de chegar.

Ao desembarcar em Petrópolis, chovia aos cântaros, mas isto não intimidou JR que foi parar direto na agência de passagens onde LRJ ainda trabalhava àquela hora do final do dia e como era de se imaginar ele chegou lá feito um gato molhado carregando sua bagagem. Ao entrar na loja, ninguém prestou muita atenção nele que ficou lá parado de costas para a porta esperando ser recebido. E como ninguém lhe deu atenção, ele então soltou um tímido miado. Isto mesmo, um miau pouco convincente... mas nada aconteceu como esperado! Ainda assim, ninguém lhe prestou atenção, por isso miou novamente e um pouco mais alto soando como uma pergunta, miau? Foi então que algumas pessoas se voltaram para a porta de entrada e notaram aquela figura de um homem de meia idade, forte e alto, com roupas encharcadas da chuva, parado lá de pé carregando uma sacola pesada e miando! Ah, o namorado virtual chegou, pensaram, mas porque ele estaria miando? Neste instante, LJR viu seu homem pela primeira vez e finalmente percebeu como era ridícula aquela cena daquele homenzarrão ali de pé diante de todos miando feito um palerma. Ela mesmo quis se esconder de vergonha pois jamais imaginara que ele fosse pagar aquele mico ainda que fosse sua ideia. E como ela ficara muda, JR, então, largou a sacola no chão, encheu os pulmões e, em seguida, soltou um vigoroso e alto miauuuu! Estou aqui oras, cadê você, minha gata. E, detrás de uma tela de computador, de onde se escondia LJR, ouviu-se um tímido e agudo miau, ao que foi correspondido com outro miau de JR, miau! LJR soltou outro miau, desta vez mais animada ao que JR miou de novo feliz. Miiiau! Ambos caminharam até o meio da sala, um estudando a fisionomia do outro e gostando do que viam e ao parem um diante do outro, se abraçaram amorosamente sob os aplausos da plateia encantada!

Rua Paissandu, 24 de março de 2011.

domingo, 17 de abril de 2011

O bom senso pode estar à sua frente.

O presente texto passou pelo tempo de gaveta. Explico: depois de escrito, é de boa prática literária deixar o texto passar por um breve período de maturação numa gaveta, assim como se faz com o vinho, envelhecido no barril de carvalho. Depois, é retirá-lo e revisá-lo, dando a sua forma final, tendo as ideias do autor curtidas e amadurecidas. Este é um bom método para quem escreve e, se você aí me lendo, costuma escrever e tiver uma gaveta velha em casa, sugiro fazer a experiência!

Eu contava que tinha voltado à Cidade Maravilhosa. No mesmo dia em que aportei no Rio, fui almoçar na rotisseria árabe do Largo do Machado, que minha doce amiga Daniela, uma paulista de berço e carioca por vocação, também é uma habitué. Eu já falei antes das qualidades gastronômicas do lugar em outra crônica, por isso mesmo, me eximirei de repeti-las, apesar de que o lugar merece mesmo. Eu não sentia tanta fome assim, pois eu tivera um farto e rico café da manhã de batas fritas, amendoins, biscoitos e suco de laranja em caixa durante o vôo para o Rio, mas, por hábito, fui fazer minha refeição do meio dia, para não precisar fazê-la mais tarde.

Este é um daqueles lugares de se comer de pé encostado no balcão de vidro, aquecendo a barriga no calor que emana dos quitutes mornos expostos do lado de dentro ou em estreitas mesas de pernas altas desprovidas de cadeiras, inventadas tão somente para o propósito de o cidadão não esquentar assento. É pedir, comer e ir embora. Eu gosto de comer no balcão porque é uma feliz oportunidade para incitar conversa com a pessoa ao lado, porque me dá prazer em conversar com estranhos que, não são mais tão estranhos assim depois de alguns minutos de conversa fiada. Eu faço assim no Rio porque o carioca é um tipo de pessoa aberta a tais intromissões. Alguns de vocês aí me lendo me conheceram nestas circunstancias e sabem do que estou falando. E se eu não fizer assim, de onde mais vou tirar material para minha lavra? Certa vez, para a minha surpresa, uma bela moça me confidenciou, entre uma mordida e outra num quibe, que estava de jejum de sexo há mais de um ano, o que me fez supor que ela pretendia terminar ali aquela sofrida dieta. No entanto, naquele dia ensolarado, resolvi fazer diferente, e fui comer sentado.

Existe, nos fundos do lugar, um conjunto de 12 pequenas mesas com cadeiras dispostas em três fileiras onde poucas pessoas se dão ao trabalho de sentar e fazer o pedido, e foi para lá que eu fui. Acomodei-me na ultima mesa, numa cadeira que me dava uma ampla visão do salão que, àquela hora do dia, já fervilhava de comensais que se entupiam de quibes, esfirras, caftas e outras delicias. É comum pessoas estranhas compartilharem a mesma mesa neste tipo de restaurante, o que atesta a forma cosmopolita de ser do carioca. À minha frente havia uma mesa ocupada por duas moças sentadas uma de frente para outra e, pela completa ausência de comunicação entre ambas, deduzi que elas não se conheciam e nem estavam afim de papo. Vestiam roupas elegantes e sóbrias de escritório e tinham o olhar distante e perdido. Mas não deixei de perceber que a moça que estava sentada de costas para mim, pagou a conta e foi-se embora rapidamente, deixando em seu lugar uma cafta em perfeitas condições e mais de meia porção de arroz com lentinhas com rodelas de cebolas douradas por cima e que ainda exalavam fumaça e um adocicado perfume. Achei aquilo um desperdício, uma falta de consciência. Onde já se viu jogar comida fora quando existe tanta gente no mundo passando fome? Me incomodou ver aquele monte de boa comida largada ali para acabar no lixo, ou, na melhor das hipóteses, ser reciclada para ir parar no prato de outro freguês desavisado. Eu não conseguia aceitar aquilo e me veio logo a ideia ir até aquela mesa e confiscar as sobras! No entanto, o pudor me reprimia de agir. Fui dominado pela vergonha de tomar uma atitude aparentemente insólita, mas que eu a considerava ser a mais sensata. O caro leitor deve estar me reprovando por esta insensatez, pois, onde já se viu uma pessoa de recursos e em perfeito estado de juízo se apoderar da sobra alheia num restaurante? Para mim, no entanto, aquilo era uma questão de justiça, ou uma atitude ecologicamente correta, para aqueles que veem ecologia em tudo. Fiquei ruminando aquela vontade e me controlando para eu não ter um comportamento que por certo seria condenável aos olhos dos outros fregueses do árabe. Será que a minha atitude seria tão ruim assim? Eu poderia justificar a todos que eu tinha um peixe dourado em meu aquário que este era louco por comida árabe, especialmente de caftas com arroz com lentilhas e que tudo iria para ele. Isto, sim, me parecia ser uma explicação razoável. Mas para meu desapontamento, enquanto eu me perdia naquelas hesitações, o garçom veio e pelo que eu presumi ter sido um pedido da moça que ficara, pois não tenho ouvidos de tuberculoso para ouvir o que lhe dizia, o garçom recolheu toda a sobra que a outra moça desnaturada largara para trás. Tudo iria parar no lixo, lamentei. Voltei-me, desconsolado, para o meu prato e comecei a comer o meu pedido que o meu garçom acabara de por à minha frente, duas esfirras, uma de ricota com espinafre e outra de carne, acompanhadas de um espesso suco de manga. Nem se passaram cinco minutos e eis que o garçom que atendia a mesa da frente voltou diligentemente trazendo consigo uma quentinha que entregou à moça que ficara e que provavelmente continha as sobras de comida da outra que fora se embora e que eu tanto hesitara em me apoderar! Estava claro que minha ideia não era um absurdo tanto assim, foi apenas a minha educação pequena burguesa que falara mais forte pois, alguém tomara a minha dianteira e agira sem nenhum constrangimento.

Rua Paissandu, 21 de março de 2011.

sábado, 9 de abril de 2011

Sobre a verdade e a mentira ou de como consegui espantar a preguiça.

É verdade que andei meio sumido. Foi por conta de uma preguiça renitente, feito uma gripe mal curada, e de um notebook novinho em folha que teimava em não trabalhar. Está claro que eu e a geringonça compartilhamos de algo em comum, mas as semelhanças terminam por aí. O notebook foi e voltou para a UTI e continuará por lá até que eu volte de viagem, e a preguiça, esta não desencarna nem com creolina, mas devo fazer-lhe justiça, pois sem o ócio não haveria a criatividade. Neste meio tempo, voltei ao Rio que tanto amo e, ainda no aeroporto de Salvador, fui lembrado de que estava na “Terra da Felicidade” ao ir ao banheiro do aeroporto internacional e constatar que o do terminal rodoviário é bem mais limpo. Seja lá quem esteja fazendo uso da formidável grana de manutenção e administração do aeroporto, espero que esteja aproveitando bastante porque, certamente, na sua limpeza é que não está.
O meu vôo estava programado para partir às 4:15 da matina, por precaução, cheguei duas horas antes. Eu prefiro viajar a esta hora porque o espaço aéreo ainda não está congestionado, pois, se há uma coisa que me causa aflição, é um engarrafamento lá em cima. Fui diretamente ao balcão da companhia aérea deixar minha bagagem, sendo atendido por uma sorridente e bem humorada funcionária que, ao marcar o meu assento, sugeri-lhe que me acomodasse ao lado de uma moça bonita e bem comportada. Terminada a formalidade, dirigi-me à loja de livros e revistas para pegar uma leitura que me ajudasse a passar o tempo e, qual não foi a minha surpresa ao dar de cara com a loja fechada. É uma satisfação saber que os negócios vão indo tão bem que o dono da loja se dá ao luxo de não abrir o seu comércio de madrugada, deixando a sua clientela a ver navios – ou aviões, se preferir. Provavelmente este cidadão nunca esteve no aeroporto de madrugada e, por isso, desconhece que o lugar funciona também neste horário, com voos que chegam e se vão a toda hora.
Aborrecido, eu aguardava sentado pela hora do meu vôo próximo ao portão de embarque, quando fui surpreendido pela chegada de uma moça que chamava a atenção pelos seus predicados físicos, e que não eram poucos. Ela era uma dessas morenas altas e voluptuosas que provocam em nós homens fantasias inconfessáveis. O corpo era aquela perfeição escultural bonita de se olhar e que enchem os olhos e dá água na boca, moldado por algum cirurgião plástico, exímio na arte do silicone e do botox. Seus peitos eram duas delícias duras que apontavam para o céu louvando o Criador e pareciam querer se libertar do sutiã minúsculo pulando para fora. Fixei meu olhar no seu belo rosto de pele limpa e fresca e fiquei consternado quando este assumiu, subitamente, uma expressão de preocupação e dúvida ao olhar em volta procurando por um assento, o que, felizmente, havia em demasia. Terminou sentando-se logo à minha frente, para minha satisfação. Em seguida, enfiou a mão numa dessas bolsas que as mulheres carregam hoje em dia e que de tão enormes parecem caber um corpo inteiro dentro e, de lá, tirou um livro de capa verde e entregou-se à leitura esquecendo-se de nós mortais à sua volta. Notei que outros homens tinham o mesmo olhar de peixe morto sobre ela. Invejei-a pela precaução de trazer de casa a própria leitura. Fiquei imaginando qual seria o seu gosto literário, talvez aquele fosse um livro de auto-ajuda ou algum romance psicografado. Ou quem sabe a biografia de alguma celebridade do show business ou um livro de romance vampiresco, tão populares hoje em dia. Poderia ser, também, um manual de como se comportar em vôos econômicos que partem de madrugada. Definitivamente aquele não seria um livro de culinária pois, para mim, estava claro que o seu interesse não parecia estar nas panelas. E, naquele jogo de adivinhações, ocupei meu tempo naquela noite modorrenta cujo silencio do saguão do aeroporto era quebrado com os ocasionais avisos de chegadas e partidas de vôos para terras longínquas, por uma voz feminina grave e imperturbável.
Quando, finalmente, veio a hora do meu voo, corri para o início da fila mesmo tendo meu lugar guardado, que eu não sou afeito a filas de qualquer tipo, embora eu reconheça que elas sejam ótimas situações para conhecer pessoas, jogar conversa fora e falar mal do governo. Quando, finalmente, entrei na aeronave me sentei confortavelmente em meu acento e logo apertei os cintos, para o caso de o comandante decidisse zarpar imediatamente. Para minha grata surpresa, no entanto, aquela criatura esplêndida e feminina da sala de espera apareceu no corredor da nave e veio em minha direção assumindo o assento logo ao meu lado. Fiquei grato à companhia aérea por esta cortesia. Sorri para ela e ela sorriu de volta, sem termos muito o que dizer um ao outro, mas um sorriso sempre já é um bom começo. Mas é claro que não demorou muito para começarmos uma conversinha despretensiosa sobre coisa alguma e em pouco tempo eu ainda não sabia a sua graça, mas já tinha notícia de que ela fora passar o carnaval em Salvador e se acabara de pular e beijar bocas e já planejava voltar no ano que vem, residia em São Paulo e que era uma dançarina numa casa noturna cuja principal clientela era masculina, o que não me deixou dúvida sobre que tipo exatamente de dança ela fazia. Logo me veio à mente a imagem de sua deliciosa figura em cima do palco, metida em um minúsculo biquíni de tecido brilhante e ordinário fazendo contorcionismos e voltas mirabolantes de corar as cadeiras da boate, com aquele corpo de tirar o fôlego da plateia e levantar defunto, sob os aplausos e assovios de um monte de marmanjos no cio. Como não poderia deixar de ser, perguntei-lhe se lhe agradava a leitura, ao que ela respondeu que amava, que não podia passar sem um livro, lia sempre que podia até mesmo de pé no trem do metrô. Mais uma vez a minha imaginação foi povoada por imagens de seu esplendido corpo se rebolando no palco e, ao mesmo tempo, entretida na leitura de um livrinho. E o que a senhorita anda lendo ultimamente, queria saber se eu adivinhara o seu tipo de leitura lá no meu joguinho na espera. Estou lendo Nietzsche, um ensaio “Sobre a Verdade e a Mentira”. O disse com tanta espontaneidade e propriedade que me causou a impressão de que ela imaginasse estar conversando com algum estudioso do filósofo. Eram os óculos Armani, eles me fazem parecer um doutor em alguma coisa, certa vez justificou-se uma moça ao me rejeitar, sério e intelectual demais. Por um instante duvidei das palavras da dançarina, me veio aquele julgamento preconceituoso “mas uma striper lendo Nietzsche? Não creio.”, mas logo em seguida recobrei o meu bom senso.
A dançarina de boate masculina sentadinha ao meu lado me faz ter por ela o mesmo julgamento equivocado a que já fui submetido certa vez. Desde quando a uma striper é vetada leituras sofisticadas? E quem foi que disse que os intelectuais são pessoas sisudas e geralmente com problemas oculares? Infelizmente vivemos num mundo de estereótipos e clichês como numa imensa novela do horário nobre e, por mais que eu tente, nunca consigo mudar de canal. O importante neste episódio é que tomei coragem, espantei a preguiça e dias depois voltei a escrever, mas sem a pretensão de ter a sabedoria de Nietzsche, certamente.

Rua Paissandu, 18 de março de 2011.