sábado, 17 de dezembro de 2011

Na vida como na arte.

Ir ao cinema é minha diversão favorita. Não passo uma semana sem ir. No entanto, prefiro não saber muito sobre o filme além de seu horário e local de exibição, porque, para mim, faz parte da diversão a surpresa de ir tomando conhecimento da estória à medida que ela vai se revelando na tela prateada. Tenho só o cuidado de não ir a filmes de terror, que os de hoje em dia mais causam nojo que medo. Filmes de pacientes terminais, também não me agradam, pois o final é bastante obvio e está estampado na cara do moribundo principal. Há, também, aqueles apocalípticos cuja trama é um mirabolante plano para mandar o mundo para o quinto dos infernos, cheios de efeitos especiais e cenários fantásticos, estes me entediam e me fazem ficar questionando porque alguém está se dando tanto ao trabalho de acabar com o mundo e porque é que apenas um homem vai impedir que isto aconteça. E filmes cujo tema é a violência contra crianças ou mulheres, nem pensar, afinal eu vou ao cinema é para me divertir.

Ontem fui num cinema cuja sala só vende assentos marcados, e como a plateia era apenas de meia dúzia de gatos pingados, me rebelei, sentei em qualquer lugar. Os primeiros quarenta e cinco minutos do filme descreviam a rotina de um jovem e feliz casal, e lá pelas tantas, quando aquilo já estava ficando tedioso, a mulher conhece outro homem e, não satisfeita em ir apenas uma vez para a cama com ele, fez disso um hábito, transformando-o num tórrido romance. O marido, por sua vez, não fez diferente, desconhecendo os malfeitos da esposa, começa também a ter um caso extraconjugal, no entanto, como ele andava meio confuso, foi parar nos braços de outro de seu gênero, porque ele queria experimentar esta coisa diferente de que tanto falam. A partir daquele ponto do filme, a estória, que parecia um daqueles patéticos casos de duplo adultério, adquire contornos bizarros, quando a esposa descobre que seu querido marido a estava traindo justamente com o seu amante. Para complicar mais ainda o imbróglio, a mulher aparece grávida e como se isto não fosse o bastante, era de gêmeos e, neste momento, a trama insinua que talvez cada criança pertencesse a um pai diferente, o que dificilmente saberemos por que este era um daqueles filmes europeus que não tem fim. Para quem ficou curioso por saber em que pé ficou o triangulo amoroso, digo que o amante ficou prestando assistência à esposa e ao marido concomitantemente, seguindo ao pé da letra aquele preceito bíblico que diz que marido e mulher devem compartilhar de tudo na alegria e na tristeza. E esta é uma das desventuras de se ir num filme sem ler a sinopse previamente.

Esta inverossímil estória me fez lembrar de outra que certa vez me contaram. Uma jovem moça tinha a satisfação de “sair” com dois belos rapazes sem que um soubesse da existência do outro. Tudo ia muito bem até que certo dia ela engravidou. E como naqueles áureos tempos paternidade era mais uma presunção que uma informação científica confiável, a moça resolveu comunicar o fato aos dois rapazes, dando-lhes a palavra que um deles era o pai embora não soubesse precisar qual dos dois. Foi nesta oportunidade, também, que ambos foram apresentados, e como eles eram dois homens de boa índole e bom senso, não faltaram com solidariedade à moça e se comprometeram a dar toda a assistência a ela e à criança, inclusive até a sua idade adulta

De fato eles cumpriram o prometido. Durante toda a gravidez, não deixaram que nada faltasse à gestante. No mês previsto para a criança desembarcar no mundo, um deles precisou viajar a trabalho ficando fora algumas poucas semanas, até que certo dia este recebeu um telegrama que informava suscintamente: “Lívia deu a luz. Nasceram gêmeos. O meu, infelizmente, morreu. Parabéns!

Rio Vermelho, 15 de dezembro de 2011.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Que azar danado.

Já escrevi aqui sobre minhas caminhadas na orla do Rio Vermelho nos finais de tarde, mas não devo ter contado que, na verdade, estou treinando para as olimpíadas, pois vou competir na modalidade “devagar se vai ao longe”. Este exercício tem me feito muito bem, embora eu não saiba precisar exatamente em quê. Mas depois que o verão começou para valer derretendo-nos feito picolé, tenho saído de casa só depois que o sol se põe por completo porque uma brisa suave e fresca começa a soprar na orla tornando a atividade de caminhar num exercício agradável e revigorante.

No domingo passado, fui dar minha caminhada no início da noite, mesmo sabendo que as ruas estavam desertas àquela hora, o que não deixava de ser uma imprudência minha, pois Salvador, nesta época do ano, está entregue aos bandidos, movidos pelo espírito natalino. Estas festas de fim de ano realmente movimentam a economia em todos os setores e por isso não é de surpreender o aumento da ação dos criminosos que não querem ficar à margem dos acontecimentos. Pois lá ia eu, tranquilamente em minha caminhada, gozando da brisa do mar e absorto em meus pensamentos quando um negão surgiu armado à minha frente e me mandou passar tudo que eu tinha e que não era quase nada, pois não carrego coisa alguma comigo além das chaves de casa. Insatisfeito com a minha penúria, levou-me o único bem de valor que achou, um velho relógio de pulso comprado num camelô no centro da cidade e que me custou, depois de barganhar o preço, exatos oito Reais. Não estivesse ele visivelmente apressado, pois tinha em mente outras vítimas mais abonadas, poderia ter levado meu par de tênis que era de grife e me custara os olhos da cara. Depois de ter praticado o “malfeito”, o bandido se foi correndo para os lados da praia e sumindo no breu dos rochedos que dá acesso para uma favela nas proximidades e onde provavelmente ele fixara residência. E eu segui o meu caminho, continuando o meu exercício mesmo assim, pois a probabilidade de eu ser assaltado aquela noite já se concretizara e só por muito azar mesmo isso aconteceria duas vezes seguidas em pouco espaço de tempo. Preferi esquecer aquele incidente desagradável e deixá-lo para trás, pois o que estava feito, já estava feito.

Quis o destino que naquela mesma noite, mais tarde, eu fosse ao Cinema do Museu, que se gaba de ter uma clientela diferenciada e educada. Educada uma ova, pois durante o filme alguns representantes dessa elite aproveitavam para conversar entre si, fazer ligações ou recebê-las como se todos na plateia fossem obrigados a aturar a sua completa falta de educação. Agora que desabafei, continuo minha narrativa dizendo que depois do filme voltei para casa e no caminho dei uma parada no Porto da Barra para tomar uma água de coco gelada porque o calor estava de matar. Enquanto me refrescava com a salutar bebia, encostei-me à balaustrada observando na praia lá embaixo um grupo animado que fazia um luau, alguns casais namorando deitados na areia e alguns gatos pingados aventurado-se a cair na água que estava serena e presumivelmente tépida. Enquanto eu me deleitava com aquele cenário, um rapaz se aproximou de mim para me abordar e como o seu rosto me fosse familiar, estendi-lhe a mão para cumprimentá-lo. Ele apertou minha mão e, para minha surpresa, pediu-me dinheiro e, como lhe neguei, pediu-me um cigarro e, como eu não tinha nenhum porque não fumo, ele foi-se embora. Enquanto ele se distanciava eu tentava puxar pela memória de onde eu o conhecia até que tive um sobressalto ao lembrar que ele era o cara que me assaltara algumas horas antes!

Rio Vermelho, 11 de dezembro de 2011.

domingo, 30 de outubro de 2011

Você é tão lindo!

Quando pequeno, JR acreditava que ao crescer iria se tornar num belo cisne de penas negras que iria ser admirado por todos por causa de sua inigualável beleza. Mas ao alcançar a idade adulta, logo percebeu que ele não fazia parte de nenhum conto de fadas e que, se ele era feio quando criança, ao crescer, ficou mais feio ainda. Enfim, ele era feio como o pecado, mas estranhamente a sua feiura era mais de fascinar que de repelir. E além de ser destituído de predicativos de beleza física, ele era um duro, outro agravante que só tornava as coisas difíceis para o seu lado.

Fala-se muito da nobreza da beleza interior, principalmente quando a exterior deixa muito a desejar e, no caso de JR, as mulheres pareciam não ter os esperados olhos de raios-X que tanto enxergam o âmago do ser de uma pessoa, porque esta poderia ser uma dessas inspiradoras estórias de superação na qual o nosso herói passa por uma provação, no caso a sua falta de beleza, até ser reconhecido e admirado pelo seu conteúdo humano, mas, no caso de JR ele era um sujeito superficial e sem muitas qualidades pessoais que o distinguissem dos outros seres da espécie, então ele não apenas carecia de beleza exterior, mas de interior também, no entanto, ser má pessoa ou mau caráter, isso ele não era.

Mas apesar de seu percalço, ele era um ser humano como outro qualquer que se levantava todas as manhãs motivado por sonhos e desejos. E um desses desejos atendia pelo nome de Ritinha, uma deliciosa e mal afamada mocinha que era balconista da loja de ferragens do bairro que ficava no seu caminho diário para o trabalho, uma mulher muito bonita, mesmo. Os olhos do pobre rapaz brilhavam de desejo cada vez que ele punha os olhos sobre ela ao passar em frente da loja e provavelmente outras partes de seu corpo se manifestavam com igual grau de paixão. Mas a moça tinha horror a homem feio e o nosso pobre JR se encaixava exatamente naquela categoria. Vez por outra ele entrava na loja nem que fosse para só comprar um prego, ou dois, apenas pelo prazer de ser atendido por Ritinha, mas apesar de toda sua delicadeza e educação ao tratá-la, ela retribuía com um olhar duro de desprezo porque para ela, ele era mais um daqueles homens feios que enchiam a sua paciência com olhares e palavras melosas. Vez por outra JR a encontrava no mercado e tinha a petulância de se aproximar para conversar na intenção de convidá-la pra sair ao que ela lhe respondia gentilmente: “Você não se enxerga? Vai te catar!” O rapaz interpretava isto como um “talvez” e repetia o pedido em outras oportunidades, ouvindo sempre a mesma promessa encorajadora.

Mas a vida não foi totalmente injusta com JR, pois que, certo dia, teve o sofrimento de perder um tio querido e a compensação de herdar toda a sua pequena fortuna. A notícia logo se espalhou pelo bairro e virou assunto de conversa de esquina, balcão de farmácia, mesa de botequim até chegar à loja de ferragens na qual a indiferente Ritinha trabalhava e pôs-se ouvir aquela conversa toda com disfarçado desinteresse. A estória que corria era que ele queria achar uma boa moça para casar e que com todo aquele dinheiro que herdou, candidatas é o que não faltavam e quem quisesse tentar, melhor que se apressasse porque a fila estava começando a dobrar o quarteirão. Não demorou muito, Ritinha percebeu que subitamente estava perdidamente apaixonada pelo homem mais feio que já vira em toda a sua vida e dono de uma fortuna de encher os olhos de qualquer moça que sonhava encontrar seu príncipe encantado e ela encontrara o seu.

A partir de então, ela passou a ir ao mercado diariamente com o intuito de esbarrar acidentalmente com JR, o que de fato aconteceu e daquela vez foi ela quem teve a iniciativa de puxar conversa. E como era de se esperar, JR insistiu mais uma vez no convite para saírem juntos ao que foi aceito de pronto e com demonstrações de alegria e entusiasmo que faria qualquer cego de bengala desconfiar, menos JR que estava cego de amor pela moça. Ao se despedirem reafirmando o encontro já para aquela noite – para que esperar tanto... – Ritinha deu um beijo melado no rosto de JR e disse-lhe languidamente ao pé de seu ouvido “Você é tão lindo!” Bem, o resto da estória é previsível de imaginar. Eles viveram felizes para sempre, ele por ter uma esposa que era muito bela e ela por ter se tornado proprietária de uma bela conta bancária.

Rio Vermelho, 30 de outubro de 2011.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Il sole é mio!

Se o luar é dos amantes então, o pôr do sol a quem pertence? Todos os fins de tarde, nas três últimas semanas, Bartolo, o meu amigo italiano, calça o seu sempre bem cuidado par de tênis de futebol de salão e, munido da câmera digital novíssima em folha, vai até a Praia de Santana registrar mais um crepúsculo. Outro dia ele não compareceu como esperado, preferiu ficar em casa fazendo espaguete, porém, imaginando que se tratava apenas de um mero atraso, o sol retardou o seu momento de sair de cena como se estivesse à sua espera para mais uma vez exibir-se para a fotografia, mas como o italiano não deu as caras, a noite, então, começou um pouco mais tarde aquele dia.

Todos os fins de tarde, eu saio para caminhar na orla do Rio Vermelho, naquele trecho entre o Teatro do SESI e a segunda escada da Praia da Paciência cujo comprimento deve ter pouco mais que mil metros, e repito o mesmo percurso cerca de oito vezes, considerando-se a ida e a volta. Tudo de caloria e gordura que eu perco neste exercício inútil, eu candidamente reponho, às sextas-feiras, comendo churrasco ou espetos de camarão pistola e sardinha na brasa, regados a fartas rodadas de cerveja estupidamente gelada no refrigerador de última geração da casa de meu amigo e vizinho Habib. O caminho do meu “Cooper” é sinuoso porque ele obedece ao movimento do mar, começando reto até a igreja e depois fazendo uma barriga acompanhando a enseada da Praia de Santana e depois segue reto novamente e mais adiante faz outra barriga na Praia da Paciência. É uma caminhada privilegiada por poder se admirar toda a beleza do mar quebrando nas pedras jogando espuma para o alto. Até bem recentemente, o pôr do sol só era visto acontecer por detrás de prédios e, por isso, não era um espetáculo lá muito interessante, mas como ele tem se movido no sentido leste como parte de seu ciclo natural, não faz muitos dias, ele já é visto desaparecer no oceano, onde pode ser melhor contemplado por quem quer que esteja andando ou passando de automóvel ao longo da avenida que corre lado a lado com o mar.

Um fato que tem merecido a minha atenção é o encantamento das pessoas pelo pôr do sol e o seu impulso de fotografá-lo como única forma de congelar para sempre aquele momento singular, porque o sol se põe diferentemente todos os dias para nunca repetir o mesmo espetáculo. Então eu vejo pessoas como o meu amigo Bartolo chegar até a orla trazendo suas câmeras com a vívida intenção de gravar aquele momento sublime. Ou outras que, de dentro de seus carros ou do ônibus ou encima da motocicleta, no congestionamento da avenida naquele final de tarde, não desperdiçam o momento e fazem uso até de câmeras embutidas em aparelhos celulares. Tudo está valendo, de máquinas baratinhas até as profissionais com suas teleobjetivas espetaculares, desde que ninguém deixe de compartilhar aquele efêmero instante. De onde vem tal magnetismo pelo pôr do sol? Como ele consegue esta façanha de se reinventar a cada dia e agregar tantos admiradores? Eu mesmo fico divido entre fazer o meu exercício ou apenas sair de casa levando a minha Canon para juntar-me aos outros para celebrá-lo. Talvez por preciosismo, no entanto, eu penso que o pôr do sol deveria ser livre e sempre único e guardado na memória, por isso me privo de fotografá-lo porque nada substitui a emoção de vê-lo ao vivo.

Rio Vermelho, 18 de outubro de 2011.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O traje faz o homem.

Não há sensação banal mais agradável que a de sentir-se asseado depois de um bom banho e depois vestir-se com roupas limpas e macias. Embora seja questionável que o modo como uma pessoa se vista diga realmente algo sobre ela, uma roupa pode, no entanto, alterar o seu ânimo e ajudá-la a adquirir autoestima.

Aqui no Rio Vermelho havia um “maluco”, assim como é comum a cada bairro possuir o seu, personagem quase invisível à nossa percepção e que ninguém sabe a sua origem ou a sua história. E para que este não fique totalmente no anonimato, colocam-lhe um apelido ou batizam-no com um nome qualquer. Certa vez ouvi chamar o nosso pela alcunha de “Coronel” e foi assim também que passei a denominá-lo desde então. Ele caminhava a esmo pelas ruas do bairro com passos arrastados e vagarosos como os de um ancião embora não devesse ter mais que cinquenta. O olhar era triste e perdido e a postura curva e cabisbaixa como se carregasse toda a vergonha do mundo. Ouviam-no resmungando o tempo todo estórias incompreensíveis de seu universo e que provavelmente só a ele faziam sentido. Mas a coisa que mais nos incomodava era vê-lo de roupas imundas e com o aspecto de quem carecia de um banho com muita água, sabão e uma esfrega, não só por medidas profiláticas, mas para também livrá-lo do terrível mal cheiro que para nós era motivo de desprezo.

Eis que certo dia, o meu vizinho JR teve uma luminosa ideia que a nenhum de nós jamais ocorrera. O “Coronel” bateu à sua porta pedindo-lhe água, como era costumeiro, e este o convidou a entrar conduzindo-o até os fundos da casa onde havia uma ducha, sabão perfumado, bucha e toalha à sua espera. Com um gesto elegante, JR convido-o a entrar no recinto e banhar-se à vontade, ao que ele, depois de um olhar desconfiado e de um instante de hesitação, deu um largo sorriso aceitando a oferta.

Enquanto o “Coronel” tomava o seu merecido banho, JR foi até ao armário procurar por uma roupa para doá-la ao visitante e de lá tirou seu antigo uniforme de gala do Tiro de Guerra, o qual não lhe valia mais de nada a não ser pelo valor sentimental. Depois de asseado, o “Coronel” vestiu o uniforme e quando se olhou no espelho de banho tomado, cabelo e barbas penteados assustou-se ao deparar com aquele novo homem que parecia uma verdadeira autoridade e terminou por encantar-se com a sua nova imagem. Agora sim ele parecia um coronel de verdade! Estufou o peito, empertigou-se, levantou o queixo e, altivo, saiu caminhando a passos largos e firmes como nunca se vira antes. O homem curvo e cabisbaixo que andava arrastando-se dissolvera-se na água do banho e em seu lugar surgiu um outro totalmente diferente que víamos marchando pelas ruas do Rio Vermelho comandando exércitos invisíveis.

Rio Vermelho, 25 de setembro de 2011.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Chega-se a Boipeba até de helicóptero, mas não é tão divertido assim.

Nada como um programinha alternativo bem longe de casa para variar a rotina e fazer-nos desejar voltar ao conforto e segurança do lar, para a nossa vidinha de sempre. Minha querida sobrinha entrou de férias e me convidou a passar uns dias em Boipeba em companhia de sua família, e como eu sempre quis mesmo conhecer o lugar, não pensei duas vezes antes de aceitar. O passeio também me ajudaria a curar feridas no coração, causadas involuntariamente por alguém que foi dançar o tango com um felizardo nas frias noites portenhas. Triste de mim que mal sei só dançar o twist.

Para quem nunca esteve ou ouviu falar de Boipeba, apenas digo que é uma paradisíaca ilha localizada na Costa do Dendê no litoral sul da Bahia, plantada no que ainda restou da Mata Atlântica, região de extensos manguezais e recifes de corais que a tornaram reserva ecológica. O lugar ainda não descobriu o débito em conta ou o cartão de crédito, mas já tem banda larga e luz elétrica. Suas ruas são estreitas e muitas delas já pavimentadas com pedras de cantaria, destinadas ao trânsito exclusivos de pedestres porque em Boipeba não existem automóveis, mas para se chegar aos vilarejos e praias vizinhas recorre-se ao transporte de tratores que rebocam jardineiras ou ao lombo de burro ou de cavalo ou, para quem tem disposição, vai de pé mesmo.

Mas chegar até a ilha de Boipeba é que é o grande barato da viagem, porque o lugar fica bem lá no fim do mundo onde o vento faz a curva, e o modo mais em conta de se chegar lá acontece que é também o mais divertido e que faz o passeio valer a pena, depois que pensamos sobre o assunto, já de volta ao conforto do lar. Então, no dia e hora combinados eu já estava pronto às seis da manhã; não vou dizer aqui que minha sobrinha me deixou esperando e só apareceu com a cara mais limpa do mundo depois das sete e meia. Mas mesmo assim chegamos ao Terminal da França a tempo de pegar a lancha seguinte para Mar Grande, na ilha de Itaparica. O que as pessoas chamam de lancha é, na verdade, uma sólida embarcação de madeira semelhante a um saveiro, movida por um potente motor capaz de carregar em uma só viagem umas duas centenas de almas. O gostoso da travessia é a rara chance de admirar Salvador vista pelo mar que é uma paisagem de encher os olhos. Como o mar estava agitado por causa das marés de agosto, a lancha jogava para os lados e, volta e meia, respingos da água salgada da Baía de Todos os Santos nos abençoava.

Em 35 minutos estávamos em Mar Grande e sem pegar congestionamentos! Uma agitação de “vans” disputava os passageiros que desembarcavam para levá-los a outras praias mais distantes da ilha de Itaparica, mas, para nossa surpresa, nenhuma delas tinha intenção alguma de ir até a cidade de Valença, que era o nosso destino seguinte neste périplo. A ‘baixa estação’, justificaram. A única opção que nos restava era ir de taxi, ou, melhor dizendo, um carro particular que clandestinamente faz o serviço, como nos explicou a autoridade local responsável por coibir tal prática e quem nos sugeriu fechar com um seu sobrinho que tinha um Fiat novinho em folha logo ali esperando na esquina. Ah, o que seria de nós se as leis fossem cumpridas neste justo e belo país... Aceitamos a oferta, mas como nem tudo é garapa, havia mais um perrengue que o dito ‘taxi’ só nos levaria até o terminal do ferry boat em Bom Despacho e de lá teríamos de seguir em outro para Valença a ser providenciado pelo nosso motorista, coisa da mais absoluta confiança, garantiu.

Então, devidamente instalados pegamos a estrada com destino a Bom Despacho que era ali perto, segundo nos informou o motorista, embora me pareceu ser bem mais adiante, mas não nos importamos pois, tudo era novidade, porque estávamos passeando e o tempo era nosso amigo.

Quando finalmente chegamos a Bom Despacho o nosso ‘taxi’ fez um sinal para outro colega à espreita, igualmente clandestino e que por isso foi nos encontrar mais adiante num posto de gasolina, longe dos olhos da fiscalização que esta não era tia de ninguém. Trocamos de ‘taxi’ e não me escapou aos olhos quando o nosso novo motorista deu furtivamente uma graninha para o colega que nos levou, alimentando a cadeia de comissões e propinas na qual havíamos nos metido. E lá fomos nós finalmente para Valença num segundo ‘taxi’, soprados por um vento gostoso que invadia o carro através da janela e foi quando aproveitamos todos para tirar um cochilo, excetuando o motorista, por razões óbvias. Hora e meia depois, chegamos na rodoviária de Valença onde teríamos que aguardar por um ônibus que nos levaria a um lugar chamado Turrinhas. Senti fome e saí investigando pelo pequeno terminal um lugar para comer e achei a única lanchonete disponível que tinha em sua vitrine uma variedade de salgados cuja aparência prometia fazer de nosso passeio um pesadelo, preferi arriscar num pacote de biscoitos. Deus é mais!

E não tardou muito o nosso ônibus chegou. Não me admirei ao ver que era um carro velho de aparência surrada e enlameado por uma terra vermelha que este era batizado com o pomposo nome de ‘Expresso Boipeba’. Pulamos para dentro e logo em seguida ele partiu valentemente transportando-nos ora pela estrada de rodagem e ora cortando pequenas cidades de prédios históricos até cair numa estrada de barro estreita e rica em buracos, mas formidavelmente ladeada pela mata fechada até parar em Turrinhas, que acontece de ser um pequeno e rústico terminal portuário. Todos saltaram do ônibus e me apressaram para andar mais rápido que o barco para Boipeba estava na eminência de partir, mas da distância onde eu estava eu não via embarcação alguma atracada e só quando cheguei ao deck e olhei para baixo vi que uma canoa de madeira com um motor de poupa na qual os passageiros tomavam cada um o seu lugar. Pulei para dentro bravamente lembrando que eu não sabia nadar e em seguida ela partiu conduzindo-nos pelo leito do Rio Grande para dentro da mata virgem com o seu motor tossindo fumaça e quebrando o silêncio da paisagem com o seu barulho renitente enquanto admirávamos os manguezais, crocodilos e hipopótamos – só para enriquecer a narrativa. Depois de quase uma hora ele virou no Rio do Inferno e logo avistamos Boipeba plantada na boca da barra nos aguardando finalmente. Chegamos!

Levamos cerca de seis horas de viagem, mas pode-se chegar à ilha de lancha rápida em menos de duas horas ou de helicóptero em apenas 45 minutos, mas te garanto que o passeio não é tão divertido.

Rio Vermelho, 15 de setembro de 2011.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Sobre caçadas a javalis e a nobreza do cotidiano.

Numa recente ensolarada manhã, cá estava eu pensando sobre alguma estória para uma nova crônica, como sempre faço semanalmente porque escrever é um exercício contínuo e, embora eu já tenha escrito mais de 80 delas, eu as considero como um texto único no qual vou revelando o meu cotidiano tal qual um alfaiate desenrola lentamente a peça de tecido sentindo a maciez de sua trama ao afagá-lo com a palma da mão e imaginado se dali surgirá um blazer ou uma calça. Fiquei refletindo se escreveria desta vez sobre minha triunfal caçada aos sanguinários javalis selvagens no vale da Cananéia com um potente rifle de derrubar leão, ou da vez que pulei do Machu Picchu de asa delta, ou fiz rapel na cachoeira da Garganta do Diabo ou amor com uma belíssima norueguesa sobre as mornas areias do mar Egeu, tendo a lua como testemunha. Meus devaneios foram subitamente interrompidos com o apitar na máquina de lavar roupa avisando-me que o serviço já tinha terminado e que eu já podia pendurar a roupa limpa no varal, e isto foi quando retornei ao planeta terra.

Uma querida amiga ficou encantada ao saber que lavo minhas próprias roupas e achou isso “bonitinho”, depois completou dizendo que era uma atitude nobre de minha parte. E eu que sempre pensei que atitude nobre fosse algo como reconhecer a paternidade de um filho bastardo ou renunciar ao cargo de Ministro de Estado depois uma intensa saraivada de denuncias de corrupção e gatunagem de dinheiro público. “O Excelentíssimo Senhor Ministro teve o nobre gesto de renunciar ao cargo depois de uma campanha difamatória e infundada sobre a sua ilibada conduta frente ao cofre da viúva.” Mas ela tem razão ao dizer que o homem que lava a própria roupa demonstra um gesto de humildade. Não há nada de errado em um homem lavar as suas roupas, ou pratos ou cozinhar, até porque agora chamam a isto de homem moderno. Então eu sou moderno, mas não moderninho. Se eu fosse casar com uma mulher para ter quem lavasse e cozinhasse para mim, eu certamente daria preferência à nossa atual empregada doméstica, pois assim me pouparia de lhe pagar salário e encargos sociais.

Não é raro idealizarmos pessoas que admiramos. Mais comum ainda é as imaginarmos fazendo sempre coisas divertidas, como se a vida delas fosse uma festa e dificilmente a concebemos, por exemplo, lavando o banheiro de sua casa ou enfrentando a fila do banco para pagar contas. Certa vez eu tive uma amiga muito bela e a quem não lhe faltavam convites para baladas incríveis, altas festinhas particulares, jantares nos lugares da moda, passeios maravilhosos e noitadas extenuantes nos motéis mais requintados. Eu ficava imaginando como deveria bom ser ela com tanta farra e admiradores, até um certo dia em que a flagrei em sua casa, de touca de meia na cabeça, metida num shortinho apertado com a vassoura na mão varrendo o piso da cozinha enquanto ouvia pelo rádio e cantava a plenos pulmões o Reginaldo Rossi tão feliz quanto pinto na lixeira. Desde então, passei a olhá-la de modo mais mundano.

No meu caso, eu lavo a minha própria roupa na máquina e interrompo o meu trabalho de escrever para estendê-la. Tive amigo adulto que não fazia ideia onde se encontrava um garfo na cozinha de sua própria casa ou que a mãe, quando ainda solteiro, lhe fazia o prato à mesa e seguia atrás dele arrumado a bagunça que ele ia deixando no caminho pela casa. Fico imaginando como ele estará agora e se a esposa conseguiu reeducá-lo ou se ela teve o mesmo triste fim de sua sogra. Sim eu lavo as minhas próprias roupas, é a nobreza do cotidiano, apesar de que um dia já as joguei no cesto imundas e elas, inexplicavelmente, voltaram milagrosamente para a minha gaveta lavadas, dobradas e cheirosas. Fala-se tanto em igualdade entre os sexos como igualdades de oportunidades de emprego, salários iguais para as mesmas funções e coisas assim. É muito bonito tudo isto, mas acho que tais práticas devem começar dentro de casa.

Rio Vermelho, 18 de agosto de 2011.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

De como fotografar um pica-pau

É gratificante conseguir provocar emoções positivas no leitor, levá-lo a recordar momentos de sua vida através do texto literário ou apresentá-lo a uma realidade diferente da qual ele conhece, ou apenas diverti-lo. Uma assídua leitora enviou-me um simpático e-mail agradecendo-me pela crônica “Sobre pedaços de mamão, banana... e a natureza” – infelizmente ainda não foi a aquela bonita para quem dediquei carinhosamente a estória, mas rogo a Deus pelo dia em que ela alegrará com algumas gentis palavras este seu humilde admirador – pois esta a fez recordar das férias de sua infância passadas no sítio dos avós, da casa simples rodeada por uma enorme varanda com redes balançando ao vento e de onde podia-se contemplar mangueiras, cajueiros, pés de jambo, pitangueiras e sapotizeiros que atraiam a visita de passarinhos, cutias e outros bichinhos.

Ela também quis saber se realmente pica-paus chegavam à minha janela e, embora o único que eu tenho absoluta certeza de já ter visto na vida foi aquele do desenho animado, respondi-lhe garantindo que este agia tal qual, usando o bico para dar marteladas, embora eu fosse incapaz de distinguir se este era um genuíno pica-pau ou apenas uma ave qualquer fazendo-se passar por um. Fiquei intrigado com aquela dúvida e resolvi tirá-la a limpo pesquisando na internet, mas depois de exaustiva procura não encontrei nenhuma imagem que se assemelhasse ao meu ilustre visitante, uma ave de porte maior que um passarinho, coberta por uma plumagem amarelo canário e o feliz possuidor de um bico longo e robusto. Mesmo assim não esmoreci em meu intento e resolvi tentar identificar o meu pica-pau com alguém que entendesse do assunto através de uma foto. Munido de minha câmera fui à cata da ave pelas redondezas da casa, mas na minha primeira tentativa não encontrei nenhuma. Fui ingênuo ao supor que os pica-paus fossem como as rolinhas ou os pardais que existem aos montes e nos visitam a toda hora por causa das frutas que lhes oferecemos.

Tentei a seguinte estratégia, deixei a câmera à mão para o caso do pica-pau aparecer enquanto eu trabalhava em minha sala, próximo a uma janela. Devo confessar que foi uma tarefa difícil escrever e ficar vigilante ao que se passava do lado fora, mas finalmente um pica-pau deu o ar da graça e antes de eu mirar no alvo ele se foi tão rápido quanto tinha chegado. As tentativas seguintes foram igualmente sem sucesso, o que me fez concluir que os pica-paus são seres inquietos ou que não gostam de serem fotografados, razão pela qual nunca esquentam o lugar onde pousam. Por mais que eu fosse mais ágil, este era sempre mais rápido que eu.

As tentativas frustradas me fizeram sentir fome e, como um passarinho, fui atrás de uma banana voando pela casa... Enquanto descascava a fruta ocorreu-me uma ideia brilhante e tão obvia. Por que não usar um pedaço da banana para atrair o pica-pau e quando este se detivesse bicando-a eu teria mais tempo para fotografá-lo? Foi o que eu fiz, da banana que eu comia parti um generoso pedaço que joguei sobre o telhado que cobre a área de serviço que fica em frente à minha janela e voltei aos teclados. Realmente é muito difícil trabalhar em casa, pois volta e sou distraído com assuntos domésticos ou qualquer outra coisa. Cerca de uma hora depois, um pica-pau pousou de olho grande na isca e caiu feito um pato em minha cilada. Posou para uma bela foto que enviei por e-mail para o meu amigo Rogério, um grande apreciador de aves tanto voando como pousadas em seu prato. Respondeu-me desconcertado que o meu pica-pau mais parecia um bem-te-vi, mas que se eu fazia tanta questão de uma identificação positiva, este poderia ser também o famoso pica-pau-amarelo!

Rio Vermelho, 30 de julho de 2011.