segunda-feira, 13 de abril de 2009

Mas, para quê mais tempo?

Outro dia encontrei um querido amigo e vizinho do bairro ao voltar do meu mergulho diário de meia hora na praia da Paciência. Este é um pequeno hábito que cultivo há meses. O mar estava calmo e límpido, parecia o mar azul do Caribe. Cancun fica aqui no Rio Vermelho! Meu amigo Bartolomeu estava sentado na balaustrada admirando os barcos bailando ao sabor das ondas da enseada de Santana, tendo ao fundo um imenso horizonte azul manchado de branco. Fazia isto brincando com o costumeiro palito de dente no canto da boca. Quando ele se encontra neste estado contemplativo, é porque está matutando alguma coisa. Seus pensamentos estavam envolvidos com uma questão filosófica sobre o tempo. Não é nenhuma novidade que a simples contemplação do mar da Bahia é capaz de inspirar seu expectador pensamentos filosóficos e profundos. Meu amigo fora acometido deste arrebatamento. Neste caso, poderia ser mais uma questão física também, pois o seu questionamento era sobre como as pessoas hoje em dia se preocupam em ganhar tempo. E para poupar tanto tempo, procuram fazer as coisas com mais rapidez. Estão sempre apressadas para ganhar mais tempo. Se lhes sobrassem realmente mais tempo, poderiam estar ali sentados ao seu lado admirando a beleza do mar, filosofou. Mas por que tanta pressa, ele se perguntava. Onde as pessoas pretendem chegar? E o que fazem com o tempo que lhes sobra? Se é que lhes sobra algum realmente. Ele é uma pessoa que viveu mais de setenta anos – e espero que viva por mais setenta! - e do alto de sua experiência e conhecimento, percebeu que em sua juventude ele já correu muito e no final chegou ao mesmo lugar onde está hoje. Correr tanto não lhe fez nenhuma diferença, pois não ficou mais jovem ou vai viver mais por causa disto, e nem ficou mais sábio do que os seus cabelos brancos sugerem. E nem mais rico ou pobre. As pessoas simplesmente correm por que o sistema lhes incutiu na cabeça que estão perdendo tempo de algum modo. Como se o tempo fosse algum bem mensurável e tê-los a mais fosse fazer alguma diferença. Então, correm sem sentido e para o vazio. Perdem o tempo correndo para ter mais tempo.

Esta sua preocupação me faz pensar em muitas coisas sem sentido que fazemos pela vida e nem nunca nos damos conta disso. Lembrei de um filme clássico. Um homem vagando pelo centro da cidade grande, perdido na noite, entrou casualmente num inferninho onde pessoas se amontoavam para ouvir uma banda de rock no palco adiante. Ao final da música, a platéia ovacionou o guitarrista que, ensandecido, tirou o instrumento do ombro e o destruiu batendo-o violentamente contra o piso. Apesar de quebrada em pedaços, cada parte da guitarra continuava presa à outra pelas cordas. Em seguida, jogou-a sobre o público delirante, que passou a se digladiar para possuir aqueles destroços como se fossem eles algum tipo de troféu. O tal homem que acabara de chegar ao lugar também entrara na briga, arrebatando os restos de guitarra das mãos de um fã e, em seguida, fugindo do local correndo pela rua com uma pequena multidão ao seu encalço querendo arrebatar-lhe o dito troféu. Depois de alguns quarteirões, as pessoas desistiram da perseguição. Ele se vê sozinho novamente. Mais adiante, ele passa por uma lata de lixo onde deposita os restos da guitarra. Ela não lhe servia mais de nada. Perdera sua importância e se tornara lixo. Esta busca incessante por ganhar tempo, como a disputa pelo troféu, se igualam pelo vazio de sentido. O barato está no processo para se consegui-lo, sem se pensar mais profundamente no seu significado e em sua utilidade. Evoluímos muito como seres humanos e, no final, nos tornamos seres autômatos.

Certa vez, eu ficara mais tarde no escritório para adiantar o serviço. O segurança do prédio, em vistoria pelo andar, me descobriu enfurnado em minha sala atrapalhado em meio á papelada.

- O que faz o senhor aqui ainda a esta hora? – perguntou surpreso.

- Estou pondo em dia o serviço atrasado. – respondi sem lhe dar muita confiança.

- O expediente já terminou. O senhor já está fazendo o trabalho de amanhã. Vá para casa – aconselhou o vigia.

Rio Vermelho, 10 de abril de 2009.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O meu caro amigo JR.

O meu amigo JR que é um das pessoas mais gente boa que conheço e também uma das mais mal humoradas. O personagem está sempre de cara enfezada e pouco ri. A menos que lhe contem uma boa piada. Neste caso, dá boas gargalhadas. Se eu não o conhecesse tanto e soubesse que o sujeito é uma boa pinta, eu diria que ele foi o inventor do mal humor. Também não é para menos. Quase tudo em sua vida deu errado.

    Quase ficou milionário ao fazer uma quina, não tivesse um prosaico furo de pneu lhe desviado do percurso até a lotérica. Depois do concerto feito numa borracharia próxima, resolveu não fazer o jogo naquele sábado. O pneu furado lhe deu uma sede danada apesar de ele não ter feito esforço algum. Preferiu tomar uma cerveja num boteco mais adiante. O jogo poderia ficar para a semana seguinte, nunca ganhava mesmo. Naquela noite deixou de ser o único ganhador do prêmio. Seus cinco números tinham sido premiados e nenhum apostador levara. Nunca mais entrou numa lotérica. Segundo ele, um raio não cai duas vezes num mesmo lugar.

    Suas tentativas de casar e ser feliz para sempre fracassaram feito plantação de milho em estiagem. A primeira noiva tinha nome de flor. Chamava-se Rosa. Foi também a primeira namorada. Depois do arrastado noivado de quase uma década, ele finalmente tomou coragem para fazer da moça uma mulher honesta. Pediu-lhe a mão em casamento. Pedido aceito na hora. Um apartamento de primeira foi logo pago a vista e decorado por profissional renomado do ramo, para abrigar o jovem futuro casal. Enxoval fino. Tudo nos trinques. Pois não é que a miserável o largou às vésperas do casório? Fugiu com o tal do decorador. Nunca mais JR voltou ao imóvel, de tanto desgostoso. Terminou vendendo-o ao primeiro comprador por mixaria, desde que não botasse mais os pés lá. Visitei o lugar dias antes da tragédia. Fui ajudá-lo a instalar o videocassete importado. Digo que o decorador ladrão de noivas fez um excelente serviço. E deve ter feito mesmo, do contrário, a noiva não fugiria com ele.

     Não muito tempo depois, ele foi no interior onde era o senhor de umas terras. E lá conheceu Maria Rita, uma boa moça. Menina simples, mas de família digna. Namorou na porta quase um ano. Nunca saia com a moça se não fosse alguém de junto para segurar a vela. Às vésperas do Natal, pediu-lhe em casamento. Em maio deu-se o matrimônio como mandava o figurino e, em agosto, o divórcio. Até hoje o motivo do desenlace permanece um mistério. Ele não toca no assunto. Só há conjecturas. Uma delas é que o casamento nunca foi de fato consumado. Motivo suficiente para JR perder a paciência e devolver a moça ao pai do jeito que veio de fábrica. Resolveu nunca mais casar. Não merecia tanto desamor. Passou a freqüentar os melhores puteiros da cidade, com o intuito de sublimar suas decepções e sofrimentos amorosos. Ótimo remédio.

    JR é um homem fino e de bom gosto. Já tem quase setenta anos. Desde adolescente que tinha gosto pelos clássicos. Sua discoteca possui mais de cinco mil discos. E, para desfrutá-los, comprou equipamento de ultima geração feito sob encomenda na gelada Finlândia. Ele adquirira algo semelhante a um Rolls Royce da eletrônica. Uma maravilha. Cheio de frescuras. Por exemplo, se o disco não fosse de boa qualidade, ele o recusava. Em suas horas de lazer, meu amigo solteirão convicto, sentava-se na varanda de sua casa tomando excelente vinho francês e ouvindo sua música clássica. Parecia até que a orquestra estava em seu jardim. Um dia a geringonça parecia não funcionar bem. O som estava baixo. O técnico veio e não descobriu nada. JR foi ao médico e foi informado que estava ficando surdo. Teria de usar um parelho e ouvir a música com volume mais alto. Ele que já andava de mau humor, ficou com mais mau humor ainda. Mas o pior ainda estava por vir.

    Certa manhã, quando despertou de um sono profundo, JR olhou pela janela e verificou que o dia ainda estava escuro. Virou-se para o outro lado e voltou a dormir. Mas alguma coisa estava errada. Seu relógio biológico lhe dizia que já estava na hora de levantar, tomar um banho e ir para o batente. Algo de ruim acontecera. Constatou, estarrecido, que perdera a visão em meio a uma noite tranqüila de sono. Foi no médico. A perda parcial da visão foi diagnosticada com um nome complicado, mas nem por isso curável. Umas gotinhas de colírios e uns comprimidos controlariam o estrago. Ele só enxergaria imagens embaçadas e distorcidas. Meu coitado amigo JR ficou amargurado. Quase surdo e cego, não poderia mais trabalhar. Foi tomado de um tremendo mau humor.

    JR ganhou um relógio de ouro pelos anos de serviço e foi mandado para casa mais cedo. Passava os dias ouvindo os clássicos e como não podia ler ou ver TV, adquiriu o curioso hábito de ouvir a TV Senado e TV Câmara. Este novo hábito só agravou o seu mau humor. Também não era para menos, aquilo lá é um esgoto a céu aberto. Acho que mesmo que ele não tivesse perdido a visão e a audição, tomar conhecimento do que se passa pelos intestinos do Congresso Nacional já é o suficiente para deixar qualquer um infeliz. Acompanhava as decisões da Casa, não digo que diariamente porque senadores e deputados não são afeitos ao trabalho diário, mas assistia, ou melhor, ouvia, sempre que tinha sessão. Aprendeu o nome da corja inteira apenas reconhecendo-os pela voz. Mesmo aqueles que se salvavam não eram grande coisa como ser humano. Mas enfim, se eles estão lá, é porque é o melhor que merecemos. Todos os discursos, decisões e discussões eram acompanhados com atenção, como se tudo aquilo tivesse um feito imediato sobre ele. Ele sempre estava aborrecido com esta ou aquela medida do congresso. E sem falar nas más notícias políticas e econômicas que ouvia nos noticiários. Todo este excesso de estar bem informado lhe fazia mais mal que bem, e devo dizer que o mesmo efeito causaria a qualquer pessoa descente. Outra coisa, JR é um dos caras mais honestos e éticos que conheço. Caso fosse eleito para o senado, por exemplo, teria o mandato cassado, devido a estes seus 'defeitos'. Sempre que dou uma passadinha para vê-lo, ele não fala de outra coisa que não seja dos desmandos do país. Está sempre aborrecido com isso. Fala inflamado das roubalheiras políticas. Mas, seu mau humor não afeta a amizade que tenho por ele. Há males muito maiores na alma de um homem, e certamente o mau humor não é um deles.

    Um dia, sua irmã mais nova veio do interior lhe fazer companhia. Amélia era uma solitária e eterna chorosa viúva sem filhos. Não tinha o mau humor de JR, mas gostava de se lamuriar e falava pelos cotovelos. Apenas falava por falar, não sabia manter a boca calada. Talvez porque antes de ir morar com JR, ela vivia também sozinha, cultivara o hábito de falar à medida que o pensamento lhe brotava à cabeça. Não havia um dia que não se queixasse de alguma coisa, ao contrário de JR que, apesar de seu mau humor e de seus revezes, não se queixava de nada além das roubalheiras dos políticos e do governo. JR que já estava acostumado a viver sozinho e sem ter com quem conversar diariamente, em pouco tempo, se arrependeu do convite, mas não disse nada. Afinal ela era prestativa e trabalhadora, e cuidava da casa de um jeito que ele não podia mais fazer. Ela apenas falava pelos cotovelos. Por isso ele quase nunca puxava assunto, ou dizia alguma coisa que lhe incentivasse a tagarelice. E, quando acidentalmente isto acontecia, ele simplesmente desligava seu aparelho auditivo e se isolava do mundo. Eram dois solitários sob mesmo teto. Amélia já se acostumara com o jeito sisudo do irmão e com o seu mau humor. Creditava a isso à sua solteirice e as perdas da audição e da visão.

    Certa tarde de calor, JR estava desfrutando da brisa que soprava em sua varanda, tomando uma limada, quando a irmã se aproximou com seus habituais queixumes. Ela estava se sentindo solitária aquela tarde e queria conversar. JR não estava afim de papo, para variar, e foi logo avisando.

    - Não estou para conversas. Hoje estou de mau humor.

    - E quando é, meu irmão, que você não está de mau humor? – perguntou irônica.

    - Hoje eu estou pior! – disse enfezado.


 

Rio Vermelho, 5 de abril de 2009

    

segunda-feira, 30 de março de 2009

Diet, light ou orgânico?

Nunca vi tanta gente preocupada com o que enfia na boca. Refiro-me a alimentos, é claro. Querem estar saudáveis. Viver com saúde é fato inquestionável. Não dá para imaginar uma vida feliz ao contrário. Vivemos em épocas em que todos desejam esticar o próprio prazo de validade e com mais saúde. Ou queremos viver com mais saúde e por isso viveremos mais um pouco? Difícil saber o que realmente importa. Viver mais ou ter uma vida saudável. Mas a que custo?

    Tenho amigos que levam isto tão a sério que terminam exagerado na medida. Não comem esta ou aquela comida na mesma refeição. Não faz bem à saúde, dizem, embora sejam alimentos saudáveis. Nunca ouvi falar de ninguém que tenha morrido por misturar comidas no prato. Agem como se fossem membros de alguma nova religião. Não comem nada que não seja orgânico. Como era possível o mundo antes dos orgânicos? A palavra transgênico soa-lhes como uma blasfêmia, um verdadeiro pecado. Já baniram há muito tempo qualquer tipo de carne do cardápio. E como suas escolhas terminam sendo limitadas, passam a maior parte do tempo imaginando o que vão comer e como consegui-lo, uma vez que o seu saudável alimento não se encontra em qualquer mercado ali da esquina. Para obtê-lo, exige-se certo esforço extra. Ser saudável, dá trabalho, acreditem. Não comem isso, não comem aquilo. Com tantas restrições, impossível convidá-los para comer fora. Terminam cozinhando suas próprias refeições porque só eles é que sabem como aproveitar melhor o alimento. Hum... ensopadinho de abobora com chuchu, sem sal, acompanhado de arroz integral orgânico e caldo de repolho, uma delicia! Esta gororoba deve ser até saudável mesmo, mas duvido que seja esta coca-cola toda. Embora se alimentem bem, segundo seus conceitos, eles estão sempre se queixando de fome e de cansaços misteriosos. Mal humor. São magros como nordestinos fugindo da seca no sertão. E eu que ouse lhes dizer que tudo isso é o efeito da porra da dieta maluca em que se meteram. Já ouvi caso de um sujeito que não comia nada, queria se alimentar apenas da luz solar. Quase virou vegetal! Lembrei de um casal de amigos do papai que fazia macrobiótica. Pareciam duas almas penadas. Quando vinham almoçar em nossa casa de praia, quase todo fim de semana, faziam enormes pratos de feijoada com todas as carnes e ainda lambiam os beiços. Mas quanta fome!

    Existem aqueles que simplesmente não pensam no assunto. Não estão nem ai. Não se importam com o que comem. Pedem no Mcdonalds o tradicional sanduíche bombando em calorias e colesterol que faz coronárias tremerem de pavor. Em seguida, ouvem da balconista depois de pedirem o refrigerante. Diet ou normal? Como se isso fizesse alguma diferença! Fazem, então, as pazes com a consciência ao pedirem uma diet, pois afinal, a saúde vem em primeiro lugar! Cada um tem a sua própria dieta saudável e uma boa explicação para ela. Neste caso, o açúcar dos refrigerantes é que é o grande veneno.

    A indústria alimentícia aproveitou essa onda – minha intuição diz que foi ela quem a inventou – e encheu as prateleiras dos mercados com produtos industrializados com pinta de saudáveis, acondicionados em embalagens ecologicamente corretas. Olha como eles são preocupados com a saúde do planeta, até a embalagem é feita de material reciclado. Difícil saber qual a diferença. Diet, light ou orgânico. Todos garantem fazer bem à saúde, evitam que pessoas engordem e prometem vida longa. Ao contrário de elas simplesmente fecharem a boca, basta comer estas maravilhas.

    A verdade é que nunca saberemos quanto tempo a mais viveremos depois de ingerir tanta saúde, até porque ninguém sabe o dia que vai prestar contas com o criador. Ou se todo aquele esforço de só comer alimentos saudáveis e negação aos prazeres da carne terá realmente valido a pena. Cada um de nós tem uma conformação orgânica diferente. Uns são altos, outros são baixos. Alguns são magros, mesmo que comam um boi na hora do lanche. Outros engordam comendo apenas uma ervilha. Meu vizinho octogenário fuma feito uma chaminé desde os catorze, está vendendo saúde. Outro mais jovem, amigo da família, foi levado pelo câncer nos pulmões sem nunca ter posto um único cigarro na boca. Fico imaginando até onde tanto cuidado realmente faz alguma diferença. Não sugiro que as pessoas saiam por ai fazendo de tudo, mesmo sabendo que um dia terão de morrer mesmo. Aproveitem que a vida é curta, mesmo só comendo diets, lights e orgânicos!

    Nunca tive gripe ou outro tipo de doença. Sou saudável, mesmo comendo de tudo. Não exagero em nada. Não sei quantos anos viverei, mas espero não quebrar nenhum recorde. Detesto comidas diets ou lights, e não sei o gosto de um alimento orgânico. Dizem que é gostoso, não duvido. Uma alface orgânica tem o sabor de alface mesmo, já me prometeram. O tomate, então, nem se fala. Mas como eu como tudo temperado, jamais saberei a diferença. Quando estou em lugar que me oferecem algo light ou diet, sempre recuso polidamente. Mas em seguida, me explico. Minha filha, não como nada muito saudável ou que prometa me fazer viver mais tempo. Tudo em excesso faz mal, mesmo comidas saudáveis, sabia? Tenho medo de ficar saudável demais, ter um piripaque e morrer antes da hora. De qualquer forma, espero morrer doente, e não saudável.

    Este assunto tem visitado meus pensamentos ultimamente. Mas não imaginem que estou querendo seguir algum tipo de dieta. Nada disso. Apenas penso no assunto, como penso em outras coisas, como em roubalheiras em Brasília, por exemplo. Outro dia me vi na seguinte situação bizarra. Fui até a loja comprar veneno para rato. Têm aparecido uns enormes e bem saudáveis aqui por casa. Eu gosto de animais e jamais faria mal a eles, mesmo no caso de ratos. Preocupado com o bem estar dos roedores, pedi um veneno orgânico, pois minha intenção era de exterminá-los, mas sem fazer mal à saúde deles!

Rio Vermelho, 26 de março de 2009.

quarta-feira, 18 de março de 2009

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Estórias para quem tem pouco tempo.

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Valeu!

Parabéns pra você!

Não sou fã de festa de aniversário de adulto. Não tem nem 'brigadeiro' e nem 'olho de sogra'! Considero-a uma das comemorações mais chatas, seguida da festa de Natal, é claro. Nunca comemorei o meu, embora não seja contra quem o faça. Até aplaudo a iniciativa! Festa de aniversário é uma daquelas tradições familiares cultivadas desde o berço e que se estende pela a idade adulta como parte de nossa formação. Não nos habituamos a cultivar tal costume aqui em nossa casa, talvez por uma questão de calendário. É que o meu aniversário - e o de outros três dos meus seis irmãos - cai no auge das férias de verão, quando os amigos estão longe. Não tinha quem convidar, portanto. Nem mesmo aqueles parentes mais próximos, pois somos imigrantes do Ceará. Os parentes mais próximos moravam longe! Por isto, cresci aleijado, sem nunca fazer festinha no dia do meu aniversário. Para falar a verdade, meus pais nunca foram apegados a tradições e, por isso, os sete filhos nunca tiveram festas de aniversários. Em resumo, não somos pessoas comemorativas.

    O aniversariante que é animado por fazer uma festinha, nunca deixa de reunir os amigos e a parentada para comer um bolinho. Deseja compartilhar o momento por mais um ano de vida com as pessoas queridas. Termina se empolgando e convidando todo mundo. E ai é que começa a chatice.

    Uma amiga que conhecera há pouco tempo, teve a delicadeza de me incluir em sua lista de convidados. Ligou-me pessoalmente e fez o solene convite. Minha presença era indispensável. Não tive como escapar. Um convite por telefone logo assim a queima roupa. Se viesse pelo correio, culparia o carteiro pela minha ausência, entregou o convite depois da data. Se fosse via e-mail, a culpa sobraria para o provedor. Mas um telefonema pessoal fica meio difícil de se esquivar. Primeiro, ela foi cautelosa, perguntando o que eu faria no sábado. Respondi que nada. Em seguida, veio o convite. Seria um almoço. E como eu teria mesmo de almoçar naquele dia, apareci na hora marcada.

    Tenho o mal habito de cumprir horários. Cheguei à casa da aniversariante em ponto, como para comparecer à consulta para exame de próstata. Era o único convidado. Casa ampla e confortável. Fiquei no jardim bebendo uma cervejinha oferecida pelo garçom Moacir e tomando uma fresquinha debaixo de um jambeiro, enquanto a anfitriã dava os últimos retoques na maquiagem. Hora e meia mais tarde, apareceram os outros convivas e depois mais outros até que chegou todo mundo. Não era muita gente. Um bando de desconhecidos. Isto não foi nenhuma surpresa para mim, pois o chato da festa de aniversário é justamente esta possibilidade de você não conhecer ninguém além do aniversariante. Mas não me senti desconfortável por isso. Embora eu não aparente, sou uma pessoa bastante sociável. Sou capaz de puxar conversa até com defunto em beira de cova, para me entrosar no ambiente.

     Aproximei-me de um casal de amigos da aniversariante. Duas figuras apáticas. Eles também mal a conheciam. Coincidência demais, né? Pensei em me queixar do tempo. Sempre funciona. Mas o tempo estava muito bonito e não renderia muito que falar. Lembrei-me do último escândalo do governo. Um ótimo assunto. Só se falava disso ultimamente. Mas os dois não sabiam de nada, tal qual o nosso presidente. Como eles pareciam que não tinham nem assunto para conversar entre si, desisti de perder o meu tempo com eles. Dei uma desculpa e me afastei. Sentei-me ao lado da única convidada bonita e desacompanhada. Tinha a expressão de uma galinha que ia botar um ovo e depois mudou de idéia. Mal comecei a puxar uma conversinha e percebi que alguém já tinha chegado antes de mim e lhe posto uma barriga de seis meses. Seria um menino. Era uma produção independente, mas ela já tinha mudado de idéia. Estava à procura de um pai para o filho a caminho de juntar-se a nós neste mundo. Fiquei mudo e, por falta de outro assunto, fui buscar um copo de refrigerante para ela e nunca mais voltei. Mas enviei um garçom para servi-la, claro. Ela, certamente, sabia como se livrar de chatos como eu.

    Conversei com outro. Estava meio abandonado num canto encostado junto a uma janela que dava para o jardim. Conversar com as plantas também uma boa idéia. Era um sujeito meio calado. Só conhecera a aniversariante há uma semana. Hum...Tomava um uísque e se queixava de dores na coluna. Adoro conversar sobre dores nas costas. Disso eu entendo e muito, pois padeço deste mal. Seu tratamento resumia-se a tomar analgésicos e pensar em algum dia talvez ir ao medico. Como a sua experiência não era tão rica no assunto como a minha, falei mais que ouvi. Dei os meus conselhos de expert.

    Finalmente a comida foi servida para alegria geral. Todos os convidados abriram um largo sorriso quando a mãe da aniversariante anunciou em voz alta. Uma paella supimpa. Fiz meu pratinho e fui sentar numa mesa onde haviam três outros convidados. Uma tia, a sobrinha e o namorado. Cheguei logo no início da conversa. O assunto era uma renite. Sei muito pouco desta moléstia, mas achei interessante ouvir a sobrinha falar sobre sua mazela. Ela era muito linda e fiquei encantado com a descrição detalhada de todo o seu sofrimento. A tia era uma senhora agradável e falastrona também. O rapaz só concordava com tudo, daria um perfeito marido, pensei. De renite, pulamos para reformas em casa. Tinha sido a poeira de uma construção em sua residência a causadora do nosso assunto à mesa. Resolvi ficar ali com aquele grupo ouvindo as duas tagarelas e dando um pitaco no assunto de vez em quando. Éramos a mesa mais animada da festa, vejam só.

    Depois do almoço seguiu-se o grande momento. Cantar os parabéns e apagar as velinhas. Minha amiga não economizou em velinhas. Cantamos todos juntos batendo efusivas palmas. Eu estava logo na frente puxando o coro a plenos pulmões de entusiasmo. Cantava que nem um Pavarotti 'parabéns pra você! parabéns pra você!'. Comi um pedaço do bolo e fui embora logo em seguida. Missão cumprida. Amigos, não é por achar festas de aniversário um saco que não deixarei de marcar presença na sua próxima primavera!

Rio Vermelho, 13 de março de 2009.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A falta que ela faz.

Esta semana li que burocratas, cientistas e ambientalistas do mundo inteiro vão se reunir na Turquia para discutirem o problema da falta de água no planeta Terra. A coisa ta ficando séria, né? Isto mesmo, daqui a alguns anos, vai faltar água pra quem tiver sede. Como todo mundo, cuidarei de fazer meu estoque aqui em casa. Encherei com água garrafas, panelas, latinhas, sacos, sacolas plásticas, enfim qualquer coisa onde ela possa ser armazenada. Não apenas para o nosso consumo, venderei a dita cuja no mercado negro, na Sete Portas. Ao ler esta dramática notícia, fechei os olhos e tentei imaginar um cenário de como seria o mundo sem este líquido insípido e incolor. Não vi nada. Talvez porque não haverá nada para se ver além de pedras e poeira. A terra será um grande nada. Nem eu estarei por aqui para tirar uma foto e postá-la em meu blog. Na hipótese de haver um único sobrevivente, este poderá atravessar o Atlântico a pé. Provavelmente, ele morrerá de sede antes de chegar ao outro lado.

    Tudo isto é um exagero, é claro. Mas a nação que tiver água sobrando, será mais rica que aquelas que tiverem petróleo em seu subsolo. Isto me fez lembrar de um filme que assisti faz pouco tempo. Um engenheiro americano foi trabalhar na Arábia Saudita, e num passeio de carro por uma estrada através do deserto, encostou num posto para abastecer. Talvez pela falta de fregueses naquela região inóspita, o frentista ocupava seu tempo lavando o pátio do posto com a intenção de abaixar a poeira. Usava uma mangueira. Para a surpresa e terror do americano, o líquido utilizado era a gasolina! O mesmo saudita talvez tivesse reação semelhante, caso presenciasse cena inversa aqui no Brasil. Nosso frentista estaria usando água, é claro. Água já vale mais que petróleo naquela parte longínqua do mundo.

    Nunca demos a devida importância a esta coisa de economizar água, a não ser para não sermos pegos de surpresa com uma conta dolorosa da EMBASA, no final do mês. Lembrei de um vizinho, sempre os meus vizinhos. Um simpático senhor aposentado que gostava de aguar as plantas do jardim e lavar os quatro automóveis da família diariamente. Como se isso não bastasse, ele molhava sua calçada e o pedaço de rua em frente à sua casa demoradamente. Ficava ali na calçada, de pé, segurando a mangueira e se deliciando com o jato de água que saia abundante. Adorava ouvir o barulho da água batendo das pedras da calçada e sobre o paralelepípedo da rua e o cheiro de terra molhada. Saca como é, se aliviar no mato demoradamente enquanto assobia, coça a cabeça e admira a paisagem? Era assim mesmo. Sua conta de água era amarga, apesar de água ser uma coisa barata aqui por estas bandas. Felizmente foi morar num prédio de apartamento chique e o mundo se viu livre um predador aquático.

    Água é um troço tão simples e elementar, mas que é impossível passarmos um dia sem ela. Não há coisa mais gostosa do que tomar um copo de água gelada depois de comer um doce de leite. Ou tomar um banho frio e demorado num dia de calor. Sem água, não dá pra ficar.

    Eu sou um cara que gosta de inventar coisas. Os japoneses já roubaram muitas das minhas idéias, acredite. Eu tenho um invento que desta vez vou patentear, e vou ficar mais rico que xeique árabe. Água em pó. É simples. Ela será vendida em pacotinhos. Quando o cidadão tiver sede, é só despejar o conteúdo num copo e adicionar água e mexer. Tá pronta!

    Estou falando aqui de água apenas para o consumo doméstico e como isso mudará nosso comportamento. É claro que a industria e a lavoura vão penar também. Lembrei de um amigo que ao se formar na faculdade, comprou uma motocicleta e resolveu viajar pelo Nordeste. Seu espírito era jovem e idealista, queria conhecer a fundo o nosso país e suas mazelas. O Lula teve uma idéia semelhante antes de finalmente conseguir ser presidente, mas seu diploma é o de esperteza. Pois bem, Roberto saiu sem lenço e nem documento montado em sua Honda pelos grotões do sertão. Certa noite, apeou numa pequena fazenda e foi acolhido de forma hospitaleira pelo dono da casa e sua patroa. Era um lugar miserável de quente e seco. Os donos da casa eram meio calados. Provavelmente economizavam nas palavras para não sentirem sede. Poupavam a água de beber. Mas eram muito simpáticos. Sorriam sempre. Roberto puxou conversa durante o jantar que foi um guisado de teiú com arroz de pequi, iguaria muito apreciada no sertão em época das vacas magras. Não chovia há oito meses. Dona Francisca já tinha até feito uma promessa de acender 5 velas de um metro aos pés da estátua do padre Cícero em Juazeiro, caso chovesse em um mês. Seu Amâncio não tinha como trabalhar em sua roça, e por isso arranjara um emprego inusitado. Era jardineiro de uma mansão em pleno sertão! Além de aguar as plantas e o gramado diariamente, cuidava, também, da piscina da propriedade que pertencia a um deputado federal importante. Tinha, também, de lavar os carros da família todo santo dia. A seca só não atinge gente importante, disse ele amargurado. A vantagem de trabalhar lá naquela casa é que ele podia beber água à vontade todos os dias e até tomar banho, se quisesse.

    Ao final da janta, Roberto agradeceu muito aos anfitriões e recolheu-se em seu quarto, pois como não havia luz elétrica na casa, todos iam para cama cedo. A casa era de paredes de adobe e caiada. Não havia forro e as paredes não iam até o teto. Deitado em seu catre, Roberto pode ouvir o seguinte diálogo vindo do quarto ao lado. Algo que ilustra bem o que é viver em tempos de pouca água.

    - Bem? – chamou dona Francisca.

    - Eim?

    - Tu vai me querê hoje?

    - Na... – grunhiu seu Amâncio.

    - Ah! Então só vou lavar os pé!


 

Rio Vermelho, 4 de março de 2009.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Roupa suja se lava em casa.

Uma coisa que sempre me maravilha é a diversidade cultural. Isto mesmo, os diferentes valores entre pessoas da mesma cultura ou de culturas diferentes e suas formas para resolver problemas do cotidiano, pelo mundo afora. No final, não existe esta ou aquela forma certa de se fazer uma coisa, e sim aquela que se adéqua à realidade e valores de cada pessoa ou cultura.

    Na quarta-feira de cinzas fui convidado por minha querida amiga Celina para almoçar em sua casa. Ela sabe o quanto gosto de ensopado de frango com cuscuz marroquino e quis me fazer este mimo. Era uma retribuição pelas vezes que a convidei para almoçar aqui em casa e cozinhei para ela. Quem nunca provou o cuscuz marroquino, vale a pena experimentar. Ele não é feito de farinha de milho como o cuscuz que comemos aqui pelo nordeste, é também um prato simples, mas feito de grãos de sêmola de trigo, também chamado de semolina.

    Durante o agradável almoço, feito por sua secretária Esmeralda, ela se queixou do filho. Um rapagão de quase 2 metros de altura, 25 anos de idade e cara de bobão. Mas, como logo descobri, de bobão, ele não tem nada. Está desempregado, ou melhor, quase nunca pegou no pesado. Quis saber o que ele tinha feito afinal, para deixá-la aborrecida. Contou que durante o carnaval ele tinha levado mulheres para casa. Não admitia que ele transformasse a casa em motel. Ouvi aquilo calado, afinal cada um sabe como põe ordem em sua própria casa. Nós brasileiros fazemos uma clara distinção entre a casa e a rua. Sobre isto o antropólogo Roberto DaMatta já escreveu a respeito. Ele diz que a nossa casa é como um templo sagrado onde mora a família, os filhos são educados e onde recebemos nossos amigos e parentes para comemoração de datas e tradições importantes da família. É nela que cultivamos hábitos saudáveis e dentro dos padrões morais de nossa sociedade, e blá, blá, blá. A rua é justamente o oposto, o lugar mundano e profano. Onde se vai à luta em busca do sustento da família. O lugar onde os excessos são permitidos e mesmo padrões morais podem ser postos de lado, ou melhor, deixados em casa. Em resumo, o garoto poderia comer na rua quem quisesse, mas talvez só pudesse levar para casa a namorada, previamente apresentada formalmente aos pais, por exemplo.

    Tal preocupação de minha amiga me fez lembrar de uma conversa que certa vez tive com uma colega de trabalho da Islândia, durante um jantar. A islandesa me mostrou orgulhosa uma foto de sua bela família. Estavam ela, o marido e a filha adolescente de 17 anos sentados num banco de jardim. A Islândia é conhecida pela beleza de suas mulheres, e a beleza de sua filha era uma prova disso. Ela contou que o marido era um jornalista e que a filha ainda estava no colégio, e que, no momento estava morando na casa do namorado. Declaração me surpreendeu por causa de sua jovem idade. Perguntei-lhe se era comum na Islândia, garotas adolescentes morarem sozinhas com o namorado. Ela me respondeu explicando que eles estavam morando juntos, mas na casa dos pais dele, uma vez que ele tinha a mesma idade que ela. Nem trabalhava ainda. Acrescentou que depois de dois meses, ela voltaria para casa com o namorado e ficariam uma temporada. Era sempre assim, eles passavam um tempo lá e outro cá.

    Para nós, brasileiros, este arranjo é impensável, disse-lhe. Os pais sequer admitem que o namorado entre no quarto da filha, e nas raras vezes que isto acontece, a porta tem de ficar aberta. Nos casos mais extremos, a filha e o namorado têm de assoviar e bater palmas freqüentemente para que os pais saibam que suas mãos e bocas não estejam engajadas em alguma atividade indecente! Admitir a filha adolescente morar com o namorado, seria o mesmo que deixá-la viver em pecado. Morar juntos, só depois de casados na igreja e com papel passado, como se diz. Enfim, ainda não aceitamos a idéia de nossas pequenas princesinhas já estarem transando. Contei-lhe que uma amiga estudante de advocacia, portanto uma mulher adulta, ao comunicar à mãe que tinha perdido a virgindade, esta fez um drama, deu um chilique, chorou, tomou calmante. Tornou um assunto íntimo em problema de família, convocando todos, irmãos, tios e avós, enfim, o circo todo, para uma reunião de família para tratar do assunto. A filha já estava estragada e ia ficar viciada em sexo! Os pais brasileiros preferem ignorar a vida sexual dos filhos, daí porque o negócio de motel é tão lucrativo e nunca para de crescer. Na maioria dos casos, financiados com as mesadas que os filhos recebem dos próprios pais! Já nos países nórdicos, o sexo não carrega a culpa do pecado que nos países católicos lhes é impingida.

    Provavelmente, com o intuito de remediar a impressão que me causara, minha colega islandesa acrescentou que havia uma coisa que ela não admitia do namorado. E eu, em minha mente maldosa e perniciosa, fiquei tentando imaginar o que seria ainda mais libertino que permitir a filha adolescente ser comida no quarto ao lado pelo insaciável namorado adolescente. Seria o uso de drogas em casa? Sexo selvagem? O barulho deixaria todos assustados em casa e na vizinhança? Orgia? Fiquei curioso. O que é? Perguntei.

    Então, ela me respondeu com uma ponta de orgulho e triunfo de uma dona de casa islandesa que está em pleno comando de seu lar e de seus direitos.

    - Eu não permito que ele deixe suas roupas sujas para eu lavar!


 

Rio Vermelho, 25 de fevereiro de 2009.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O homem do apito.

Quem vem para estas bandas a passeio, desconhece que, na verdade, Salvador é uma piada. A estória de que aqui é a terra da felicidade é uma mera peça de publicidade enganatória (esta palavra não existe ainda, vamos ver se ela pega!), assim como aquela propaganda na qual um esportista fuma com satisfação um cigarro, para lhe convencer que fumar é saudável. Para quem aqui mora, Salvador é a terra do tormento. A cidade cresceu feito capim num jardim mal cuidado. Ela simplesmente inchou feito uma besta fera em seu pasto universal, sem nenhuma preocupação de planejá-la e ordená-la. Aqui tudo pode, basta ter cara de pau. Bairros ou áreas de bairros que deveriam ser estritamente residenciais foram invadidos pelo comércio, faculdades, bares, restaurantes e ambulantes desbragadamente, infernizando a vida de seus moradores. Tudo isso porque o IPTU desses estabelecimentos é muito mais lucrativo aos cofres públicos (e pessoais) do que o de uma simples residência. O resultado de tudo isso vai além da fronteira do trafego cronicamente congestionado ou da poluição sonora no meio residencial. A relação entre as pessoas torna-se conflituosa e até violenta.

    Só para ilustrar, na frente da casa de um amigo no Rio Vermelho, se instalou um bar que toca musica com o volume alto noite e dia há mais de três anos. Meu amigo já tentou recorrer ao bom senso do proprietário, mas foi sempre recebido a ponta pés. Queixou-se com os órgãos competentes, no caso a SUCOM, sem nenhum resultado. O santo deste bar é muito forte e chama-se indústria da cerveja, mas isso ai já é outra estória... Finalmente ele recorreu ao Ministério Público, que cobrou da SUCOM providencias. E sabe o que SUCOM disse? Não pode fazer nada porque o dito bar nem alvará possui! Acreditem! Vão dar um tempinho até que o bar se regularize para lhe fazer, então, uma visitinha. E o assunto morreu ai. Coisa de ficção.

    Meus problemas de vizinhança inconveniente não são menos diferentes. Tendo lidar com eles conversando amigavelmente com os responsáveis pelo estabelecimento e se não resolver, parto para a guerra! Cheguei aqui bem primeiro e não concordo que alguém tenha o seu lucrativo meio de vida às custas da desgraça alheia. Não me incomodo com que as pessoas trabalhem, desde que não me incomodem. Hoje em dia fala-se muito em 'qualidade de vida' – seja lá o que isto for - e eu quero uma dessas também!

    Minha estória não é sobre nenhum estabelecimento, mas sobre uma única pessoa. O homem do apito. Junto com o movimento dos bares e restaurantes nas redondezas, apareceu aquele personagem urbano e anônimo que você só o percebe quando ele lhe cobra por você estacionar seu carro em via pública. Ele aparece logo quando você chega e estaciona, e em seguida some. Quando você vai embora, ele reaparece sorridente cobrando-lhe por um serviço que não se pediu. Intimidado, o dono do automóvel entrega-lhe um dinheiro. Um falecido amigo meu sempre dizia a estes 'guardadores de carro' que se aproximavam, 'obrigado, mas eu já paguei o IPVA, e não devo mais nada'. Nunca deu um tostão e nunca fizeram mal algum a seu carro, até por que aquela carroça era de dar pena! Os 'guardadores de carro' só existem por que nossa compaixão os incentiva.

    Meu tormento começou há algumas semanas quando comecei a ouvir um apito irritante no inicio da noite e que se estendia noite a dentro pela madrugada. Aquilo começou a mexer com os meus nervos, era muito freqüente. Era um apito curto e estridente rasgando o silêncio da noite, um 'pri!'. Nunca tinha ouvido apitos antes por aqui, era só o que faltava. Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece. Como eu escrevo à noite, aquilo já estava interferindo em minha concentração. Depois de ouvir um apito eu já ficava esperando irritado para ouvir o próximo! Coisa de maluco mesmo. Fui até a porta investigar quem seria o inconveniente apitador. Era o mesmo homem que de dia lava carros na pracinha. Bem, ninguém podia negar que ele não era um homem trabalhador, trabalhava dia e noite! Eu nunca tinha trocado uma palavra antes com aquele cidadão e esta seria a primeira vez que me dirigia à sua pessoa. Aproximei-me e apresentei-me. Pedi-lhe educadamente que diminuísse o apito, pois já estava incomodando. Ele desculpou-se e, em seguida, eu fui embora. Continuou apitando mesmo assim!

    Os apitos continuaram, e eu sou um cara paciente e insistente. As chegadas e saídas de carros eram freqüentes. Um automóvel chegava e ele pri! Outro manobrava para sair e ele pri! Enquanto isto ele dava um priiiii! para se exercitar. Já tinha virado um cacoete! Mais uma vez fui até lá falar com ele. Fui mais uma vez educado, até porque ele tinha tamanho e força para me dobrar ao meio. A minha educação se justificava pelo fato de eu não ser péssimo em luta livre, do contrário, ele passaria a apitar pela bunda! Pedi-lhe que não apitasse mais, pois não havia necessidade e que outros guardadores de carro antes dele nunca tinham apitado. Havia pessoas que queriam dormir e o apito atrapalhava o sono. Falei até que ele deveria se sentir cansado de apitar a noite toda. Disse-lhe que ele já tinha adquirido o mal habito de apitar sem motivo e que nem ele percebia isto. Ele concordou com tudo e prometeu diminuir os apitos. O que eu queria mesmo é que ele parasse com aquilo. Desejei-lhe boa noite e voltei para casa. Ele deu as costas e continuou apitando mesmo assim a noite inteira.

    O que fazer com um cidadão que se sente o dono da rua e demonstra desprezo pelas pessoas? Vai à delegacia e faz uma queixa, sugeriu um amigo. A idéia me desagradou. Achei um exagero, e por entender que a polícia tem má reputação, mantenho-a longe de minha vida. Além do mais, o ambiente de submundo que uma delegacia simboliza para mim, é um tipo ambiente que procuro me manter à distância. Não é lugar para um menino de família. Dois dias depois, estava eu na delegacia.

    Relatei o meu infortúnio e pedi orientação sobre o que fazer. Não queria prestar queixas e nem mandar prender ninguém. Não desejava nenhuma ação drástica. Expliquei que o senhor apitador era um trabalhador, e que seu único crime era abusar do apito. O oficial que me atendeu, me deu um papel com o telefone da delegacia. Pediu que eu ligasse para ele caso o apitador incomodasse depois das 22hs, lei do silêncio. Iriam até o local conversar com ele. Quando o apitador começou a dar seus apitos na noite daquele mesmo dia, fui até ele e contei que estivera na polícia e o que aconteceria caso continuasse apitando. Ele mal prestou atenção no que eu lhe dizia, pois os carros chegavam um após o outro e ele estava mais preocupado com eles do que comigo. Continuou apitando. Fiquei puto. Desejei que ele se engasgasse e morresse lentamente com aquele apito. Agora eu iria jogar pesado. Acabou-se o Cristiano ternura.

    Dois dias depois, voltei à delegacia e fiz uma queixa formal. Tenho sorte e infortúnio de morar no Rio Vermelho, onde se encontra de tudo, desde delegacia de polícia a apitadores! Ele seria intimado a comparecer perante o delegado em data e hora marcada. Eu deveria estar presente. Se antes disso nos entendêssemos, nem ele e nem eu teria de comparecer à audiência, me foi dito. Da minha parte, eu já considerava minhas tentativas esgotadas e não iria procurá-lo para dizer mais nada. Poucas horas depois, ele foi intimado sob forte sol, por um oficial de polícia, enquanto lavava um carro. Naquela noite ele não apitou e nem nas outras que se seguiram. Dois dias antes da data marcada para enfrentar o delegado, ele me procurou muito humildemente e coberto de desculpas. Houvera um equívoco. Era pai de família e homem de bem. Tinha duas filhas para sustentar e esposa. Queria estar em harmonia com todos. Disse que eu estava na minha razão. Ignorava que existisse uma lei do silêncio e que até apito era proibido. Prometeu não apitar mais. Eu lhe disse que lamentava de ter chegado ao ponto de recorrer à policia pois para mim ele era um homem até mais trabalhador que eu. Mas que ele deveria entender que tudo tem um limite. Apertamos as mãos e nos despedimos.

    Quase todos os dias o vejo pelas vizinhanças. Ele me acena e me cumprimenta respeitosamente. Como vai, seu Cristiano? E eu respondo amigavelmente. Como vai, seu Claudio? Não somos mais dois estranhos.    

Rio Vermelho, 17 de fevereiro de 2009.