quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Como num filme de Capra.

É raro, mas não impossível, sermos surpreendidos por gestos de solidariedade e desprendimento em momentos em que somos apanhados por situações adversas, e mais ainda quando estes gestos partem de quem menos esperamos ou de desconhecidos. Eu fico emocionado de encher os olhos de lágrimas quando tomo conhecimento dessas situações, é como ver um filme de Capra ou ver uma pintura de Rockwell. Para quem nunca ouviu falar, Frank Capra, um diretor americano, dirigiu comédias entre as décadas de 20 e 60, seus filmes carregam uma mensagem geralmente otimista e clara sobre o lado bondoso da natureza humana e o valor do altruísmo e trabalho duro. Norman Rockwell vai pela mesma linha, foi um ilustrador americano, retratou o cotidiano das cidades do interior americano de forma inocente e bem humorada.

Estes dias, minha amiga B.H. que mora numa cidadezinha gelada próximo a Nova York, tomou coragem para por os pés fora de casa, depois de uma noite daquelas de muita neve. Tá nevando canivete lá nos States, é o tal do efeito estufa! Ela queria ir até o armazém comprar mantimentos e uma sopa quente para tomar enquanto fica em frente ao computador fuçando o Facebook. Então, ela vestiu sobre a camisa de malha uma blusa de manga comprida de flanela. Por cima desta, foi um suéter de lã fina e cobrindo este um casaco de lã virgem da Nova Zelândia. Para arrematar tudo, pôs uma jaqueta de nylon vermelha forrada com lã sintética, luvas de couro forradas, calça de lã forrada, botas de borracha forradas com lã sintética, meias grossas de lã e, na cabeça, um gorro de lã verde clorofila horrível da Sibéria – uma coisa de meter medo em criancinha. No geral, ela tinha aparência do cão chupando manga. E lá foi ela dar sua caminhada até a 'grosseria'. Ao entrar na loja, passeou pelas gôndolas do mercado colocando alguns itens no carrinho, inclusive uma lata de goiabada feita em Pacajus, no Ceará, que estava na promoção. Foi até o balcão de frios e pediu uma sopa de galinha quente.

Depois de verificar que já tinha tudo que precisava, foi ao caixa onde passou satisfeita as suas compras. Para a sua decepção, descobriu que havia esquecido uma coisa, a carteira de dinheiro! Imaginou, desanimada, seu caminho andando de volta para casa de mãos vazias, naquela manhã, na qual os termômetros marcavam -1º.F do lado de fora. Onde ela estava com a cabeça para esquecer justamente a carteira? Ficou encabulada com a situação, as pessoas na fila assistindo aquele vexame. Não tinha um tostão no bolso nem para levar a sopa quentinha que iria cair bem naquele frio. O jeito era devolver tudo às prateleiras, mas o gerente da loja tranqüilizou-a, disse que não carecia, eles mesmo fariam isto por ela. Saiu ressabiada da loja e, ao passar pela porta automática, surgiu um cavalheiro desconhecido oferecendo-se para pagar-lhe a conta. Ao mesmo tempo, uma senhora, do outro lado, lhe acenava com seu cartão de credito, também oferecendo-se para resolver seu drama monetário. E para completar o festival de bondade, um vendedor trouxe-lhe a sopa para que ela levasse como cortesia da casa. Ela aceitou de bom grado o empréstimo do desconhecido, pois viu nele a chance de poder reencontrá-lo, afinal, ele parecia ter saído de um anúncio do Marlboro, e era daquele tipo de genes que ela estava procurando para os futuros filhos dela. Dispensou o cartão da senhora gentilmente. Aceitou a sopa, pagou a sua conta na loja e, ainda, o gerente mandou levá-la de carro até a sua casa.

Alguns dizem que tudo aquilo foi uma verdadeira demonstração da bondade humana, mas outros juram que todos estavam era com medo do gorro horrível dela!


Rio Vermelho, 25 de fevereiro de 2010.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Comoção

Esses dias, lembrei muito de um colega de escola, um garoto italiano. Não me recordo seu nome, infelizmente. Mas lembro de seu olhar triste e de sua dificuldade em aprender as coisas, principalmente porque ele mal falava o inglês — eu morava, então, numa cidadezinha próxima a Nova York. Sua tristeza não era para menos, explicou-me a nossa professora de inglês, a Mrs. Taub, a sua cidade na Itália tinha sido sacudida por um terrível terremoto. Sua casa foi abaixo e sua família inteira morta como milhares de tantas outras pessoas. A cidade de Nápoles fora toda destruída. Fiquei tentando imaginar quanto sofrimento deve ter passado aquele garoto, perder assim de modo tão trágico toda a sua família de uma só vez e não ter mais onde morar. Os parentes mais próximos que lhe restaram moravam nos Estados Unidos, para onde ele emigrou, na esperança de recomeçar vida nova e curar as suas feridas. E esta foi, provavelmente, a experiência mais próxima que já tive de uma tragédia como aquela. Meu coleguinha era um sobrevivente de uma tragédia.

Ao ver pela TV as dramáticas notícias vindas do Haiti, imagens de cores ainda tão frescas nas quais pessoas ainda respiravam sob os escombros dos prédios desabados, ou eram heroicamente resgatadas, me veio à memória a lembrança daquele coleguinha italiano. Ele deve ter vivido um inferno semelhante àquele, pensei. O Haiti virou pó. O mundo inteiro correu para acudir aquela miserável ilha do Caribe, castigada pelo sacolejo da natureza. A solidariedade mundial provou que ainda não é o fim do mundo e pessoas ainda se sensibilizam com os infortúnios alheios. Até o Brasil impressionou pela rapidez e prontidão. Acostumados a ver nossos governantes agirem com tamanho distanciamento frente às nossas próprias catástrofes, afinal eles não devem ir nos locais onde o povo está sofrendo, para não se exporem a cobranças desagradáveis que os possa constranger, reza o manual do bom político. Melhor ficar de longe e fingir-se de morto até a poeira baixar. Aparecer por lá só depois, para fazer um monte de promessas e aguardar os dividendos políticos até o resultado das próximas eleições. Na catástrofe do Haiti, no entanto, o nosso presidente agiu corretamente ao oferecer ajuda. Logo de manhã cedo, ainda de pijamas, ligava para os quatro cantos do mundo exortando os mais ricos a se unirem ao Brasil, como se o Brasil fosse uma grande potência com recursos sobrando, na campanha para socorrer nossos irmãos haitianos. Isso foi bonito. No entanto, gostaríamos que ele demonstrasse a mesma disposição e solidariedade todas as vezes que os brasileiros fossem acometidos de catástrofes e acidentes trágicos. Mesmo que ele estivesse fazendo uma de suas indispensáveis viagens ao exterior, cancelasse tudo e voltasse ao Brasil correndo, pois seu povo precisava de sua presença. Sabe, aquela situação na qual um amigo ou um parente foi parar na emergência do hospital e, mesmo sem podermos fazer lá grande coisa por ele além de rezar, fazemo-nos presentes para prestarmos solidariedade aos familiares? Pois bem, era isso que gostaríamos que nossos governantes fizessem. Esperamos que nossos governantes sejam bons não apenas nos índices econômicos e realizações, mas, também de serem capazes de demonstrar um mínimo de solidariedade nos momentos de comoção.

Tudo isso me faz lembrar, também, que o Brasil deseja muito ter notoriedade internacional como algum tipo de potência influente no mundo. Nosso governo tenta há anos obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. São ações de grande visibilidade como esta como a do Haiti que o Brasil julga serem importantes para ter seu ingresso garantido nesse restrito clube. Eu espero apenas que o gesto de socorro ao Haiti não tenha sido movido por outro interesse que não o da solidariedade.

Rio Vermelho, 8 de fevereiro de 2010.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Uma tarde longe de casa.

Uma das vantagens de trabalhar em casa, é que você está, obviamente, em sua própria casa. Não precisa ir a canto algum. Não há trafego para enfrentar, e você ainda pode ficar mais tempo curtindo aquela gostosa preguiça matinal deitado, uma vez que seu local de trabalho está a poucos passos de sua cama! Por outro lado, um dos inconvenientes de trabalhar em casa é que você está em casa. Sempre aparece uma distração doméstica para lhe tirar do caminho. Como tudo na vida, trabalhar em casa tem os seus prós e os seus contras, mas, não se iluda, esta forma alternativa de trabalho lhe exigirá tanta ou mais disciplina e rotina quanto se você estivesse num local convencional de trabalho. Como eu careço de ambas, foi por isso que certa tarde resolvi mudar o meu gabinete de trabalho, sabe, o meu canto de escrever. Coloquei meu notebook numa sacola e fui buscar inspiração nos ares do Mcdonalds aqui do bairro, construído no terreno onde funcionou uma fábrica de papel. Da antiga fábrica, só restou a longa chaminé de tijolos e a lembrança de ouvir os seus longos e agudos apitos no inicio do turno da manhã, na hora do almoço e no final da tarde. Ao contrário da fábrica de papel, o Mcdonalds não apita coisa alguma, as coisas acontecem lá silenciosamente. Este episódio me fez lembrar uma professora da faculdade, escreveu um romance inteiro no mesmo Mcdonalds do Rio Vermelho. Pensei comigo mesmo, se ela conseguiu, eu posso tentar!

    Ao chegar à lanchonete, procurei uma mesa onde eu pudesse sentar de costas para a parede, pois isto não apenas evitaria o indesejável reflexo sobre a tela do computador, como também impediria os olhares de curiosos. Eu mesmo, vez por outra, caio na tentação de bisbilhotar, mas ao contrário dos bisbilhoteiros de plantão que o fazem com o único propósito de aprontar intrigas, eu escrevo uma crônica ou um conto, inspirado no apurado de minha bisbilhotice. Desta vez, fui ao Mcdonalds para escrever mais um capítulo do meu livro. Estou chegando ao fim e, por isso, estou num mato sem cachorro! Não é fácil terminar um livro, sabe, dar um sentido a todos os capítulos anteriores e ainda fazer com que aquilo pareça com um livro. Apesar de estar em terreno de um dos grandes símbolos do capitalismo moderno, no entanto, prometi a mim mesmo não gastar um único tostão por lá. Só queria usufruir de uma das mesas e do ar condicionado, que nestes dias de calor infernal, faz o lugar parecer um paraíso!

    Escolhi uma mesa que ficava ao lado de uma janela e que me deixaria de costas para a parede. Ao me acomodar, dei uma olhada em volta para fazer um reconhecimento do terreno. Fui logo surpreendido ao ver que na mesa em frente à minha estava uma famosa atriz de novela com o marido, também ator, e a filharada. Era hora do "Mclanche feliz" em família! Agi com naturalidade, desviando meu olhar imediatamente. Acho que as celebridades têm direito à vida privada e que não devemos ficar olhando para elas como se fossem bicho de zoológico. Além do mais, não sou tiete te estrelas, mesmo porque, muitas delas não são tão interessantes pessoalmente como imaginamos, como em algum papel cativante que já tenham vivido. Simplesmente, não espero encontrar nelas alguma semelhança com algum personagem que gostei. Embora eu tenha esta atitude, acho normal que pessoas fiquem curiosas e queiram dar uma olhadinha. Foi o que aconteceu. Vez por outra alguém saia de seu lugar e arranjava uma desculpa para passar em frente à mesa da estrela global, para certificar-se que era ela mesma, apesar de ela parecer mais baixa que na telinha e também um pouco mais velha. No entanto, uma senhora não se contentou em apenas olhar, resolvendo pedir ao casal global para tirar uma foto ao seu lado, o que foi aceito por eles, mas sem lhe demonstrar entusiasmo e lhe dar alguma atenção. A mulher sacou de sua bolsa o celular com câmera e posicionou-se entre os dois, mandou ver a foto e foi-se embora. Uma das vantagens das câmeras digitais, sem dúvida, é a possibilidade de ver a foto imediatamente depois de tirá-la. Pelo jeito, a senhora tiete não ficou satisfeita com o que viu, e voltou para tirar outra foto mais ao seu gosto. Se você considera que pedir para tirar uma foto, interrompendo aquele momento em família, já é ser inconveniente, imagine fazer isto cinco vezes seguidas, pois foi o que a velha fez, cada vez que verificou que a foto não ficara de seu agrado. Entretanto, o casal global pareceu já estar habituado com aquele tipo de abuso, tanto que não foram realmente simpáticos ou deram muita trela à fã. Apenas tire a sua foto e vá-se embora, devem ter pensado todas as vezes.

    Duas mesas ao lado da minha havia outro casal. O homem era um pouco mais velho que a moça, mas não o bastante para ser seu pai. Estavam sentados um de frente para o outro. A moça tinha o olhar triste e evitava olhá-lo nos olhos. O homem tinha a voz um pouco irritada e tentava se explicar à moça. Ele dizia que não parava de pensar nela e que a levava muito a sério. Ela falava muito baixo e não pude escutá-la. Pensei em pedir-lhe para falar um pouco mais alto, mas tive receio de ser mal interpretado. Ele contava para ela que até tinha comprado duas passagens aéreas e feito reserva em um hotel bacana, para passarem o ano novo juntos. Mas a esposa dele tinha atrapalhado tudo. Malditas sejam estas esposas, sempre se metendo onde não são chamadas. Ele prometeu à moça compensá-la de algum modo. Quem sabe ele a levaria às compras no shopping e a deixasse extravasar aquele sentimento de revolta, comprando o que ela quisesse com o seu cartão corporativo, imagino que ele seja um respeitável alto funcionário federal e um feliz guardião de uma dessas maravilhas. Certa vez, ouvi da boca de uma mulher que uma ida às compras tem o poder de curar qualquer coração feminino magoado. Ela fez aquele olhar de vítima. Os dois se levantaram, ele segurou a mão da moça e caminharam juntos em direção à posta de saída.

    Em outra mesa próxima, percebi que havia um garoto aparentando ter não mais que 18 primaveras. Ele usava um boné cobrindo o cabelo curto e parecia ansioso esperando por alguém. Volta e meia um daqueles adolescentes uniformizados que trabalham no Mcdonalds vinha com um pano de limpeza passando sobre as mesas ou com um esfregão limpando o chão. Recolhiam bandejas com restos abandonados pelos clientes. Eu já havia percebido que o lugar era muito limpo, mas nunca tinha prestado atenção naquela turma. Como os garis que varrem diariamente as nossas ruas, eles são seres invisíveis que só damos a devida importância quando não fazem bem o seu serviço.

    Não demorou muito até que finalmente, como eu imaginava, a pessoa por quem o garoto de 18 anos tão ansiosamente esperava, chegasse. Era outro garoto, talvez um colega de escola que já não via desde o início das férias escolares. O aperto de mão caloroso seguido de um forte abraço foi inevitável. Percebi que as coisas tinham mudado muito desde os meus tempos de escola, porque, enquanto se abraçavam, um garoto beijou o cangote do outro. Em seguida, sentaram-se à mesa e conversaram de mãos dadas. Acho que foram raras as vezes que apertei a mão de um colega de escola, e precisava haver um motivo muito especial para aquilo. Mas isto foi no século passado.

    Não pensem que não fiz outra coisa além de xeretar a vida alheia. Consegui terminar mais um capítulo de meu livro e fiquei imaginando se valeria apena escrever sobre aquela tarde no Mcdonalds. Achei que seria uma boa idéia e que provavelmente eu deveria voltar lá para fazer aquilo. Não gastei um só tostão por lá, como prometera, e ainda tive acesso grátis à internet, com a nota de compra que pedi à Adriana Estevez! Sou um cara ousado.

Rio Vermelho, 19 de janeiro de 2010.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Esta não é a minha praia.

Início de ano é sempre aquela coisa meio arrastada, embalada na preguiça que vem com o sol ardente e a quentura do verão. Não dá para resistir a uma ida até a praia e ao mergulho na água fria. Este clima assim de veraneio e prazeres faz até eu me sentir culpado de estar feliz enquanto o sul do país se afunda numa tragédia de água das chuvas e lama, levando na enxurrada a dignidade e o sonho de muita gente boa e honesta. Entra ano e sai ano, e parece que nunca estamos prevenidos contra as forças da natureza e, muito menos, prontos para resistir a elas. O negócio é que, para o político malandro – e político é sinônimo de malandragem - é mais rentável eleitoreiramente aparecer de salvador da pátria em dia de tragédia, do que tomar medidas impopulares para preveni-las em dias de sol. Mas o fato é que no dia 31, convidei uma querida amiga da Federação para vir conhecer a nossa praia da Paciência aqui no Rio Vermelho. Ela queria ir um lugar calmo e com pouca gente, o que é quase uma raridade nesta época do ano em Salvador. Mas acontece que a Paciência é uma pequena enseada desprezada pelos milhares de passantes na avenida que a margeia lá em cima da balaustrada. E espero que continue assim porque a Paciência tem uma grande virtude, ela uma ótima praia. Apesar de estreita, ela tem uma larga extensão de areia que começa rente à murada que a separa do asfalto lá em cima até a beirada da água. As pedras ficam apenas nas duas extremidades de cada lado da praia, deixando todo o resto livre para o banho e as largas braçadas em sua água cristalina e de ondas tranqüilas no verão. Apenas os moradores do bairro a freqüentam e talvez alguns gatos pingados de outras paragens. Há apenas uma única barraca com poucas cadeiras que fica próxima à murada e longe dos olhares dos banhistas, e que não causa nenhum inconveniente. Tenho ido lá quase todos os dias no final da tarde, voltando de minha caminhada até a Ondina. Assisto o por do sol da água enquanto me refresco. Não minto quando digo que na maioria das vezes, sou o único banhista a estar lá àquela hora.

    Acostumei-me a freqüentar praias vazias, e quando digo vazias, quero dizer com pouca gente. Não sou uma pessoa anti-social, só não gosto da idéia de ter de disputar espaço para por uma toalha sobre a areia ou, pior ainda, descobrir que situação semelhante acontece também na água. Recentemente, recebi um e-mail de um amigo com uma série de fotos de uma cena praiana. A primeira foto, vista do alto, era um 'close' de um pequeno grupo de pessoas na água se banhando. A foto seguinte, mostrava a mesma cena ampliada, revelando que aquele grupo não era assim tão pequeno como era mostrado na primeira foto. Havia mais gente na água. A seqüência de fotos seguinte mostrava uma cena medonha, uma verdadeira multidão de milhares de pessoas ao longo de uma praia em algum lugar da na China, um verdadeiro formigueiro humano de banhistas. Na areia da praia, a cena se repetia, era uma invasão de guarda-sóis coloridos formando um manto sem fim. Nunca tinha visto nada igual e espero jamais ver pessoalmente, uma praia com mais gente que areia está fora da minha programação. Nunca ponho os pés lá.

    No segundo dia do ano, depois que uma chuva grossa lavou de vez os resquícios do ano velho, e o sol abriu por entre as nuvens como uma promessa de um resto de dia esplendoroso, aceitei de um amigo o convite para irmos à praia. Ele queria ir à barraca do Luciano em Piatã, fora de meu território, mas como estou sempre curioso por novidades, topei o convite. Luciano é um barraqueiro um tanto folclórico, gosta de circular por entre as mesas dos clientes distribuindo simpatia, usando na cabeça um chapéu Panamá, óculos escuros e um charuto entre os dedos, como um verdadeiro anfitrião recebendo amigos em sua casa. Rumamos para lá de carro. Ao estacionarmos, percebemos que a barraca ainda estava em recesso natalino, não havia lá vivalma. Para não perdemos a viagem, seguimos pela orla como dois navegadores desbravadores à procura de um porto seguro. Terminamos aportando na barraca que é a sensação deste verão. Seu luxo e inovações nem de longe lembra as simplórias barracas que são apenas um local para servir de apoio ao banhista, servindo bebida gelada e petiscos a preços exorbitantes. Além da tradicional cervejinha gelada, o cliente mais exigente pode tomar champanhe francês ou comer petiscos finos ou até mesmo tomar uma massagem, ou deitar ao sol numa espreguiçadeira sobre almofadas fofas com estampas alegres. Como era de se imaginar, o local estava apinhado de gente, tanto na dita barraca como na areia da praia e no mar, e como me pareceu ser o cartão de visitas da casa, o serviço era coisa de Bahia, péssimo! Gravei na mente o nome do lugar e prometi a mim mesmo nunca mais voltar lá. Ou melhor dizendo, com uma praia em meu bairro que é um paraíso, por que é que eu fui me meter na praia alheia?

Rio Vermelho, 10 de janeiro de 2010.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Desculpa anã.

O maior desejo de Lindiane era um dia se casar e formar uma bela família, assim como fizera os seus queridos e amados pais. E para realizar este maravilhoso sonho, ela contava ter ao seu lado Dinho, seu futuro e amado esposo, depois de quase seis longos anos de noivado. Isto sem levar em conta os outros três de namoro na porta, sob os olhares severos e disfarçados do pai. Para ela, não havia bem mais valioso e sagrado que uma família. Casar e ter filhos poderia parecer, para muitas mulheres modernas, uma coisa antiquada, apesar de que, invariavelmente, era o que lhes acontecia mais cedo ou mais tarde, a menos que escolhessem por levar uma vida fora dos esquemas convencionais ou ignorar os chamados da natureza para trazer a este mundo mais um habitante.

    Lindiane já tinha tudo planejado nos mínimos detalhes, desde o momento em que passou a ter aquele irremediável desejo de formar sua própria família, quando ainda era apenas uma adolescente. Já tinha escolhido o modelo de vestido de noiva, seria igualzinho ao da mãe. Só não seria o próprio porque este não lhe cabia no corpo mais robusto, e qualquer ajuste que sofresse o tornaria definitivamente diferente do original. Era melhor fazer outro com suas medidas. Seria todo em tafetá, e como a tradição mandava, branco, com acabamento nas bordas e no decote em rendas de bilros trazidas do Ceará. Sua tia Arlinda, se encarregaria de sua confecção, uma vez que não havia em toda a cidade, melhor costureira de vestidos de noiva que ela. A cerimônia aconteceria na capela do Colégio Santo Inácio, onde estudara desde menina e onde rezara pela primeira vez pedindo a Deus um marido bom e justo.

    Dinho era tudo que se poderia esperar de um futuro marido e bom pai. Ele era um homem alegre e muito trabalhador. Atencioso e carinhoso com ela, e atento a satisfazer-lhe os desejos nos mínimos detalhes. Ele era compreensível e descontraído. Gostava de crianças. Seus pais, também, gostavam muito dele. Ela também gostava muito da família dele que era composta apenas da mãe viúva e de uma irmã com que ela se relacionava muito bem. Enfim, tudo se coadunava para abençoar aquela união como algo sagrado e eterno.

    Desde o seu primeiro emprego, Lindiane teve o cuidado de economizar uma pequena porção de seu salário para comprar o seu enxoval de casamento, e como planejara se casar num prazo de no máximo oito anos, até lá já teria o suficiente e ainda sobraria alguma coisa a mais para dar entrada num pequeno apartamento. Seu sonho era comprar um na mesma rua onde moravam os pais, assim poderia contar com a ajuda da mãe para cuidar das crianças quando os filhos nascessem e ela tivesse de voltar a trabalhar. Gostaria de ter um casal. O menino se chamaria Aurélio, em homenagem ao falecido pai de Dinho. Já a menina seria Arlete, o nome de sua querida avó materna. Na hipótese de nascerem dois meninos ou duas meninas, pelo menos um deles receberia um daqueles nomes sagrados e Dinho escolheria o outro.

    Lindiane ficava imaginando como seria a decoração de seu lar. Os móveis da sala de visitas seriam novos e bonitos, nada muito expendioso, mas de bom gosto. Colocaria um carpete branco e macio e um conjunto de sofá com poltronas igualmente macios. A mesa da sala seria redonda toda de madeira. Ao centro, ficaria o vazo de cristal Fratelli Vita que ela tanto gostava e que fora uma herança de sua avó. Em dias especiais, o encheria com flores do campo de cores variadas que perfumariam toda a casa com uma fragrância agradável e suave. Sobre a mesa quadrada de fórmica da cozinha, colocaria uma gamela onde poria, semanalmente, frutas frescas de todos os tipos de acordo com a estação. Ela adorava o colorido saudável das frutas. Já ouvira falar que era moda fazer aquela decoração usando-se legumes e verduras também, e por isto, estava curiosa em experimentar aquela novidade. O quarto do menino seria pintado de azul bem claro e decorado com brinquedos e pôsteres de carros e aviões. O da menina seria num tom de rosinha com gravuras de flores penduradas nas paredes e bonecas de pano sobre a cama e prateleiras. Seu quarto, apesar de ser o maior de todos, seria o mais simples. Apenas a cama de casal, um armário para colocar roupas e uma penteadeira. Queria que o exemplo de uma vida bem regrada servisse de modelo para as duas crianças. A casa toda seria limpa diariamente e uma vez por semana passaria óleo de peroba sobre os móveis para dar aquele cheirinho de limpeza.

    Foi este sonho que permeou a sua imaginação durante muitos anos até marcar a data do casamento com Dinho para dali a um ano, quando ele completaria exatos trinta anos. Os dois até já tinham marcado o dia que dariam a entrada no novo apartamento, em duas semanas. Seu sonho já estava se tornando uma realidade. A vida tinha o sabor doce, pensou certa manhã Lindiane.

    Um belo dia antes da data que Lindiane e Dinho haviam combinado para irem à imobiliária fechar o negócio do apartamento, Dinho parecia mais agitado do que o de costume. Quanto ele estava assim naquele estado, Lindiane já sabia que ele queria lhe dizer alguma coisa importante e não sabia como.

    — O que você está tentando me dizer, Dinho? Por que você está desse jeito? — perguntou preocupada.

    — Sabe, Nane, estive com meu tio hoje esta tarde. Agente conversou bastante, sabe. — disse sem jeito.

    — É mesmo? E sobre o que conversaram? — perguntou curiosa.

    — E se agente pegasse todo esse dinheiro do casamento que agente vem juntando e investisse tudo numa plantação de coco-anão? O que você acha? — perguntou desconcertado evitando olhá-la nos olhos.

    Ao ouvir aquele plano esdrúxulo, as lágrimas começaram a verter dos olhos de Lindiane feito um coração que sangrava partido. Ela, que esperara tanto para se casar com Dinho e realizar seu sonho de menina, estava, então, diante de um homem que ela desconhecia. Aquela sugestão infame era o modo de Dinho declarar que não queria mais casar. Que mulher esperaria por algo tão incerto por mais cinco anos, o tempo necessário para um pé de coco-anão crescer e começar a dar os primeiros frutos? Quantos cocos seriam necessários para realizar o seu sonho de casamento? Como vocês podem ver, este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 18 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Ratos de festa.

Era uma daquelas noites enluaradas nas quais o céu fica pontilhado de estrelas que brilham no firmamento feito minúsculos diamantes sobre um veludo negro sem fim. Daquelas que nos dá vontade de passear de mãos dadas com uma bela moça ao longo de uma praia deserta. No entanto, eu estava a caminho de encontrar com amigos dos tempos de escola, o que não deixava de ser uma ocasião especial. Considero os amigos de infância como um bem para toda a vida, estes é que são os amigos de verdade. Para completar aquela ocasião memorável, uma suave brisa atenuava o calor daquela noite morna de começo de um verão fora de época, como um convite perfeito para sentar-se ao ar livre ao redor de uma mesa servida de comida honesta e bebida à vontade, na companhia de amigos que me conheciam desde pequeno, para recordar dos velhos tempos. O local do encontro era o Mariposa do Shopping Boulevard 161.

Cheguei meia hora adiantado, como de costume, e, para matar o tempo, fui olhar vitrines. Enquanto passeava distraído, percebi uma animada música de festa vinda do andar superior através de uma sacada acima de onde eu me encontrava. Não resistindo à minha natureza curiosa, fui até lá dar uma bisbilhotada. Para quem não conhece, o Boulevard 161 é um pequeno e agradável shopping de bairro de tijolo aparente de apenas dois pavimentos, com imensas arcadas que permitem a iluminação e a ventilação natural, uma vez que suas vias internas não são ar-refrigeradas. Usei o elevador para chegar até o andar de cima. Ao sair do cubículo, avistei um pequeno grupo de pessoas elegantemente vestidas em frente a uma loja. Aproximei-me cauteloso para não chamar a atenção. Eis que surgiu logo à minha frente um garçom equilibrando numa mão uma bandeja cheia de longos copos com gelo e na outra, segurava firme uma garrafa de vodca.

—É servido? — ofereceu polidamente com ar solene.

Dei um largo sorriso e assenti com a cabeça. E por que não? Uma dose de álcool faria-me chegar a meu encontro já com o espírito festivo. Logo em seguida, lá estava eu com um copo de vodca importada na mão bebericando. Nem bem dei o primeiro gole e uma bandeja de canapés de camarão surgiu à minha frente, carregada por outro garçom que parecia já ter tomado quatro dozes daquela mesma vodca. Dei outro sorriso e bati com a cabeça. Não vou negar que gosto muito de camarão. Ainda mais camarões de coquetel, são graúdos. Estes eram enormes, pareciam ter vindo de um daqueles arquipélagos na Polinésia, onde super-potências fazem testes de bombas nucleares! Dei uma mordida, estava ótimo. Senti-me radiante, desculpa o trocadilho. Dei uma volta pelo ambiente e não descobri do que se tratava o vento. Camarão? Aceitei outro canapé e fui logo surpreendido por uma taça de champanhe. Não sou fã de champanhe, mas não recusei a oferta. Afinal, champanhe é sempre champanhe numa festa fina. Na verdade, minha preferência sempre é uma generosa dose de uísque. Mal pensei no assunto e surgiu outro garçom com copos cintilantes e uma garrafa de Bala 8 à minha frente. Aceitei um copo candidamente. Mas eu ainda não tinha a menor idéia do que se travava aquele coquetel e nem isso me importava, desde que meu copo estivesse sempre cheio. Eu bem poderia perguntar a um dos garçons, mas isto seria fácil demais. Preferi observar e descobrir por mim mesmo o que estavam festejando.

Esta invasão em festa alheia me fez lembrar-se de um certo camarada português que eu costumava encontrar em ocasiões como aquela, há muito tempo atrás. Não recordo o seu nome e duvido que ele alguma vez o tenha dito ou eu lhe perguntado. Naquela época, eu tinha o hábito de comparecer aos convites que recebia para coquetéis de todo o tipo de evento, exposições de arte, lançamento de livros, datas comemorativas, o que fosse. Era aquele tipo de evento impessoal que acredito que mesmo quem o estivesse promovendo, conhecesse todos os seus convidados. Eu era um verdadeiro rato de festa. Não era raro eu sair de um coquetel para ir o outro. Era uma peregrinação etílica e gastronômica que eu cumpria com redobrado prazer. Foi assim que conheci este personagem, uma vez que ele coincidentemente comparecia aos mesmos eventos. Eu, no entanto, ia de convidado e ele, de penetra! Nossos encontros freqüentes nos levaram a conversar casualmente. Percebi que ele tinha um verdadeiro apetite pelos acepipes, embora eu devo confessar que a maioria daquelas festas primavam pela fartura. Eu sempre o encontrava de boca cheia e com um copo na mão, parecia que era sua marca registrada. Percebi que ele mal conhecia ou tentava conversar com os outros convidados e, por isso, ficava feliz quando eu lhe dava atenção. Até hoje eu não faço idéia de como ele tomava conhecimento de todos aqueles eventos e dava um jeito de estar presente a todos eles mesmo sem ser convidado. Quando eu chegava, lá já estava ele. Ao me ver, vinha me cumprimentar.

— Olha, o croquete de camarão está meio borrachudo, mas as empadas estão boas. — informava-me logo de cara.

— Este uísque está meio suspeito. — acrescentava fazendo uma discreta careta.

Não devo negar que suas informações eram relevantes e poupavam-me frustrações. Nada mais desagradável para um paladar refinado do que por na boca um uísque de terceira categoria. Embora eu soubesse que ele sempre entrava nas festas sem ser convidado, jamais me atrevi a perguntar-lhe como tomava conhecimento delas se não recebia convites. Talvez o penetra de festa profissional tenha uma rede de informações que o põe a par de todas as bocas-livres da semana. Nem o Pentágono ou a CIA seriam tão bem informados.

Um dia, resolvi não ir a um dos convites. Depois não fui a outro e mais outro, e não demorei muito a não ir mais a nenhum deles. E como eu já previra, nunca ninguém jamais deu a menor falta da minha pessoa. Deixei de ser mais uma cabeça para fazer número em coquetéis daquele tipo, tão impessoais. Na verdade, eu já estava ficando surdo de ouvir tanta conversa chata. Certo dia, recebi um telefonema de um querido amigo, avisava que iria lançar mais um livro e que o meu já estava reservado. Embora ele não me pedisse para ir ao lançamento, fui assim mesmo, para lhe fazer esta surpresa e demonstração de apreço. Ao entrar no pátio do local onde aconteceria o lançamento, eis que surge à minha frente outro se não o português penetra e rato de festas. Estava mais velho e mais gordo. Fazia mais de dez anos que eu não o via.

— Rapaz, você sumiu! Que saudades, por onde tem andado? — perguntou com um acarajé na mão.

Salvador, 7 de dezembro de 2009.






quinta-feira, 26 de novembro de 2009

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Valeu!

O observador da esquina.

Minhas freqüentes idas à mercearia deveriam contar como exercício físico, pois, vou a pé e volto carregando algum peso, embora insignificante. Quem sabe já nas Olimpíadas de 2016 a 'ida ao mercado com retorno pesado' já estará incluída entre as modalidades esportivas, e eu não estarei fazendo parte da equipe brasileira? Mesmo uma simples e trivial ida ao armazém pode se tornar numa experiência interessante, se levarmos em consideração o que vamos encontrado pelo caminho, e não é pouca coisa. Aqui no Rio Vermelho, há personagens curiosos que desafiam a nossa imaginação. Um deles, entretanto, tem chamado a minha atenção e curiosidade nos últimos anos. Trata-se de um rapaz saudável e bem apessoado e que tem por hábito sentar-se na murada do canteiro de plantas de uma esquina da Oswaldo Cruz, caminho para as minhas compras. Esta é uma das ruas mais movimentadas do Rio Vermelho, caminho obrigatório de milhares de automóveis e ônibus que vem de outros bairros ao longo das praias em direção ao centro. E se é tão movimentada, imagine como também é barulhenta. Não deixa de ser um local inusitado como a escolha para passar o tempo, levando-se em consideração as belas praias que existem por aqui, e que, certamente, merecem contemplação, embora eu concorde que gosto seja uma escolha pessoal. Fico imaginando o que haveria de tão bom em sentar-se ao sol numa esquina movimentada vendo os carros passarem. Talvez o rapaz seja um expert em transito e esteja estudando uma forma de desatar o nó que se transformou o Rio Vermelho. Ou quem sabe ele considere um tédio sentar-se na areia da praia e ficar olhando para o horizonte sem que nada de incomum aconteça. Não o culpo, também considero sacal passar mais que cinco minutos admirando mais esta Obra Divina. De qualquer forma, achei curioso aquele sujeito e seu hábito urbano. Pensei em aproximar-me para perguntar-lhe a razão de tanto interesse pelo movimento dos carros, mas temi que a resposta castrasse a minha imaginação, afinal o motivo poderia ser simples demais. Algo como preferir estar ali naquele lugar infernal ao invés de ficar em casa aborrecendo o juízo da patroa. Sempre que passo em direção ao mercado, lá está ele sentado na murada, solene em seu posto, na companhia de uma latinha de cerveja. Chamou-me a atenção que seu o cabelo está sempre aparado e aprumado. Veste-se como se estivesse em casa, porém com roupas sempre limpas.

    Imagino se meu amigo observador fica admirado pela grande variedade de modelos de automóveis que desfila pela sua esquina diariamente. Já deve até ter percebido que a cor preta é a preferida de quem possui um Celta e que os carros vermelhos são uma raridade. Os novíssimos em folha já ultrapassaram em número os calhambeques, uma constatação maliciosa de que o número de pessoas endividadas multiplicou. Qual será o destino daquelas pessoas, ele deve se perguntar com freqüência. Algumas delas já devem ser velhos conhecidos, das tantas vezes que se encontram naquele mesmo lugar quase todo santo dia. Outras aparecem de vez em quando, mas nunca deixam de dar uma passadinha pelo local. Elas também já o perceberam. Cada uma vai dirigindo seu próprio automóvel ou sendo conduzida por alguém. Os ônibus também passam, e lotados. É tanta gente espremida lá dentro que quem está do lado de fora nem consegue distinguir seus rostos, voltados para o que se passa do lado de fora. Vão a caminho do trabalho, da escola ou enfrentar qualquer interminável fila de serviço público. A esta altura, meu crítico observador já deve ter notado a discrepância que é a solidão dos mais afortunados, em seus luxuosos automóveis falando ao celular, enquanto dezenas de trabalhadores viajam confinados no transporte público minguado feito gado transportado. Será que eles são mesmo indiferentes aos que aguardam por uma condução de pé nos pontos de ônibus ao longo do caminho, ou apenas receiam a aproximação com estranhos?

Outros pedestres que passam por aquela rua com a mesma freqüência, também já se acostumaram com a presença do rapaz da esquina, e, também o cumprimentam com um 'bom dia' mas, como eu, não ousam perturbá-lo com nenhuma pergunta indiscreta sobre sua atividade observatória. A vida em grandes cidades pode ser vazia e solitária, mesmo para aqueles que busquem preenchê-la de modo nem sempre produtivo. O ócio é a ocupação dos gênios, penso eu. Nenhuma grande obra ou pensamento foi desenvolvido durante as atividades de alguém muito ocupado. Trata-se de uma lei natural das coisas, uma espécie de equilíbrio dentro do universo, enquanto alguns trabalham muito, outros se ocupam em ver passar o tempo.

Outro dia eu fui em minha peregrinação em direção ao mercado, quando deparei com meu personagem em seu habitual posto de observação. Fazia semanas que eu não fazia isto, e foi como encontrar um velho conhecido. Era uma tarde, o que justificava a sombra em seu local preferido. Desta vez ele não estava só. Sentada numa cadeira de armar de metal ao seu lado, estava uma empertigada senhora de idade. Não tive dúvidas que aquela era a sua mãe. Seus cabelos já eram brancos feito algodão, e o seu corpo magro e frágil lembrava uma porcelana fina. Como toda velhinha, ela estava arrumada e perfumada para um passeio. Ao contrário de seu filho sentado ao seu lado, que assistia vigilante o movimento da rua, seu olhar era indiferente e abandonado, alheio a tudo aquilo. Não havia movimento ou expressão em seu rosto, apenas aquele olhar triste e senil. Os dois não trocavam palavra que fosse, nem olhar ou gesto que indicasse algum tipo de interação social, embora um observador atento não deixasse de perceber o laço que unia mãe e filho naquele momento de ternura e solidariedade.

Rio Vermelho, 25 de novembro de 2009.