segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Iemanjá, o desenho da discórdia.


A Festa da Mãe d‘Água, este ano, foi dividida por culpa de um desenho de Iemanjá. Os ânimos se exaltaram, artistas opinaram, os promotores ficaram irredutíveis. O resultado foi lamentável: ninguém usará a tradicional camisa de Iemanjá em 97, como se faz todos os anos. Tudo começou quando Getúlio, dono da Ex-Tudo, procurou o famoso artista Floriano Teixeira e encomendou, em nome dos promotores da festa, um desenho de Iemanjá para ser reproduzido nas camisas vendidas e que sempre dão um bom lucro. Queria um artista famoso e ninguém melhor que Floriano que, além de tudo, é morador do Rio Vermelho.
Floriano aceitou a incumbência e fez uma Iemanjá que todos consideraram linda, sorridente, lábios muito vermelhos, escamas douradas, a imagem da alegria com sua festa. As camisas ficariam deslumbrantes e poderiam ser vendidas por preços maiores, graças a assinatura do artista de renome nacional. Vários artistas, como Calasans Neto, Carlos Bastos, James Amado, Tati Moreno, o próprio Getúlio, além de muitos outros, ficaram entusiasmados e aprovaram sem a menor restrição. Entretanto os pescadores do Rio Vermelho foram ver e vetaram a figura. Mostraram-se escandalizados, revoltados, Floriano tinha tido a audácia de pintar uma Iemanjá negra, embora muito bonita.
Mas tinha cabelos "rastafari", iguais aos de Carlinhos Brown, nariz achatado lembrando o de Margareth Menezes. Aquilo era um desaforo, Iemanjá tem cabelos louros, longos, olhos azuis, pele alva de sueca. Vetaram o desenho e proibiram sua reprodução nas camisas. Getúlio, que havia dado a encomenda, ficou sem saber o que fazer, os pescadores afirmaram que não permitiram que ninguém usasse aquilo, uma afronta a Iemanjá, que é branca. Calasans Neto chegou a sugerir que ouvissem a própria Iemanjá, estava certo que ela aprovaria o belo desenho de Floriano (foto), mas os promotores nem permitiram que se falasse mais no assunto, Iemanjá só branca, loura, olhos azuis.
Um grupo de turistas quis comprar o desenho e fazer camisas para seu grupo, mas os promotores da festa não permitiram.
Floriano Teixeira ainda tentou explicar aos promotores que a imagem da metade mulher metade peixe, de cabelos louros e longos, pele branca, é a da sereia nórdica, das lendas suecas. A nossa Iemanjá é uma entidade brasileira, morena, podendo ser negra, como nosso povo.
Os pescadores não concordaram. Afirmaram que só aceitariam a Mãe d‘Água branca e loura. Não houve solução.
Se os presentes deste ano forem recusados, todos sabem o motivo: Iemanjá queria o desenho lindo e verdadeiro de Floriano.

(Publicado no jornal A Tarde em 2 de fevereiro de 1997.)

sábado, 22 de janeiro de 2011

Uma certa cartomante

Quem fizer um passeio pelas ruas do Rio Vermelho num final de tarde de verão, quando o sol se torna uma imensa bola imaculada que projeta longas sombras, e o calor do dia se desvanece com a proximidade do crepúsculo, observará que os postes de luz servem tão somente para o propósito para o qual foram projetados como, também, para se afixar cartazes contendo informações sobre serviços de tudo quanto é tipo. Então, quem precisar de um encanador, eletricista ou de alguém para consertar o fogão, ou estiver procurando uma casa para alugar ou comprar, provavelmente encontrará informações úteis nesta mídia de classificados alternativa. Um destes serviços que mais me chamou atenção pela sua peculiaridade, no entanto, foi o de uma certa dona Odília que, além oferecer os serviços de “leitura das mão, búzius, tarô, ajuda a resolver briga de família, a conceguir emprego, trazer a peçoa amada de volta, aliviar a peçoa dos males da alma, a ter sorte, tirar unha encravada e conçerta espinhela caída”, faz um ataque terrorista à língua portuguesa.
Achei o anuncio uma preciosidade e confesso que este me deixou curioso, embora eu seja o tipo de pessoa que não acredita em coisa alguma, muito menos em mim mesmo. Mas acho interessante como as pessoas levam estas coisas a serio, mas nem por isso as censuro, pois entendo que cada um é livre para acreditar no que bem entender. Eu fico imaginando se uma pessoa decide ir a uma cartomante do mesmo modo que decide ver um médico para se curar de um mal de saúde, e se a consulta é tão dispendiosa quanto à de um profissional de saúde e se é possível incluí-la no plano de saúde ou abatê-la no imposto de renda.
O negócio de leitura de mãos, búzios e similares é um negócio que talvez não seja tão lucrativo quanto alguns imaginam, mas mesmo assim ele não para de crescer, num país místico como este aqui, no qual se acredita em tudo, inclusive em promessa de político. A concorrência é grande e como a profissão não é reconhecida pelas autoridades competentes e nem é preciso de um certificado ou licença especial para se atuar na área, bastando, para tanto, “possuir o dom”, então, a princípio, qualquer um pode montar a sua própria tenda em casa. Provavelmente a dona Odília sofreu com a concorrência ou o seu dom evaporou-se para a atmosfera, ou quem sabe a razão, que muitas vezes chega com o peso da idade, a fez perceber que já era hora agir honestamente com as pessoas. O fato é que vi surpreso dia desses, num cartaz colado num poste, que agora ela estava trabalhando como uma cabeleleira. Dona Odília agora “corta, fas iscova, aliza e tinge”. Duvido que este futuro ela não previu para ela.
No entanto, eu tenho notícia, através do meu amigo H.C., de que pelo menos uma vez o seu dom se manifestou certeiro feito um raio. O fato se deu quando Oswaldo Filho, que nunca teve respeito por nada sagrado e gostava de zombar de tudo, certo dia, entediado, resolveu ir à dona Odília tirar um sarro. Ao chegar ao endereço indicado, que era em sua própria casa onde ela atendia, percebeu que nada de incomum havia naquele pequeno apartamento de dois quartos e que este bem poderia ser a casa de uma tia sua ou avó. Sentou-se no pequeno sofá coberto com um plástico transparente e aguardou por sua anfitriã. Não demorou muito para que uma velha senhora de olhar doce viesse da cozinha com um avental amarrado na cintura, pois ela estava preparando o almoço, e nada de incomum Oswaldo, também, percebeu em sua aparência. Como vai, meu filho, ela disse com sua voz calma, em que posso lhe ser útil? Ela sentou-se na poltrona em frente a Oswaldo que foi direto ao assunto. Eu quero saber onde está meu pai, declarou preparando-se para debochar da resposta que a velha lhe daria. Depois de consultar a sua bola de cristal, ela respondeu-lhe segura. Seu pai está no bar de Nando, bebendo uma cervejinha. Ao ouvir a resposta, Oswaldo deu uma risada de escárnio. A senhora não sabe de nada mesmo, és uma completa fraude, ele disse. Meu pai morreu há mais de dez anos. Mas dona Odília retrucou na ponta da língua com toda sua candura, você está enganado, meu filho, quem morreu foi o marido de sua mãe!

Rio Vermelho, 21 de janeiro de 2011.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

As metas de meu amigo JR para 2011

Meu amigo J.R parece ter superado a terrível dor de cotovelo da qual vinha padecendo (leia o caso em Sortilégio do Amor). Arranjou uma nova namorada numa semana e, na seguinte, tornou-se amante de uma moça que se queixava de infelicidade conjugal. Eu não posso censurá-lo por fazer feliz a quem precisa, e acho isso até um gesto altruístico da parte dele. Creio que o mundo seria um lugar mais feliz se as pessoas se compartilhassem mais, dessem mais de si. Eu mesmo tenho insistido para uma certa morena dar mais de si para mim, mas sem sucesso algum. Há muita incompreensão neste mundo, esta é a grande verdade.
Mas o que mais me intriga é como é que um cara feio como o J.R. e que é magro feito o cão, consegue arranjar namoradas com tanta facilidade, logo ele que vive duro, quase nunca sai de casa e vai dormir todo dia com as galinhas depois do sol se por? Ele não vai à praia, não frequenta a academia, não passeia em shopping, nunca sai à noite, não telefona aos amigos, não vai a uma igreja, não tem Facebook e nem Orkut, vive mal humorado, não anda arrumadinho, enfim, não toma nenhuma daquelas providencias que uma pessoa desesperada em busca de companhia toma para se dar bem, ele age justamente o oposto, vivendo isolado de tudo como se fosse um verdadeiro ermitão urbano. Qual é a receita de seu sucesso com as moças?
Sua nova namorada, que é justamente o seu espelho ao contrário, é uma mulher ativa e trabalhadora de carteira assinada, e ainda faz uns trabalhos voluntários com crianças desamparadas, enquanto J.R. nunca teve um emprego formal, um eufemismo para dizer que não gosta de pegar no batente. Caso esta nova presidente que está aí resolver criar mais um ministério para apaniguar os companheiros, vou sugerir-lhe que o batize de Ministério do Ócio e que entregue a pasta ao meu amigo J.R., cuja contribuição ao seu governo será inequívoca. Enfim, não se tem notícia de que J.R. já tenha cumprido horário em canto algum do planeta e, por isso, sua nova namorada olha para ele intrigada e lhe diz: “Eu não sei como eu fui me envolver com um homem que nunca trabalhou.” Ao que ele replica já ter trabalhado sim, mas nunca de carteira assinada como todo cristão. Ela, então, faz uma cara de uma galinha que ia por um ovo e mudou de ideia e, não satisfeita com a resposta do bonito, promete sentar junto com ele para ajudá-lo a traçar suas metas para este ano. Embora ele reconheça o esforço dela, ele a adverte para que não lhe invente trabalho! Não é que J.R. seja um cara preguiçoso, muito preguiçoso ele não é. É que ele tem lá uma filosofia de vida e nesta, o trabalho é uma coisa ultrapassada. Este seu jeito pouco convencional de ser parece charmoso ao gosto das mulheres que se atraem por ele feito formigas em açucareiro em dia de confraternização de família. Embora ele não faça nem metade do esforço que faz um garotão bonitão com grana no bolso para gastar pelas baladas badaladas da cidade à caça do gênero feminino, as mulheres veem bater à sua porta feito evangélicas pregando em dia de domingo.
Outro dia, encontrei J.R. sentado no banco da pracinha aqui perto. Ele estava amuado e queixoso da nova namorada com a sua lista de objetivos para ele e, em seguida, disse pensativo: “Eu já tenho um objetivo para 2011, vou passar o ano inteiro deixando a barba crescer e em dezembro arranjo um emprego de Papai-Noel!” Vai ser um Papai-Noel bem magrinho, pode ter certeza.
Rio Vermelho, 8 de janeiro de 2011.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A minha listinha de objetivos para 2011.

A chegada de 2011 foi saudada há poucos dias com o tilintar de taças de champanhe e beijos e abraços efusivos acompanhados dos melhores votos de felicidades, ao som de fogos de artifício que transformaram o céu num espetáculo indescritível de luzes e de cores, neste caso, para quem se aventurou a ir até o Farol da Barra. O ano novo também nos inspira a pensar em renovação, em novas esperanças, enfim, em novos objetivos para realizar antigos desejos. O fato é que sempre desejamos intimamente uma versão melhorada de nós mesmos, como se fossemos algum modelo do ano de um automóvel pronto para passar por melhorias mecânicas e de design, embora na essência, ele vai continuar sendo a mesma coisa, isto é, um meio de condução que nos leva de um lugar ao outro. E nada melhor que a virada do ano para assumirmos alguns compromissos em forma de uma listinha de objetivos que nos lembrará de fazermos tais mudanças ao longo no novo ano que começa.
Eu não faço a menor ideia de quem foi o inventor de tais listinhas e também não compreendo porque nos sentimos tão mal por não dedicarmos pelo menos um instante para pensar sobre o assunto. As mudanças e melhorias em nós mesmos deveriam ser algo de nossa preocupação constante, então porque esperarmos até o inicio de um novo ano para pensarmos sobre o assunto? Talvez isto seja a influencia de nosso condicionamento de sempre contarmos a partir do zero, do início, uma vez que poucos são os que se arriscam a começar a contar a partir do três ou do quatro, por exemplo. Embora tais mudanças não precisem necessariamente significar em uma revolução em nosso comportamento ou estilo de vida, elas sempre representam um desejo de melhora em alguma coisa. Pelo menos alguma tentativa será feita a este respeito porque não basta querermos, é preciso termos os meios e a força de vontade para realiza-las. Algumas pessoas prometem parar de fumar ou pelo menos diminuir o vício do fumo enquanto outras vão bem mais longe, prometendo finalmente começar a ver um analista para entender porque são tão inseguras com relação a novos desafios. Imagine apenas como para estas pessoas já foi difícil tomar a decisão de começar um tratamento.
Num esforço para tentar ser igual a todo mundo, este novo ano, eu mesmo me prometi alguns objetivos para 2011, apesar de não levá-los muito a serio. Pensei bastante sobre o assunto e, finalmente, antes que o ano terminasse, apareci com a seguinte listinha que escrevi num papel bonito com letras solenes e garrafais que vou prender em algum lugar visível de meu escritório. O primeiro deles é: “Não vou fumar.” Eu não fumo e nem nunca fumei mas me comprometo aqui, publicamente, a não começar a fumar este ano e vou dar tudo de mim para cumprir tal objetivo. O mundo não precisa de mais um fumante. O segundo é: “Vou comer a mesma quantidade.” Isto é uma boa noticia, não vou engordar nem a mais e nem a menos do que eu já estou atualmente, manterei a minha média e, provavelmente, não comendo tanto assim, não tirarei a comida de quem realmente precisa. O mundo não precisa de mais alguém fazendo uma dieta. “Vou andar mais.” Ganhei de Papai Noel um par de tênis mágico Koreano, uma novidade! Basta calçá-lo e sair andando por aí que ele me leva a qualquer lugar do mundo em poucos minutos. Esta parte é mentirinha, mas não seria ótimo se fosse possível? “Não vou ler notícias.” Cheguei à conclusão que as más notícias fazem muito mal à saúde, pelo menos à minha. Este ano não quero saber das falcatruas do governo e do congresso, do efeito estufa, de guerras e terremotos e nem que Jesus Cristo já voltou e foi o nosso presidente da república, vou ficar alienado de tudo como se eu fosse um náufrago numa ilha deserta, talvez até meus cabelos voltem a nascer por conta de tal medida. E por fim, o ultimo objetivo da lista: “Vou levar as coisas mais a sério.” A vida não é esta grande piada que eu estou pensando, está na hora mesmo de eu levar as coisas mais a sério e, nada melhor do que começar com a minha listinha de objetivos para 2011. Feliz Ano Novo, caros leitores!

Rio Vermelho, 3 de janeiro de 2011.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Invasão natalina.

Minha casa foi invadida por ratos, centenas deles! Bem, talvez não sejam tantos assim e eu tenha exagerado um pouco adicionando à conta algumas poucas dezenas e, talvez eles não passem de dois ou três, o que já é muito, mesmo assim, porque a simples ideia de tê-los sob o meu teto me desagrada bastante. Os que estão aqui, recuso a chama-los de “meus”, porque eles não me pertencem e se quer foram convidados a entrar, não são nenhum Stuart Little ou Mickey Mouse, são daquele tipo grande e abominável. Não me entendam mal, estou falando de ratos mesmo e não de seus congêneres que usam terno e gravata em Brasília.
Todo ano é a mesma aporrinhação, chega a época do Natal e eles aparecem para me atazanar a paciência. Eu fico imaginando que mensagem o Criador está tentando me passar ao me enviar ratos para minha casa nas proximidades do nascimento de Seu filho. Enquanto nenhuma interpretação bíblica me vem à cabeça, resolvo me livrar deles, porque sou incapaz de machucar um bichinho que seja. Faço-o no melhor estilo Agatha Christie, envenenando-os com arsênico. Esta visita inesperada de roedores me deixou estressado e passei o dia mal humorado por sua causa.
Naquela mesma manhã, fui à loja de venenos para ratos e, como sou um amante de animais, tive a preocupação de pedir ao vendedor um veneno natural ou orgânico e que não fizesse mal à saúde dos bichinhos. Voltando para casa, espalhei as iscas pela casa e fora dela e, por via das duvidas, arranjei um porrete de madeira para enfrentá-los cara a cara caso cruzassem o meu caminho. Eu sou contra a violência, mas a situação requeria medidas extremas. Tenho um profundo nojo a ratos; Hollywood pode transforma-los nos seres mais fofinhos e queridinhos nas telas, mas para mim, eles sempre serão sinônimo da Peste Negra, aquela devastadora pandemia que assolou a Europa no século XIV, levando quase 75 milhões de almas a sete palmos da terra. Precisa dizer mais? Feito isto, não me restou mais nada se não esperar pelos acontecimentos. Passei o dia chateado e irritado com aquilo e só teria paz em minha alma quando despachasse os terríveis roedores em caixões para o Jardim da Saudade.
Felizmente à noite eu tinha planejado uma programação agradável que me traria alguma paz e me transportaria para um mundo de beleza. Iria com minhas sobrinhas pequenas ao concerto especial de Natal da Orquestra Sinfônica da Bahia. As meninas estavam muito animadas, pois um mês antes eu as tinha levado pela primeira vez a um concerto de musica clássica da mesma orquestra e elas gostaram tanto que pediram par ir de novo. Não era para menos, tocaram a 5ª. Sinfonia de Beethoven que impressiona qualquer marinheiro de primeira viagem. Eu acho importante incentivar os bons hábitos nas crianças como ouvir musica clássica, ler bons livros e falar mal do governo. Minha sobrinha de cinco anos começou a ler o “Guerra e Paz” que a presenteei de aniversário e ela está adorando! Enfim, às 18:30 estávamos todos banhados, perfumados e prontos para ir para o TCA e para lá rumamos. Chegamos à bilheteria uma hora antes do espetáculo e fiquei satisfeito ao perceber que não havia nenhuma fila, embora o fato de não ter fila fosse uma coisa triste de se ver, em si tratando de um espetáculo de musica clássica, significava que não haviam muitos interessados. Ao pedir os bilhetes à moça da bilheteria, ela me respondeu enfadonha que a sessão estava esgotada. Como assim esgotada? Estou falando de um concerto da OSBA, eu e minha família viemos dar uma força ao pessoal. Tudo foi vendido, os 1.800 lugares estão todos ocupados, ela explicou.
Fiquei perplexo, mas um concerto da OSBA lotado? Precisava de um plano B para minimizar frustração das meninas. Agi com rapidez, vamos ver um filme. Lembrei que no Espaço Unibanco estava passando um daqueles filmes infantis do qual tanto se fala, então estava decidido, corremos para lá a tempo de pegarmos a próxima seção. Mas ao chegarmos à bilheteria do cinema, fomos informados de que a seção começara há cinco minutos. Mas nem o meu pedido à moça da bilheteria para que o filme fosse rebobinado até o início ou que o projetista fizesse um ‘pause’ até chegarmos à sala de exibição foram acolhidos com indiferença. Compramos os ingressos e corremos para a sala e qual não foi minha surpresa ao lá chegarmos que além de nós quatro haviam mais três gatos pingados na sessão. Aquilo lá tava parecendo, sim, um concerto da OSBA! Ao me acomodar em meu assento e finalmente colocar os olhos na tela, fiquei perplexo com a visão da figura de um enorme rato falante com sotaque britânico empunhando uma espada! Aquilo só poderia ser uma praga contra mim. Não gostei do filme.
Rio Vermelho, 21 de dezembro de 2010.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A gata serelepe e o cachorrinho

O fim de tarde contemplado da Praia de Santana é um espetáculo de maravilhar os olhos e acalentar o espírito, momento em que o sol despede-se do dia manchando o horizonte de tons alaranjados resplandecentes, ao sumir de vez no oceano. Para nossa satisfação, um por do sol jamais é igual ao outro, o que nos faz experimentar uma nova emoção a cada crepúsculo. Este final de tarde, lá estava eu mais uma vez para prestar homenagem ao astro-rei. O dia tinha sido um daqueles quentes de dezembro, mas àquela hora de fim de tarde, uma suave brisa vinda do oceano refrescava a praia indicando que a noite seria de temperatura menos severa.

Cheguei à Praia de Santana um pouco mais cedo, como de costume, e dei uma caminhada no calçadão que se estende ao longo da praia até a curva da Paciência e voltei para me sentar num banco de concreto em frente ao mar, próximo à quadra de esportes, para aguardar o grande momento. O ar cheirava a maresia e a algas. Não demorou muito e lá apareceu ela finalmente, trazendo o seu cachorrinho pela coleira, desfilando pelo calçadão toda serelepe. O que faz o por do sol na Praia de Santana tão agradável de se ver, é a chegada dessa menina desabrochando em mulher, passeando com o seu pequeno Poodle ao longo calçadão, verdadeira personificação das ninfas dos poemas gregos; menina-moça do corpo esbelto e aparência do frescor de uma flor recém colhida, cujo perfume exala juventude, e seu olhar perdido e distante não vê nada além do caminho à sua frente, ignorando a plateia que lhe assiste, talvez por insegurança da pouca idade ou autossuficiência. Para este passeio, se veste sempre com um vestidinho de cor alegre, sandálias de couro baixas e os cabelos largados que a tornam mais bela e malvada. Seu cachorrinho vai sempre à frente e parece uma composição de bolas de algodão de tamanhos variados, amaradas com um belo laço vermelho no alto da cabeça. Ela o segue logo atrás, com passos ligeirinhos de modelo desfilando na passarela.

Pois lá ia ela com o seu bonitinho nariz empinado, quando o destino pôs em seu caminho uma dessas sujeirinhas caninas desprezadas por um proprietário de cão relapso. Eu, sentado em meu banco admirando o seus passar, pude antever por fração de segundos o terrível acidente, mas não fui rápido o bastante para preveni-lo. Isso mesmo, ela pisou na merda. O seu mundo perfeito pareceu ruir, estragando o seu passeio vespertino e transformando-o num pequeno drama juvenil. Pude ver os músculos de sua linda face se contraírem e o brilho de uma lagrima surgir em seus olhos prestes a cair, segura apenas, senão, pelo seu orgulho ferido. Em seguida, a expressão de nojo fixou-se em seu semblante irradiando-se pelo resto do corpo. Como ela não vira aquela imundice? — repreendeu a si mesma, como se fosse dado a este tipo de mulher o direito de fazê-lo. E pela primeira vez ela olhou para os lados como um pedido de socorro e só então desta vez ela pareceu ser uma criatura indefesa e humana.

Reagi com instinto e meti a mão no bolso tirando de dentro um lenço de seda italiano estampado com arabescos monocromáticos, um capricho para limpar as lentes de meus óculos de armação Giorgio Armani, e, como um cavaleiro medieval, corri em seu socorro para livrar minha princesa de seus dragões imaginários. Ao aproximar-me, ela me pareceu menor vista de perto. Ofereci-lhe ajuda obsequioso, estendendo-lhe meu dispendioso lenço, mas ela pareceu não ter atinado minha intenção porque me estendeu o pezinho como um mudo pedido para que eu mesmo a livrasse daquele infortúnio. E como um humilde cervo agradecido por aquela oportunidade única de poder tocá-la, me ajoelhei diante dela e tirei delicadamente a sua sandália de couro deslizando suavemente a ponta de meus dedos sobre seu pezinho para, em seguida, limpar o dedinho sujo, o único. Só depois me ocupei da sandália e, em seguida, a pus de volta no pé que aguardava suspenso e estirado como se executasse um movimento de balé. Concluído o meu gesto de altruísmo, ela, então, me brindou com um meio sorriso e continuou o seu passeio sem desperdiçar comigo palavra, como de desconhecesse o significado da expressão "muito obrigada", com aquele seu andar e jeito de ser serelepe.

Rio Vermelho, 15 de dezembro de 2010.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sortilégio do amor

Meu vizinho J.R. está sofrendo de paixão aguda. Há semanas, anda amuado e suspirando pelos cantos com olhar de cão abandonado que dá dó. Ao cair da noite, ele senta-se na varanda de casa na companhia de uma garrafa de uísque ordinário e do mesmo velho disco de vinil de tangos que se repete na vitrola sem parar. Olhar solitário, contempla a esmo o firmamento e, ao pousar os olhos sobre a misteriosa lua, solta uivos feito um lobo ferido e chora copiosamente a perda do grande amor. Se há algo de irônico nesta tragédia romântica, na qual ele é o protagonista, é que ele caiu numa armadilha do amor, ao provar de seu próprio veneno.

Seu calvário teve início no momento em que ele conheceu uma moça de nome Lucinda, na aula de Tai Chi Chuan que frequentava duas vezes por semana ali no Quartel de Amaralina. A criatura era desprovida de dotes físicos que atraíssem para si a cobiça masculina, não era lá o tipo que os homens olham mais de uma vez, mas, para sua sorte, J.R. não era um cara exigente e nem ligava para estas coisas de beleza. Apesar de sua feiura natural, Lucinda era talentosa na arte de virar as cabeças masculinas, quem sabe ela possuísse algum poder mágico.

J.R. e Lucinda logo se tornaram amigos e cedo descobriram que tinham muito em comum, sabe como é, aquela velha estória. Não demorou muito até que aquela saudável camaradagem fosse parar ao pé da cama. E na cama continuou com a gula de quem teme que fazer sexo fosse sair de moda. Apesar daquele furor, nenhum dos dois jamais falava em assumir algum compromisso ou coisa do tipo, pelo menos era o que J.R. lia nas entrelinhas. Mas onde já se viu mulher sair dando por aí, sem querer laçar o fulano? Para a alegria de ambos, aquela farra lasciva virou um hábito semanal como ir à missa de domingo. Toda quinta feira, depois de bater o ponto no serviço, Lucinda vinha bater o outro ponto aqui na casa dele no Rio Vermelho. No começo, aquela novidade era recebida por J.R. com entusiasmo e um largo sorriso, afinal, quem não gostaria de uma visita daquelas? Ele abria a porta para ela, e ela entrava até a manhã do dia seguinte. A vida não poderia ser mais prazerosa.

Como tudo que é bom, um dia enche o saco, depois de algum tempo curtindo aquelas visitinhas semanais, no entanto, J.R. começou a ficar incomodado e a se perguntar onde aquela farra iria chegar, se é que deveria chegar a algum lugar. Não que ele conjecturasse assumir algum compromisso com a moça. Pelo contrário, o seu interesse por Lucinda esmoreceu depois que ele lhe desvendou os segredos. Então, ele passou a não demonstrar mais tanto entusiasmo por ela, como se o encanto pela moça tivesse virado uma nuvem que se dissipou pelo espaço. No entanto, ela pareceu não ter percebido tal mudança no comportamento do rapaz e, se o fez, não deu lá a importância devida, continuou comparecendo ao endereço aqui do Rio Vermelho, religiosamente. Por outro lado, mesmo estando enjoado de Lucinda, J.R. aceitava os seus favores de bom grado, afinal, que mal haveria se ambos eram adultos e estavam se divertindo? Contudo ele não fazia nenhum esforço para ocultar que não estava mais nem aí para ela. Tratava-a com indiferença e nunca a procurava, mas jamais era rude com ela ou se quer lhe dizia coisas ruins. Será que há coisa mais maligna que um tratamento indiferente e cordial? Talvez tal ambiguidade a levou a imaginar que J.R. apenas tivesse com constipação intestinal.

Finalmente, um dia o amor próprio da moça a fez despertar de sua cegueira, levando-a a perceber o descaso do amante. Não disse nada, sofreu resignada, calou o pranto. Lucinda, ferida em seu orgulho, então, resolveu vingar-se. Longe do que imaginou J.R., ela estava, sim, era muito apaixonada por ele. Homem é que é mesmo um bicho burro, não se apercebe de nada. Pois, como uma verdadeira bruxa, imagino que ela deve ter lhe preparado alguma porção mágica que secretamente pôs em sua comida; não duvido, também, que tenha lhe jogado um feitiço, eu mesmo já fui vitima desses sortilégios e sei que eles existem fora dos livros de contos de fadas. O fato é que Lucinda serviu a J.R. o prato frio da vingança, deixando-o em estado lastimável.

O plano de Lucinda teve início quando ela começou por não passar mais a noite sob os lençóis de J.R. Em seguida, reduziu a frequência de suas visitas até, finalmente, sumir do mapa. Ele, então, intrigado com aquela sua súbita mudança de atitude da generosa moça, passou a procurá-la, ao que ouvia de sua boca a mesma surrada e velha desculpa de que ela andava muito ocupada — será que esta ainda cola? Desejava muito ir vê-lo, mas estava tão ocupadinha, dizia. Sua vida era tão ocupada...

Ao invés de se dar por satisfeito com o sumiço da moça —não era isso, mesmo, que ele almejava? — J.R. teve uma reação contrária, ficou inquieto e passou a criar caraminholas na cabeça por causa do comportamento de Lucinda. Estes seu pensamentos nebulosos passaram a lhe atormentar as ideias e a lhe tirar o sossego. Lucinda passou a povoar os seus pensamentos dia e noite sem parar feito alguma moléstia. Todas as manhãs, ela lá já estava para lhe atormentar o juízo quando ele despertava, e, também, estava igualmente presente, antes de ele cair no sono à noite, quando ela lhe visitava em seus sonhos noturnos como uma assombração. Não havia um segundo do dia que ele não parasse de pensar naquela mulher diabólica, a coisa tinha virado uma verdadeira obsessão. Seja lá o que Lucinda aprontou para J.R., a coisa funcionou.

Lucinda sumiu para todo o sempre, que ela não estava blefando só para ganhar o amor de J.R. Provavelmente ela encontrou o homem dos seus sonhos, e agora o visitava todas as sextas-feiras ou outros dias santos da semana. Mas J.R. ainda tem esperança de que um dia ela venha bater à sua porta tal como fazia antigamente. Quem imaginou ver um final feliz de tudo isso, aviso que este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 3 de dezembro de 2010.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

De olho no retrovisor.

Sábado fez um bonito dia de sol primaveril e, no final da tarde, não resistindo àquele clima de chegada de verão, fui na Paciência, aqui perto, dar um mergulho. Era a primeira vez que eu voltava à praia desde que o verão se foi na ultima temporada. O mar estava sereno, formando suaves ondas que iam e vinham combinadas com uma agradável brisa que soprava em minha direção, convidando-me a cair na água. Tirei a camisa que deixei na areia e mergulhei na água de uma só vez, sendo surpreendido pela água deliciosamente fria. Um peixe grande quase se esbarrou em mim e fugiu fazendo zig-zag. Pensei que fosse um tubarão, mas como eu ainda continuava inteiro, presumi que fosse apenas um desses peixes vegetarianos. Fiquei ali na água revigorando minhas energias naquela enseada que me fazia eu me sentir num paraíso, até que a visão do sol se pondo do outro lado da praia me fez sentir em comunhão com a natureza. Havia tempos que não me sentia assim tão largado. Olhei em volta e percebi que não deveria haver mais que meia dúzia de pessoas na praia naquela hora, o que aumentou a minha satisfação.

    Quando o sol se pôs finalmente, peguei minhas coisas e fui-me embora. Havia ainda uma nesga de luz do dia, apesar do sol já ter se escondido. No caminho a pé de volta para casa, passei pela quadra de esportes e vi uma cena que me causou nostalgia dos tempos de criança. Um pai ensinava aos seus dois meninos pequenos a jogar gude. Quando foi a ultima vez que vi alguém jogando gude eu já nem mais me lembrava, mas fiquei surpreso com aquela cena que eu pensava não existir nos tempos de internet e do vídeo game. Fiquei comovido e ao mesmo tempo lisongeado de estar presenciando aquela cena de fortalecimento da relação entre pai e filhos. Era uma cena intima domestica, apesar de estar sendo praticada em espaço publico.

    Aquela cena, tão rara hoje em dia, me fez eu me perguntar aonde foram parar os peões, os ioiôs, as arraias, os carrinhos de rolimã, os carrinhos de carretel, a picula e o esconde-esconde? São brinquedos que meus sobrinhos pequenos nunca ouviram falar, deixados de lado por nossa falta de tradição e pela impossibilidade de, nos dias de hoje, os pais não mais deixarem os filhos brincarem na rua. Eu não sou um cara que vivo de olho no retrovisor, mas houve um tempo em que as crianças de classe média brincavam à vontade na rua, os muros das casas eram baixos e não existiam grades nas janelas. Estas são coisas que eu mais sinto falta do passado e que eu desejaria que um dia voltasse ao presente, e, quando isto acontecer, muito provavelmente virão juntos as bolas de gudes, os peões e tudo mais, pois, estas deixaram o cenário porque hoje em dia as únicas crianças que vemos nas ruas são aquelas que foram abandonadas pelos adultos na rua à própria sorte.

Rio Vermelho, 23 de novembro de 2010.