terça-feira, 8 de maio de 2012

Sempre fiel ao seu lado.


Outro dia, assisti curioso, pela TV, um casal renovar os laços de matrimônio, passados sessenta anos de pura felicidade, afirmava a reportagem. Realmente, não deve ser fácil aturar a mesma pessoa por mais de meio século sem deixar de comemorar tal façanha. O idoso casal resolveu reviver a mesma cerimônia que protagonizou sessenta anos antes, na mesma igreja, agora na presença de filhos e netos. A noiva, agora uma jovem octogenária, não se vestiu de véu e grinalda como da primeira vez, mas estava elegante e bela para a cerimônia, e tão nervosa quanto antes. Desta vez, coube ao filho mais velho levá-la ao o altar para entregá-la ao sortudo noivo.
         Aquele conto de fadas me fez lembrar outro, protagonizado por J.R e dona Zélia, cujo casamento durou, igualmente, mais de meio século de companheirismo, mas que, numa sombria tarde, a despedida foi fatídica e dolorosa. J.R. estava muito doente havia semanas e já estava quase no bico do urubu; durante todo aquele tempo de sua enfermidade, a sua fiel dona Zélia jamais saiu de seu lado um só instante. Depois de um longo sono, J.R. despertou e a primeira pessoa que viu foi a sua Zélia, sentada ao lado do leito. Ele a olhou com ternura e disse-lhe com a voz cansada.
         — Minha velha, você sempre esteve ao meu lado...
         — Foi mesmo, meu velho. – respondeu dona Zélia com olhar doce.
         As palavras vinham com certa dificuldade, mas seus pensamentos eram tão claros como os de um rapaz jovem. O diabo do corpo é que não era mais o mesmo de antes. Perdera o vigor da juventude e agora era uma apenas uma máquina enferrujada prestes a bater.
         — Lembra quando nós ainda nem éramos casados e eu herdei o armazém do papai? Pena que o negócio nem foi adiante. E você estava ali ao meu lado...
         — Foi isso mesmo, meu velho. – disse dona Zélia segurando-lhe a mão.
         Um mundo de recordações, então, brotou da memória do moribundo J.R. como água de uma nascente.
         — Nós casamos e o meu tio me deu um emprego em sua fábrica de sabão...
         — Foi isso mesmo, meu velho. Eu já tinha até esquecido disso.
         — Mas aí você achou que eu ganhava pouco e meu tio não podia pagar mais. Eu saí da fábrica e fui ser vendedor de porta em porta. Mas eu não levava jeito para coisa e desisti.
         — Foi isso mesmo, meu velho. – disse dona Zélia dando-lhe uns tapinhas na mão.
         — E você, ali, sempre ao meu lado...
         — Eu nunca te abandonei, meu velho. – disse dona Zélia com ternura.
         — Para me ajudar, você foi trabalhar com o titio na fábrica de sabão... (tosse) a fábrica faliu...
         — Foi uma tristeza, ele amava tanto aquela fábrica. Seu tio era um homem tão bom.
         — E quando ele morreu, ainda me deixou um dinheirinho com o qual montei a lavanderia... (suspiro)
         — Foi isso, mesmo, meu velho.
         — A lavanderia ia indo muito bem... Tinha tanto trabalho que eu mal dava conta sozinho...
         — Foi isso mesmo, meu velho. E eu fui lá lhe dar uma mãozinha em meio turno, afinal, tinha as crianças para eu cuidar.
         — Mas aí os negócios começaram a ficar ruins e a lavanderia fechou. E você, sempre ali ao meu lado...
         Os olhos de J.R. se encheram de lágrimas com aquela recordação. Tossiu, soluçou, engasgou.
         — Você lutou muito, meu velho. – disse dona Zélia beijando-lhe a testa delicadamente.
         — E teve aquele terrível acidente de carro. Você não teve nada, (mais tosse e soluços) mas aquela vez você quase ficou viúva... Fiquei todo f... (engasgou).
         J.R. ficou em silêncio por um instante, reunindo fôlego para falar pois, estava realmente muito cansado. Ele olhou para Zélia com um olhar que a ela lhe pareceu de ternura e, então, ele balbuciou algo que ela não compreendeu. Aproximou dele com olhar doce para que ele repetisse. Ela imaginou que talvez ele estivesse tentando agradecer-lhe por todos aqueles anos, por seu amor e sua dedicação. E ele tentou mais uma vez falar quase sussurrando. Dona Zélia chegou o ouvido próximo de seus lábios para escutar melhor, seu coração apertava de aflição e expectativa.
         — Minha velha... você é um tremendo pé frio!
         E estas foram as derradeiras palavras de J.R. antes de dar seu último suspiro, na presença de dona Zélia, sempre fiel ao seu lado.
         Rio Vermelho, 7 de maio de 2012.

          

terça-feira, 24 de abril de 2012

Desculpas esfarrapadas.

Quem nunca teve a experiência de telefonar para aquele amigo que andava meio sumido e ouvi-lo dizer surpreso, do outro lado da linha, que estava justamente pensando em você e já ia te ligar? Verdade ou não, tais fenômenos de premonição são frequentes no Brasil, embora soem como uma habilidade paranormal, para mim não passam de uma desculpa esfarrapada para simplesmente dizer “esqueci de você”. No lugar de dizermos a verdade, inventamos desculpas para tudo, para desmarcamos um compromisso combinado que não queremos ir, “vou ter de ficar de babá dos meus sobrinhos hoje e por isso não vou poder mais ir”; para o remetente de um e-mail a quem não queremos responder, “não recebi coisa alguma”; pelas nossas falhas, “não foi minha culpa”, enfim, damos desculpas para tudo com a cara mais limpa do mundo!
Nós brasileiros somos mestres em inventar desculpas porque temos dificuldade em assumir os nossos erros. Criamos até entidades para pormos a culpa em nossas mancadas. “O senhor desculpe o meu atraso, mas “a moça” só me avisou nesse instante que a reunião era agora pela manhã.” Estas moças parecem que nunca fazem o serviço direito. “O senhor não repare na bagunça, “o rapaz” da limpeza não veio hoje.” Felizmente não são apenas “as moças” que são incompetentes, sobram para “os rapazes” também! “Eu espero que vocês compreendam, não é culpa minha.” Não é responsabilidade dele e nem de ninguém. Vivam com isto!
É que vivemos numa cultura onde a franqueza é considerada uma indelicadeza e aí mentimos para não ferirmos o sentimento alheio, uma nobre atitude que faz com que os mal-entendidos vão se acumulando, pois não é raro uma desculpa ser inventada para encobrir outra. Ou mentimos para evitarmos conflitos, porque o brasileiro é de natureza afável e pouco afeito a confrontos pessoais. A coisa fica mais evidente quando a dita ligação é uma cobrança daquela grana que foi emprestada ao amigo em apuros financeiros que jurou devolvê-la na semana seguinte e lá já se passaram seis meses! “Velho, ainda bem que você ligou, eu ia te ligar hoje mesmo pra devolver aquela grana!” Alguns amigos são realmente uns caras de pau. Mas aí, na sequência, ele diz, “mas minha mãe passou mal, velho, levei na emergência do Aliança e me custou uma grana preta. Resultado, tive de usar a grana que ia te devolver”. Intrigado com a súbita reencarnação da mãe do amigo o outro indaga: “Mas tua mãe não é falecida?” Quem tem o hábito de mentir, tem uma rapidez de raciocínio extraordinária. “Isso, velho, você não está me entendendo, eu estou falando de minha mãezinha de criação, a que cuidou de mim de verdade.” E quando não se quer perder uma amizade por causa do vil metal, engole-se tudo quanto é tipo de desculpa. Esta mãe de criação já tinha, inclusive, morrido uma outra vez, para livrá-lo do assédio de uma moça insistente. Por que simplesmente não ter dito à dita cuja que ele não estava interessado nela?
Inventar uma boa desculpa dá mais trabalho que dizer a verdade e, também, de ter que enfrentar as consequências. Muitas vezes tais desculpas, embora aparentemente inocentes, podem trazer sérios transtornos profissionais e até incidentes diplomáticos. Acostumado a usar deste expediente aqui no Brasil sem sofrer nenhuma consequência, um diplomata brasileiro servindo em nossa embaixada em Londres, certa vez, recebeu um convite pelo correio para assistir uma palestra que resolveu não comparecer porque considerava uma chatice. Dias depois, ao se encontrar casualmente com o funcionário do governo inglês responsável pela organização do evento, desculpou-se por não ter ido, pois não recebera o convite. Intrigado com o episódio, o cavalheiro inglês fez uma queixa formal aos Correios por este não ter entregado o convite ao diplomata brasileiro, ao que ele foi informado que o convite fora entregue sim, inclusive havia a sua assinatura no comprovante. A consequência pela leviandade foi que o nosso diplomata foi convidado a se retirar da Inglaterra, uma vez que ele tinha posto em dúvida a eficiência dos Correios de Sua Majestade!
Meu amigo J.R. que era mestre em inventar desculpas e se gabar de sua proezas, nos fazia se sentir pequenos às vezes com suas bazófias. Os seus feitos eram sempre os melhores e as suas aquisições eram também as melhores e mais caras. Contudo, um dia casou-se com uma bela e jovem moça de educação tradicional que só se entregaria a ele depois de casados, ela condicionou. Apaixonado por ela e desejando-a fervorosamente, ele se casou com ela no civil e religioso, comemorando o enlace com uma festa de fazer inveja. Na intimidade da alcova na noite de núpcias, no entanto, ele terminou desapontando a jovem esposa e deu a ela foi a maior desculpa!

Rio Vermelho, 24 de abril de 2012.


quinta-feira, 12 de abril de 2012

Sobre a amizade ou o curioso caso do médico e a paciente.

A amizade é a forma mais simples e comum de amor. Embora esta simples frase carregue em suas palavras tintas de lugar comum, raramente nos damos ao trabalho de refletir sobre um assunto que nos parece tão familiar. Mas se dedicarmos um tempinho pensando a respeito, concluiremos que a amizade é realmente um caso de amor, e este é tão sincero e transparente que transcende no tempo e no espaço aquele experimentado por um casal de amantes, que a amizade é um caso de amor que nunca morre. É um mistério a razão que une duas pessoas pela amizade, mesmo sendo ambas, às vezes, tão díspares uma da outra. Bem escreveu o genial Quintana, para demonstrar o quão forte e paradoxal podem ser os laços de uma boa amizade: “há dois tipos de chatos: os chatos propriamente ditos... e os amigos, que são os nossos chatos prediletos.”

A noite da última quarta-feira prometia ser uma noite mágica e especial. Eu estava transbordando de energias positivas e de confiança, pois minha querida amiga G.D. estava, naquele momento, bem longe aqui de mim, tentando reescrever a sua história dando um pulo no desconhecido, em busca da felicidade e da realização pessoal e profissional. E como ela me pedira que lhe enviasse energias positivas, eu estava me sentindo uma verdadeira usina elétrica! Seguindo o seu bom e sábio conselho, assim ela me disse “Cris, vai dar uma saída de casa para dar uma chance de a vida te surpreender”, e foi exatamente isto que aconteceu naquela noite singular.

Então, estava eu numa de minhas frequentes e solitárias visitas às salas de cinema; aguardava pela sessão tomando uma fumegante xícara de café com leite no bar do foyer, quando uma distinta senhora idosa adentrou o recinto se fazendo acompanhada de um jovem cavalheiro e uma linda moça. A idosa era uma daquelas velhinhas bem arrumadas e fresquinhas cheirando a alfazema e que nos faz lembrar da nossa avozinha. A moça era um pitéu, uma delícia de se admirar com os olhos. O rapaz era elegante e tinha os modos de um verdadeiro gentleman.

A senhora veio ao meu encontro e pediu polidamente para sentar numa das cadeiras vazias da mesa em que eu estava, pois todas as outras estavam ocupadas. Fique à vontade, respondi com um sorriso hospitaleiro. A moça bonita e o rapaz ficaram de pé com as mãos dadas. O rapaz, solícito e educado, perguntou à velha se ela gostaria de um café, ao que esta respondeu que não. Ele insistiu: Um chá? Um refrigerante? Um pedaço de torta? Nem água? Ela não queria nada mesmo, estava satisfeita. Então, ele lhe disse que iria ali com a moça e voltavam em quinze minutos, a tempo de a sessão começar; dito isto, se afastaram. Mas, no meio do caminho, ele viu sobre uma estante algumas revistas de cinema, pegou uma e voltou até nós, colocando-a sobre a mesa diante da senhora e, feito isto, desapareceu. Como é atencioso aquele rapaz, até parece eu, pensei humildemente.

São em oportunidades como aquela que eu não contenho a minha língua inconveniente, dirigi-me à desconhecida distinta senhora e disse humorado: “Se a intenção do rapaz é a de conquistar o coração da sogra ou o da moça, ele está fazendo um esforço notável!” A velha deu uma risada satisfeita e disse: “Não é nada disso, ele é o meu médico.” E ao perceber a minha súbita expressão de aflição, pois que doença grave padeceria aquela boa velhinha para ter de andar com um médico a tiracolo, refleti apreensivo. Mas ela, percebendo a minha preocupação, acrescentou tranquilizadora: “Ele é o meu cardiologista, sabe. Descobrimos que temos em comum a paixão pelo cinema e. por isto, toda semana ele passa lá em casa e vamos juntos ver um filminho. Geralmente vamos somente eu e ele, mas hoje ele trouxe a namoradinha.” Imagino-me contando esta encantadora estória de amizade e solidariedade a amigas que, de emocionadas, soltariam suspiros de aprovação e exclamariam: “que lindo!”, ao que eu concordaria igualmente comovido. “Nós temos esta amizade especial, sabe, é como uma outra forma de amor, entende? Ele é um ser humano da melhor qualidade. É como se ele fosse meu neto e amigo ao mesmo tempo.”, acrescentou embevecida a velhinha. “Eu posso imaginar isto o que a senhora está me contando, é como no filme “Minhas Tardes com Margueritte”, disse-lhe lembrando da semelhança entre o que ela me dizia com a estória do filme. “Isso mesmo, meu filho! Aquele filme é tão belo...”, suspirou sonhadora.

E digo mais, a amizade é o mais progressista e aberto dos relacionamentos humanos, que ela não reconhece barreiras entre nações, culturas, crenças religiosas, convicções políticas, times de futebol, idades, sexos ou raças, e também não é monogâmica! E se você se lembrou de minha querida amiga G.D. e ficou curioso com o seu destino, ela é realmente uma mulher lutadora e de sucesso, foi aprovada no exame!

Rio Vermelho, 10 de abril de 2012.

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Príncipe encantado de Indaiatuba

Juliana era uma mulher cuja beleza física parecia uma dádiva divina. Possuía um belo rosto, o corpo gracioso e elegante, a voz levemente rouca e adocicada e, acima de tudo, bom caráter. E ela só não seguira a promissora acarreia de modelo internacional porque tinha consciência de que havia em seu ser qualidades mais úteis que poderia oferecer ao mundo além de algo tão efêmero quanto a sua beleza física.

E como toda mulher bonita, era natural que também fosse muito cortejada e, por isso, não lhe faltavam pretendentes e convites para sair, sim porque aos homens, fazia-lhes bem ao ego serem vistos em sua companhia, além de que ela tinha a qualidade e fama de ser generosa em seus favores, embora só uns poucos tinham tal privilégio pois, para tanto, era necessário ter pelo menos 1,80cm de altura, porte atlético e beleza de galã de novela, que ela tinha lá a suas exigências e preferências.

No entanto, embora os passeios fossem sempre agradáveis e as noitadas terminassem nas camas mais largas que se tornavam as mais estreitas ardendo de prazer em cada canto, carecia Juliana de algo mais arrebatador que os prazeres físicos. Os rapazes eram boas companhias, dedicados amantes e os mais belos que uma garota pudesse sonhar. Mas nenhum deles tocava fundo o seu coração o suficiente para que ela se apaixonasse, que o seu príncipe encantado ainda não aparecera, sim porque ela acreditava em coisas como duendes e contos de fadas. A pequena e próspera Indaiatuba, onde ela residia no interior paulista, parecia que ficava menor a cada noitada.

Mas, felizmente, amigos era o que não lhe faltava nestas horas, pois estes são o melhor remédio para qualquer frustração amorosa, que Juliana era uma pessoa querida de todos e tinha a sorte de ter amigos de verdade. Quando ela estava triste e entediada, J.R., um amigo de longas datas, é que a alegrava com a sua prosa agradável e conversa interessante. Ele a fazia rir e se sentir uma mulher inteligente, ainda que ela o fosse de verdade. Sua companhia era agradável e ela se ficava à vontade em sua presença. E J.R. fazia por merecer, ele era um rapaz atencioso e carinhoso, e, acima de tudo, de bom caráter e trabalhador, desses que mamãe e papai sonham em ter como genro algum dia. Mas, nem uma fagulha de paixão tinha ela pelo bom rapaz que estava fadado a ficar naquela eterna condição de ser “uma boa pessoa” e apenas um bom amigo.

Certo feriado, ambos foram juntos para o litoral. Conversaram animadamente todo o percurso que o congestionamento habitual em véspera de feriado nem foi percebido, e o humor de ambos continuava suave como se já estivessem deitados na areia quente da praia desfrutando de um dia maravilhoso, apesar da fama do paulista de ter horror à areia. À noite, como não podia deixar de ser, saíram para beber e dançar. E entre goles de uma ordinária, terminaram deixando-se levar pelo ardor do desejo provocado pela bebida e se agarraram num longo e delicioso beijo na boca, embalados pela batida do rock desafinado e o jogo de luzes eletrizantes. E para a grata surpresa de Juliana, seu velho e querido amigo J.R. mostrou-se um exímio e insaciável amante, tão bom quanto sua proza interessante. Desta vez, ela trocou as rizadas da conversa fiada por ardentes gemidos e súplicas a Deus, colocando até as mãos na cabeça para não perder o juízo, tal era a sua arrebatadora sensação de prazer. Aquela estória toda se repetiu durante todo o feriado, sem que fosse preciso álcool, música, luz de boate ou qualquer outro aditivo. Vez por outra eles faziam uma pausa para beber água e nunca mais foram vistos perdendo tempo deitados nas cálidas areias da praia.

Depois daquele memorável feriado, J.R. caiu de paixão por sua amiga Juliana que chamou para namorar sério, mas esta se assustou com a tal proposta, mostrou-se arredia porque a dúvida lhe confundia os sentimentos, ao mesmo tempo em que ela também passou a desejá-lo secretamente depois daqueles dias de luxuria na praia, o repelia sofrendo de dolorosa culpa. Ela jamais experimentara assim tal sentimento por nenhum outro homem, e logo por quem, pelo seu amigo que era fisicamente a negação de seu tipo de homem, porquanto J.R. era um sujeito mais velho, baixinho, com os cabelos começando a rarear no alto da cabeça e feinho de dar dó. Era contra aquele sentimento tão rasteiro de valorizar a aparência física em detrimentos das qualidades interiores do nobre J.R. que lutava Juliana, consumindo a sua consciência, pois o seu defeito capital era estar avaliando o livro pela capa e não pelo seu conteúdo. A cegueira dominava Juliana que não conseguia perceber que o seu príncipe encantado de Indaiatuba viera finalmente para lhe fazer feliz eternamente, ou melhor, ele sempre estivera à sua frente e ela é que não o enxergava, porque meteu em sua cabeça que estes deveriam ser belos, esbeltos e vir montados num corcel branco.

Juliana, tais oportunidades só ocorrem uma vez na vida e a sua já está batendo à sua porta. E, afinal, você já está bem grandinha para acreditar em fantasias de menina moça e que só habitam as páginas dos livros de contos de fadas. Corre Juliana, te agarra ao teu príncipe, feioso mesmo assim, que melhor que ele tu não há de encontrar!

Como todos podem perceber, este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 1º. de abril de 2012.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Vivendo perigosamente.

Depois de experimentar ser levado para cima e para baixo, nas garupas dos moto-taxis de Lençóis, – ou melhor dizendo, só morro acima porque para descer, como é de praxe, todo santo ajuda – perdi o medo de andar de motocicleta. É que este é o único meio de transporte público do lugar, fique sabendo.

Por dois míseros Reais este curioso meio de transporte da pequena cidade montanhesca nos leva a qualquer lugar do perímetro urbano, mas o seu único inconveniente, além do fato de ser uma motocicleta, é ter de pôr um capacete de proteção, o qual já passou pelas cabeças de quase meia população da cidade, fora a dos forasteiros que nem eu. “Meu, filho, este capacete é sempre esterilizado depois de cada viagem, não é mesmo?” Perguntei ao motoqueiro, temeroso da resposta. “O que é isto, esterilizar?” Indagou o rapaz com um olhar confuso. “É o que eu imaginava.” Respondi resignado, colocando aquela incubadora de piolhos na minha cabeça.

Como o tráfego e congestionamento são pragas das cidades grandes que ainda não infectaram Lençóis, a viagem na garupa de uma motocicleta é tranquila e segura, e o máximo que pode acontecer é motoqueiro e passageiro irem ao chão com motocicleta e tudo, quebrando alguns ossos. Mas a minha maior provação foi ir a uma localidade fora de Lençóis, a apenas 10 minutos de motocicleta, e que me pareceu durar uma eternidade, pegando a autoestrada. Meu coração vinha até a boca cada vez que cruzávamos com um daqueles enormes ônibus ou caminhão-baú, era como se levássemos um sopapo invisível, devido ao violento deslocamento de ar. Eu sentia o corpo inteiro chacoalhar. Nunca mais!

Eu nunca vivi tão perigosamente e acho que a única vez que realmente me expus ao perigo foi pegando carona com a mãe de um amigo, nos tempos de colégio. A dona M.C.R. começou a dirigir tardiamente e era muito distraída ao volante. Gostava muito de prosear enquanto dirigia e tinha o assustador hábito de virar o pescoço para o banco traseiro para olhar para o seu interlocutor, com o automóvel em movimento! Por isso mesmo eu ficava sempre caladinho durante a viagem, rezando para eu tudo desse certo. Mas, felizmente, um anjo da guarda sempre esteve ao seu lado, e sua morte, muitos anos mais tarde, deu-se por causas naturais.

Então, de volta a Salvador depois de uma temporada na Chapada, certo dia, passei em frente de uma loja de motocicletas aqui no Rio Vermelho e não resistindo à curiosidade, entrei e fui perguntar ao vendedor sobre os preços, no caso de algum dia eu vir a adquirir uma, você sabe, para me ajudar a enfrentar alguma crise de meia idade.

Um jovem vendedor trajado como se estivesse num rally, veio ao meu encontro com um sorriso daqueles de vendedor.

— O senhor deseja comprar uma motocicleta? – perguntou com perspicácia.

— É... o senhor adivinhou! – respondi olhando em volta.

Aproximei-me de uma máquina que parecia uma coisa de filme de ficção científica e que me deixou em dúvida se aquilo era um meio de transporte ou arma de guerra, ou apenas um brinquedo para marmanjos.

— O senhor fez uma ótima escolha... – disse o vendedor.

— E eu já escolhi, foi?

Então, o rapaz do rally foi cuspindo num só fôlego tudo que devia se saber sobre aquela obra de arte metálica da era pós-moderna.

— Esta é um lançamento da fábrica. Possui 900 cilindradas, refrigeração a ar, injeção eletrônica, motor de 4 tempos, partida em pedal e elétrica, 5 marchas, freios ABS na dianteira e na traseira, amortecedor de direção, farol de neblina e contrapeso no guidon.

E ele falou tudo aquilo com a convicção de quem estava diante de um expert no assunto. Logo eu que só entendo de notebooks, e assim mesmo só de repetir o que ouço ou leio a respeito. Mas para eu não parecer um ignorante no assunto motociclístico, perguntei candidamente ao vendedor:

— E a configuração dessa maravilha representa quanto de processamento e gigabytes?

Salvador, 26 de março de 2012.

domingo, 11 de março de 2012

Lição de cidadania na Rua do Lajedo.

A minha rua aqui em Lençóis foi batizada com o simpático nome de Rua do Lajedo, um nome pouco comum que evoca à minha mente reminiscências de coisas rústicas como argila, olaria e objetos de cerâmica da cultura popular feitos no torno. Trata-se de uma rua estreita que começa uma casa acima da minha e se estende até um pedaço de riacho conhecido como Lava Pés e onde lavadeiras fazem o seu exaustivo trabalho. Um curto trecho desta rua foi recentemente pavimentado com blocos de granito, e por isso a sua superfície ainda é áspera, e muitos e muitos anos ainda se passarão até que o chão se torne liso e encerado, e as bordas de suas pedras levemente arredondadas pelo desgaste do vai e vêm de transeuntes. Depois de minha casa, a rua faz um joelho e quebra para o lado e aí o tal pavimento acaba, o chão é de terra e de rochas do próprio solo e sobre as quais duas fileiras de casas geminadas se estendem ao longo de cada lado da estreita e simpática rua.

As ruas de Lençóis são muito mais que simples vias de passagem, isto porque os moradores as utilizam como extensão de suas casas. É lá que a vida doméstica acontece a céu aberto, é onde se lava a roupa suja e o rapaz vai namorar a moça, no cair da noite, na porta de sua casa.

Em minha primeira manhã em Lençóis, abri as janelas da frente de casa para que o ar fresco e o sol invadissem a sala, e a primeira coisa que vi foi a vizinha da casa em frente, uma solícita senhora da boca desdentada, varrendo zelosamente não apenas a porta de sua casa mas, também, o pedaço de rua em frente. Achei curiosa aquela cena, pois venho de uma cidade onde as pessoas utilizam a rua para jogar o lixo. Mais tarde, voltei à janela e lá estava ela sentada ao meio fio com uma grande bacia entre as pernas, lavando a roupa suja. Enquanto esfregava vigorosamente cada peça, falava com seu pequeno neto, sentado logo a seu lado, lhe dizia, com um convincente argumento, para ir escovar os dentes ou, do contrário, ficaria banguela que nem ela. Ao terminar de lavar a roupa, pendurou-a num varal improvisado que atravessava a rua e o qual ela levantava com a ajuda de uma vara para que este não atrapalhasse a passagem. Então, a rua serve de área de serviço.

Na segunda-feira de carnaval pela manhã, eu me encontrava escrevendo, quando minha concentração foi distraída por vozes que vinham do lado de fora, em frente à minha casa. Interrompi o serviço, fui até a janela dar uma espiada e me surpreendi ao ver que minha vizinha recebia visitas, sentavam-se ao meio fio, proseavam animadamente. Fui me juntar a eles sentando-me nos degraus da minha porta. Participei da conversa por um tempinho como se fosse um amigo de longas datas e depois voltei ao trabalho. Quando veio a noite, percebi que depois da última novela, os vizinhos preferem ir para a porta de casa ficar conversando ao invés de ir assistir na TV um “reality show” que prima pelo mau gosto. De pé, à entrada de casa, duas casas à diante, um casal de jovens namorava à moda do tradicional “namoro de porta”. O pai da moça fica na sala, do lado de dentro, vigiando os movimentos das mãos do rapaz, que mão-boba é considerada uma falta grave aqui por estas bandas. Então, a rua serve, também, como sala de visitas.

No dia seguinte, ao convidar o sol a entrar em minha casa abrindo-lhe a janela, lá estava a dona Jandira, minha vizinha de frente, escovando os poucos dentes que lhe restam e varrendo a porta da rua ao mesmo tempo. Cumprimentamo-nos calorosamente com um bom dia, apesar de o dia estar meio nublado, como, aliás, em todas as manhãs cedo durante minha breve estadia em Lençóis. Elogiei o seu zelo por nossa rua e ela disse-me satisfeita que os moradores cuidavam da rua, razão pela qual não se viam mosquitos, baratas ou ratos pelas redondezas. À tarde, as crianças brincam animadamente na rua varrida, em segurança, para a despreocupação dos pais, outros ligam o som às alturas e sentam-se na porta de casa para ouvir música, ainda que de gosto discutível. Um rapaz, mais adiante, tem uma motocicleta e aproveita a tarde de feriado para dar um trato na máquina, na rua, em frende de casa.

Na minha Rua do Lajedo, raramente passa um automóvel e quando tal acontece, uma tartaruga consegue ser mais veloz que ele! Mas uma coisa me chamou a atenção depois da quarta-feira de cinzas, a casa da frente ficou o dia todo fechada. E o mesmo se sucedeu nos dias seguintes. Eu não ouvia mais o vozerio em frente de casa, e também percebi que a nossa frente não era mais varrida, as folhas secas e poeira se acumulavam. A dona Jandira estava fazendo falta. No sexto dia, cheguei a imaginar que ela tinha nos abandonado. Enquanto eu escovava os dentes, pela manhã cedo, olhava pela janela o estado que ficara a frente de nossa casa sem a minha zelosa vizinha, as folhas se acumulavam e a poeira, também, e pensava comigo mesmo, onde teria ido ela, nem me avisara. Fui até o quintal de casa e voltei com a vassoura para varrer a frente da rua.

Chapada Diamantina, 5 de março de 2012.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Sobre a sabedoria de uma chapeleira da Chapada.

Meu encontro com a dona Edite se deu na forma de uma transação comercial, quando entrei em sua lojinha, situada no final da Rua da Baderna, próxima à igreja do Rosário, com o intuito de comprar um chapéu que me protegesse do sol abrasador da Chapada. Acontece que ela é a única artesã a fazer chapéus de palha aqui na acolhedora cidade de Lençóis.

Dona Edite é uma senhora idosa de voz firme e determinada, cujas mãos pequenas e ágeis trançam a palha do licuri enquanto proseia com a vizinha de porta, sentadas lado a lado em cadeiras sobre a estreita calçada em frente de casa. Ela faz isto diariamente à noite e quase no escuro porque as mãos, já habituadas ao labor, conhecem de cor o caminho, conta ela, e a claridade lhe ofusca as vistas. E é em sua pequena e humilde casinha de telha vã que funciona também a sua loja e o atelier. Chapéus, sacolas, abanadores, descansos para pratos e uma variedade de outros utensílios feitos de palha se espalham por paredes e estantes dando vida à pequena sala transformada em loja, e não há quem não se maravilhe com tanta coisa bonita e de bom gosto, produto de nossa arte popular. Pendurado numa parede, está um chapéu de aba tão grande quanto um sombreiro de praia que serve para acolher até toda uma família. Tem outro, de formato engraçado, cuja copa é tão longa quanto se pode imaginar e vai se afinando até chegar à extremidade e se curva para frente lembrando um quiabo. E dona Edite pensa em tudo, inventou um que é especial para maridos traídos, pois sua copa é dividida ao meio em duas, podendo acolher um belo par de chifres. O qual eu mais gosto é um cuja copa começa estreita na base e vai se expandindo até chegar ao final que é levemente curvo nas bordas e no topo, lembra um grande e comprido pinico.

Quando questionada como aprendeu o seu ofício, dona Edite responde orgulhosa que este é um dom que nasceu com ela e que nunca tomou curso para quilo, que seu pai foi artesão e antes dele foi o avô e aquela habilidade foi passada de pai para filho se observando no dia a dia, tal qual uma criança aprende a andar. Nas palavras simples de dona Edite e no seu modo de falar existe a sabedoria de uma mulher que trabalha de sol a sol, tirando de seu ofício o seu sustento e o de sua família, e foi tecendo artigos de palha que educou os filhos que agora são doutores diplomados, conta orgulhosa.

Certa noite, entrei em sua loja à procura de um chapéu de abas largas, e como os modelos disponíveis não eram do meu agrado, dona Edite, gentilmente, se ofereceu para me fazer um sob medida. Eu queria um que fosse igual ao de pescador, mas com as abas curvadas para baixo. “Eu vou fazer um assim do seu gosto, meu filho”, disse com candura. “Passe aqui qualquer dia desses que ele estará pronto”, prometeu com precisão.

No caminho de saída, observei no chão junto à janela uma enorme cesta cheia com sementes de olho-de-boi, cuja existência eu conhecia desde os tempos de moleque. Para quem nunca ouviu falar, seu formato é um pouco menor que uma moeda de 25 centavos, irregularmente arredondado e de coloração castanho escura. Agente fazia uma traquinagem, friccionando-a no chão esta tinha a propriedade de ficar tão quente que ao encostá-la de surpresa na pele da vítima, ela dava um pulo e um grito de susto. Uai! E este era o único uso que eu conhecia da semente de olho-de-boi. Dona Edite me ofereceu uma, ao que eu perguntei para o quê servia. “Isto é um remédio, meu filho. Ela afasta as coisas ruins, traz felicidade e saúde. Você a coloca no bolso, ou na bolsa, ou debaixo do travesseiro.” Fui até a cesta e escolhi a mais bonita, perguntando em seguida: “Colocando-a debaixo do travesseiro, ela atrai mulher?” Ao que ela deu um suspiro e balançando a cabeça, respondeu com a voz doce: “Assim, também, você já está querendo demais, não é, meu filho?”

Chapada Diamantina, 29 de fevereiro de 2012.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

E a igualdade caiu na folia!

O doutor Ubirajara dos Prazeres, ou simplesmente Bira, como era chamado por sua amada esposa e amigos mais chegados, era um respeitável pai de família, sujeito pacato e de natureza dócil. Um funcionário público exemplar da Procuradoria da Dívida Ativa do Município de Salvador há mais de quinze anos. E casado com dona Elvira, uma mulher que gostava de dar ordens e acostumada a ser obedecida, não apenas pelos serviçais domésticos, mas também pelos filhos e pelo fiel e obediente esposo, cujo temor à mulher era uma mancha em seu currículo, pois os amigos não admitiam como o homem que trazia o pão para a casa, pudesse ser tão submisso à esposa.

No entanto, Elvira tinha um bom coração e, por isso, permitia que o marido encontrasse os amigos às sextas-feiras depois do expediente na repartição, para a tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos. Mas ele que não se atrevesse a chegar bêbado em casa, pois, do contrário, iria passar a noite, de castigo, no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava que o marido brincasse, em companhia da turma de amigos de longas datas, a segunda e terça-feira de carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, localizado no Largo Dois de Julho. Apesar de sua natureza sossegada, existia no âmago de Bira um folião inveterado.

Era o ano da graça do Senhor de 1965 e os carnavais daquela época eram uma divertida brincadeira popular com fantasias de pierrôs e colombinas, serpentinas e confetes, pulados ao ritmo de românticas marchinhas carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca envelhecerem, e nos quais pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas e bailes noturnos até o raiar do sol. E não o poderoso e milionário empreendimento comercial que existe nos dias hoje, no qual o duro é apenas um mero expectador frustrado. Naquele ano, Bira contava os dias para cair na folia vestindo a fantasia de pirata que ele mesmo confeccionara a partir de uma camisa de mangas compridas velha e um chapéu de palha pintado de preto com um lenço vermelho amarrado em volta. Sua maior despesa naquela brincadeira, fora o investimento numa mamadeira infantil, na qual o rum Montilla foi despejado cuidadosamente com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E quando a noite de segunda-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro de Nazaré, onde residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia muita alegria e diversão sadia.

Mal entrou no pátio do clube, foi dominado pelo frenesi provocado pelas marchinhas tocadas pela tradicional e famosa Banda do Maestro Tabajara e Companhia. O pacato Bira então se transformou num homem faceiro e divertido, proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se aos amigos queridos e caiu na folia noite adentro.

Naquele baile os homens se fantasiavam alegremente, mas não usavam máscaras porque não era permitido, ao contrário das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Bira pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não as desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem cansar e se dar conta do tempo que parecia infinito. Quem via os dois naquele estado divertido pensaria que ambos eram par de longas datas. A moça tinha um requebrado e trejeitos que enfeitiçaram como nunca o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, diga-se de passagem, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente, fez gracejos com aquela moreninha da qual só pôde apenas ver os lábios grossos e gordurosos, pois, como todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara colorida e enfeitada. Bira era só alegria, nada da chatice de repartição pública ou de receber ordens da patroa em casa, aquela noite era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas, a magia do carnaval daquela noite começava a desvanecer-se. O sonho acabara. Na despedida, perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la algum dia, quem sabe em outros carnavais.

Do Clube dos Fantoches, desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra feito uns moleques, e foram até o Mercado Modelo para rebater a ressaca com o famoso mocotó de dona Lurdes, cozido magistralmente na apertada cozinha de seu modesto restaurante, em suas panelas sebentas. Lá pelas sete da manhã, ao chegar finalmente em casa vindo da esbornia, entrou nas pontas dos pés e deu de cara com outra, se não o seu algoz que o aguardava mal humorada.

― Até que fim chegou o pé-de-valsa! Então, dançaste com uma fulana de rosto coladinho a noite inteira, heim, filho da puta! – bradou Elvira.

― E como você sabe? – admitiu com coragem, ainda sob o efeito maléfico da bebedeira.

― Ela acabou de me contar. Você dançou foi com a empregada! – disse apontando em direção da cozinha.

Chapada Diamantina, 18 de fevereiro de 2012.