segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Em Nome do Pai

Aqui perto de casa existia as ruínas do que outrora fora uma pracinha de bairro cujo tempo e falta de zelo encarregaram-se de torná-la esquecida e desprezada. Tomada pelo capim alto e sujeira, certo dia, um ex-morador das vizinhanças que foi trabalhar ao lado do prefeito, para provar o seu prestígio junto ao alcaide, conseguiu deste que reformasse a praça e a tornasse num espaço útil à comunidade. Bravo! Terminado os demorados serviços de reconstrução, este mandou colocar no centro da nova praça o busto de um homem de óculos pesados e olhar severo e batizou-a com o nome de seu saudoso pai, um ilustre desconhecido.
         Ora, quem de nós não gostaria de homenagear o próprio pai com um monumento em seu nome ou uma rua ou avenida? Sem querer desmerecer o genitor de alguém, não haveria praças, pontes, viadutos e logradouros públicos em quantidade suficiente para prestar tal distinção. Enfim, a praça ficou bela e aprazível. Além do insólito monumento, ganhou, também, bancos de madeira, escorregador, gangorra e balanço para as crianças. O busto do desconhecido até conferiu um certo charme ao local, que passou a ganhar vida com a frequência de moradores do bairro de dia e à noite.
         Talvez alguém, com inveja ou protesto por não ter conseguido, também, prestar um tributo ao próprio pai, colocando nem que fosse uma placa com o seu nome num dos bancos da praça, foi lá sorrateiramente e roubou os óculos do homenageado, dias depois da inauguração que foi uma festança com direito a acepipes, fanfarra e fogos de artifício.
         O ato de vandalismo foi repudiado por todos. Poxa a pracinha estava tão bonita, quem fez aquilo não gostava de ver a cidade arrumada. Mas o filho do ilustre desconhecido mostrou que tinha mesmo prestígio. Dias depois, o escultor autor do busto foi lá e pôs novo par de óculos no monumento.
         Ao todo, foram cinco vezes, ao longo de quatro anos, que fizeram sumir os óculos do rapaz. O vândalo era insistente em seu propósito e o filho do homenageado em sua determinação de ver o pai usando óculos, como se naquela altura da vida e em sua atual condição estática aqueles lhe fosse de alguma utilidade ótica.
         Certo dia, no entanto, anos depois, um renomado restaurador de monumentos com diploma em cursos na Europa apareceu na pracinha, contratado pela prefeitura para fazer uma limpeza no tal busto e colocar-lhe novo par de óculos. Ao ser arguido por um antigo morador do bairro, um idoso proveniente de algum fim-de-mundo na Itália que, sentado num banco, tomava o seu habitual banho de sol matinal, lhe respondeu que iria colocar, mais uma vez, os óculos na estátua. O italiano achando graça naquela novidade e veio com a seguinte brilhante ideia: “Por que você não coloca lentes de contato no ilustre? Ele vai parecer mais jovem e, por certo, vai ficar mais difícil de roubá-las.” O restaurador achou a sugestão uma piada, onde já se viu colocar lentes numa estátua. Entretanto, ao concluir o seu serviço ao cabo de dois dias de trabalho, o artesão rendeu-se a sabedoria do velho italiano e pôs no monumento, desta vez, um par de lentes de contato novinho em folha, as primeiras de que se tem notícia, usadas por uma estátua!

Rio Vermelho, 25 de agosto de 2013.

domingo, 18 de agosto de 2013

É Isto Que Chamam de Amor?

A mulher muito desejada pelos homens conta, sem pudor, o seu segredo para deixá-los loucos por ela: “Eu piso neles. Digo que vou telefonar e não telefono. Combino de sair com eles e na hora furo. Desprezo-os, maltrato-os mesmo. Eles ficam louquinhos por mim!”
Quem já teve o infortúnio de ser vítima de uma pessoa como esta, talvez desconheça o fato de que elas são, na verdade, umas predadoras. Insensíveis. Só aquele que já passou pela experiência de ter os seus sentimentos manipulados de tal modo, sabe como isto é doloroso. Entretanto, existem pessoas que acham que isto é que é o amor.
Isto nem mesmo em nada tem a ver com a arte da conquista. Pelo contrário, mais se assemelha a algum tipo de manifestação de sadismo pela qual um exerce o seu poder sobre o outro através da tortura emocional. As que agem assim, dão a isto o inocente nome de “joguinhos de conquista”. Mas longe disto ser algo inocente, é, na verdade, uma forma equivocada de perceber o outro, sem levar em conta os seus sentimentos ao agir para conquistar a sua afeição, mesmo que faça isto sem maldade alguma. Só as pessoas inseguras é que jogam o tempo todo, incapazes que são de cultivar uma relação de confiança e sinceridade, estão sempre aflitas em obter provas do amor do outro.
Para tanto, umas somem propositalmente por alguns dias para forçarem o outro a procurá-la e assim terem certeza de seu amor. Outras marcam compromissos que desmarcam em cima da hora (isto quando se dão ao trabalho de fazê-lo) com o intuito de deixar o outro com mais vontade ainda de vê-la, enfurecido por ter esperado tanto tempo em vão. Ou simplesmente não atendem aos telefonemas do outro, ignoram os seus e-mails e “torpedos” para demonstrar que têm mais o que fazer. Ou simplesmente se fazem de difíceis inventando desculpas inverossímeis cada vez que recebem convites para se encontrarem. É assim que muitas agem quando percebem que são desejadas, é assim que exercem o seu poder sobre o outro, esmagando o seu coração.
Alguém pode achar que este tipo de mulher sabe como “domar” os homens e que ela se dá bem no amor. Pelo contrário, tal comportamento a transforma numa espécie de desafio para eles que, ao se satisfazerem, finalmente, perdem o interesse, somem como uma criança que cansou do brinquedo novo. É neste momento que ela, então, transforma-se em vítima e os homens em “todos são iguais”. No entanto, refazem-se procurando uma nova vítima e o resultado é mais um desapontamento. Infelizmente, estas mulheres entram num ciclo vicioso sem perceberem o mal que fazem a si mesmas. Então, por que não serem sinceras e demonstrarem de início que estão interessadas pelo cara ou despachá-lo de primeira?
É estanho o comportamento humano e os motivos que tornam a sua psiquê satisfeita. Outro dia uma amiga contava para outra que estava relacionando-se com um homem sádico que a submetia a todo tipo de perversão e humilhação: “Encontrei finalmente o homem da minha vida”, disse ela feliz.

Salvador, 14 de agosto de 2013.

domingo, 28 de abril de 2013

O Taxista Apaixonado

Sexta-feira, vesti minha roupa de domingo e fui ao encontro com a moça de meus sonhos. Um táxi casualmente passava em frente de casa, fiz sinal e ele parou. Toca pro corredor da Vitória, eu disse, que a moça já está me esperando. Falei assim para impressioná-lo, queria que soubesse que não sou um João de Ninguém, pois à minha espera, estava uma bela moça. Era para ele andar mais rápido, também, e escolher o caminho mais curto. Mas não menti totalmente. Havia, sim, uma moça na parada, mas eu era quem iria esperar por ela. Meu coração batia de tanta felicidade, como o de uma criança que acabou de ter encontrado com Papai Noel. O taxista, percebendo a minha ansiedade, arriscou:
         — É tão bom ir encontrar-se com namorada nova, não é mesmo?
         — Esta não é nova e nem é velha. É apenas um projeto amoroso que, pelo andar da carruagem, nunca deixará o plano das boas intenções.
         — Eu estou entendendo o que o senhor está me dizendo... – disse pensativo.
         — Este é um daqueles casos complicados que não ata e nem desata, entende? Um joga confete no outro, mas nenhum dos dois toma a iniciativa.
         — O meu caso é um desses complicados também. – lamentou o taxista.
         — E eu já até tentei me declarar, falar-lhe do meu amor por ela, mas ela não deixa, pois ela tem o dom da palavra: fala pelos cotovelos!
         — O senhor permite eu lhe dizer uma coisa?
         Imaginei que viria de lá um daqueles conselhos de taxistas. Eles sempre têm solução para tudo e sabem das coisas melhor que ninguém. Se no Congresso só houvesse motoristas de táxi e se fossemos governados só por eles, o Brasil, com certeza, seria um país bem melhor. Não haveria inflação ou desemprego, nem mais pobreza, o problema da violência estaria resolvido, o corrupto iria ver o sol nascer quadrado o resto da vida, nossa educação seria melhor que a da Coreia do Sul, a soja não apodreceria no caminhão na fila de espera para ser embarcada no navio, não haveria mais seca no Nordeste, nem filas em hospitais públicos e a nossa Seleção teria uma escalação de fazer gosto. Mas, ao invés de dar um conselho, ele me surpreendeu.
         — Eu estou muito apaixonado. – declarou emocionado.
         — É... Também padeço da mesma moléstia.
         — Mas o senhor tem sorte, vai encontrar com a moça daqui a pouco, assim que eu lhe deixar em seu destino. A minha mora lá no fim do mundo, no Amapá.
         — A minha situação não é muito diferente. É como se ela morasse no Cazaquistão, só vejo de andorinha em andorinha e, às vezes, nem isso. Você a conheceu pela internet?
         — Não. Conheço-a em carne e em osso! – disse com orgulho.
         Curioso, perguntei:
— E como foi isto?
— Ela veio a Salvador a trabalho, fui seu motorista o tempo todo. Ela é uma empresária lá na terra dela, muito bem de vida, por sinal.
— Ah, sim...
— Agente foi se entendendo e sabe como são estas coisas...
— Comeu-la?
— Não! Não houve oportunidade, mas rolou muito carinho. Agente saía pra namorar todas as noites e quando ela estava livre do trabalho. Íamos jantar fora, estas coisas. Ela pagava tudo, não deixava eu ter despesa alguma, me tratava como um príncipe. – os olhos marejaram.
— Que bacana.
— Antes de ir embora, quis me dar um relógio de presente, mas não aceitei. Não aceito presente caro de mulher, não sou homem disso.
— Agiu corretamente. – eu disse, embora pense o contrário. Que mal tem em receber um presente caro?
— Meu senhor, eu não paro de pensar nessa mulher, eu penso nela noite e dia. Eu tô aqui conversando com o senhor, mas estou pensando nela. É um tormento, nem durmo mais direito de pensar tanto nela.
— Eu sei como é isto...
— Estou com muita saudade... Ela não me telefona, eu fico esperando uma ligação dela, mas até hoje ela não me telefonou, depois que voltou pro Amapá.
— Mas porque você não faz uma surpresa a ela e liga você mesmo?
— É meio complicado...
— Como assim? Não tem o telefone dela?
— Tenho sim. Mas vai que o marido dela atende o telefone?

Rio Vermelho, 27 de abril de 2013.
          

sábado, 13 de abril de 2013

O Poeta Deformado

Aos 56, Horácio de Mattos era o poeta preferido dos intelectuais boêmios e habitués de bares noturnos, dos aposentados da praça no centro da cidade onde intermináveis partidas de dominó eram travadas, dos entediados passageiros de ônibus, dos passantes apressados de qualquer esquina movimentada, dos apaixonados, dos amantes, onde houvesse público, porque ele era um poeta de rua, declamava seus poemas onde o público estava. Mas para ganhar a vida, tirar o seu sustento, a sua realidade era bem mais dura, pois ele era o faxineiro da noite de uma escola pública.

            Horácio sofria a angústia daquela vida dupla. Afinal, qual homem dos versos, sensível, talentoso, romântico, sonhador seria feliz dependo do trabalho braçal para sobreviver? Mas aquele conflito estava longe de ser tudo. Isto porque, a sua coleção de belos poemas não estava guardada em outro lugar além de sua memória e da qual ele dependia visceralmente para ser poeta. A verdade era que não existia um único registro de suas poesias num caderninho ou simples folha de papel que fosse. Estava tudo mesmo guardado em sua cabeça.

O motivo para o uso daquele sistema de arquivamento rudimentar era simples e ao mesmo tempo trágico: o nosso grande poeta não sabia escrever. Nem ler. O homem que usava a palavra como ferramenta de trabalho era incapaz de reconhecê-la grafada no papel, num letreiro de rua, no ônibus o qual tomava para ir ao trabalho. Muito menos sabia reproduzi-la com lápis sobre a parede. Horácio era analfabeto de pai e de mãe.

A alfabetização é uma das pedras angulares da civilização. Ser analfabeto é ser deformado. E o desprezo que antes era dirigido à aberração física pode, talvez com mais justiça, recair sobre os analfabetos. Não era por menos que Horácio fazia de sua limitação intelectual um segredo do qual se envergonhava.

            Havia outro mistério que tornava a vida de Horácio mais dura ainda. Seus poemas eram verdadeiras odes ao amor e à felicidade. Não era ele o poeta do amor não correspondido, do coração partido, do amor desfeito, da desilusão amorosa. Ao contrário, ele celebrava a realização plena do amor, o encontro da pessoa amada, a felicidade de estar amando e de ser amado. Entretanto, por ironia do destino, nosso Horácio poeta jamais conheceu o amor que ele tanto louvava em seus versos. Nunca experimentou o gosto de beijar os lábios da mulher amada ou andar de mãos dadas em sua companhia ao longo da areia da praia no limiar de um pôr do sol. Jamais houve ninguém contando as horas do dia passarem para ficar juntinho ao seu lado. Ele já amou muitas vezes, mas nunca teve a graça de ser correspondido. Mesmo assim, aquela dolorosa realidade não invalidava os seus versos de amor e felicidade, uma vez que não é preciso pisar na lua para se escrever sobre a sua distância e melancolia, pois a maior aventura que há, está em nossa imaginação.

            Certo dia, ele tomou uma decisão corajosa, porém não tardia, e que afetaria sua vida para sempre. Na escola onde trabalhava à noite, inscreveu-se num curso de alfabetização para adultos. Prometeram-lhe que aprenderia a ler e escrever em três semanas. Aprendeu em duas. Ele e as letras tornaram-se amigos logo nos primeiros flertes, foi como se fossem camaradas há muito mais tempo. Horácio se perguntava intrigado, se foi tão fácil aprender a ler e escrever, por que levara tanto tempo na escuridão? Era maravilhoso poder ler e escrever como qualquer pessoa. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois que ele foi apresentado às letras. Era como se ele tivesse vindo ao mundo pela segunda vez.

Entretanto, familiarizar-se com o universo das pessoas cultas causou-lhe um efeito inesperado. Ele não conseguia escrever os seus poemas. Por mais que tentasse, era simplesmente impossível compor as suas rimas diretamente sobre o papel, como fazem a maioria dos poetas. Ele habituara-se àquele método de compor seus versos na memória, talvez isto fosse até coisa de gênio, mas o fato era que lápis e papel não lhe tinha utilidade alguma. Nem mesmo registar no caderno as poesias que já existiam, ele não conseguia.

Havia, entretanto, uma explicação para aquele obstáculo. Cada vez que declamava uma poesia, um novo verso ele adicionava ou substituía por outro mais belo, de forma que os seus poemas estavam em constante transformação, como se estes tivessem vida própria. Embora a sua essência continuasse a mesma, suas palavras e versos se alteravam. Ele até tentou escrevê-los, mas quando lhe vinha à mente o verso que ia ser registrado no papel, este logo se trocava por outro no instante em começava a ser escrito.

Aquela constante transformação fez Horácio perceber que as suas poesias eram entidades livres depois que ele as criava, era como se elas não mais lhe pertencessem. Escrevê-las num papel ou mesmo imprimi-las num livro, era como aprisioná-las, roubar a sua liberdade. Por isso, ele não podia privá-las daquele bem que ao homem era imensurável. Ele decidiu, portanto, que elas continuariam soltas e livres em sua imaginação, ele seria um poeta cujos versos existiriam até quando sua memória pudesse dar-lhe o prazer de recordá-los.

E quanto à sua trágica condição de jamais o seu amor ter sido correspondido, aquela era uma triste realidade com a qual Horácio aprendia a conviver dia após dia e sublimá-la através de seus belos e encantadores poemas. Quem sabe um dia, ele finalmente encontrasse a felicidade plena no amor de uma mulher que o aceitasse como o poeta deformado que era. Como podem perceber este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 08 de abril de 2013.
            

segunda-feira, 25 de março de 2013

Uma Incômoda Amizade


Nem sempre temos a sorte de escolher os nossos próprios amigos, por mais íntimos que estes se tornem. Ao contrário, muitas vezes, nós é que somos escolhidos por estes.  E esta é uma estória de uma incomum amizade, destas que agente não consegue se livrar, por mais incômoda que esta seja.
         Nos últimos dias, mal Raimundo Nonato entrava em casa e sua atenção era chamada por um incômodo ruído que assemelhava-se ao zumbido provocado por um inseto ao bater as suas poderosas asas, como se este estivesse preso de algum modo e tentasse libertar-se. Por mais que ele procurasse a origem daquele barulho, vasculhando os limites de seu pequeno apartamento, ele não conseguia descobrir a fonte daquele aborrecimento. Mas como ele sempre chegava exausto, depois de passar o dia inteiro trabalhando montado sobre uma motocicleta, ele era motoboy, dava-se por vencido e ia dormir ouvindo aquele zumbido intermitente até cair no sono profundo.
         Na manhã seguinte, quando acordava, lá estava o zumbido novamente, aguardando-o para desejar-lhe bom dia. Aquilo o fazia ficar mal-humorado e estragava o seu dia. Sempre atrasado, entretanto, ele vestia-se e saía apressado para tomar o café-da-manhã na padaria.  Em seguida, partia para sua jornada de trabalho sobre a motocicleta, ziguezagueando ente os automóveis, vencendo os congestionamentos que ia encontrando pela frente. Durante o dia, enquanto trabalhava, ele esquecia aquele aborrecimento que se tornara aquele misterioso zumbido.
         Mas ao final do dia, quando Raimundo Nonato voltava cansado, lá estava o zumbido aguardando por ele em sua casa. Naquela noite, entretanto ele estava disposto a acabar com aquela aporrinhação, resolveu colocar a casa de pernas para o ar e não descansaria enquanto não encontrasse o responsável pelo maldito zumbido. Arrastou móveis e procurou por baixo e por trás destes. Fuçou armários, revirou gavetas, até debaixo do tapete procurou sem sucesso. Infeliz, resolveu ir dormir na casa da mãe que ficava duas ruas adiante da sua.
         Ao chegar à casa materna, mal se queixou do barulho para ela e, para seu desapontamento, percebeu que zumbido o havia ido junto. A mãe foi incisiva:
— Este zumbido é no ouvido!
— Será? – perguntou-se Raimundo Nonato aflito.
         No dia seguinte, não deu outra. Correu para ver o médico de ouvido. Foi o primeiro a ser atendido. O doutor Pereira tinha o olhar cansado e era um daqueles sujeitos que gostava de falar pelos cotovelos. Quando Raimundo Notado descreveu o seu zumbido, o médico lhe disse que isto poderia acontecer por diversas razões. Em seguida, começou a falar de sua recente viagem de passeio a Aracaju e de como aquela cidade era limpa e organizada. Contou como o povo sergipano era cortês e educado. Falou de suas bonitas praias e de como um Estado tão pobre estava em melhor situação que a Bahia. Aquela lenga-lenga não tinha mais fim e parecia que o doutor tinha esquecido o motivo que levava o paciente até seu consultório.
         Finalmente o doutor se deu por satisfeito com a sua preleção sobre Aracaju e pediu que Raimundo Nonato fosse sentar-se na cadeira de exame que era muito semelhante à do barbeiro. Em seguida, olhou para dentro do ouvido do rapaz com a ajuda de um aparelho apropriado para aquele procedimento. Entretanto, nem Raimundo Nonato esquentou o assento da cadeira e doutor deu a análise por concluída. O ouvido do rapaz era perfeito, nada havia de errado com ele.
         — Seu ouvido está ótimo! Você não ouve o zumbido quando está na rua porque o barulho exterior o camufla. Faça uma experiência, ligue a TV quando chegar em casa e note como seu zumbido desaparece.
         — Mas porque meu ouvido está zumbindo?
         — Como eu lhe disse, meu caro, tais zumbidos são um mistério. A causa pode ser qualquer coisa ou simplesmente nada. – sentenciou o doutor.
         — Mas o que faço, doutor? Este zumbido vai me deixar louco. Não tem um remédio?
         — Meu caro, o único remédio que posso lhe prescrever é o seguinte conselho: Faça do zumbido o seu amigo. – deu por encerrada a consulta.

Rio Vermelho, 25 de março de 2013.

         

domingo, 10 de março de 2013

Pior Que Tosse de Cachorro

Outro dia, comentava satisfeito aqui em casa: este ano, a minha tosse não veio. Todo verão, tenho uma tosse esquisita, horrível mesmo, que vem, quase acaba comigo e depois some, só retornando no ano seguinte. Dois dias depois, não deu outra, comecei a tossir. Veio de forma discreta, como faz sempre, e foi evoluindo e se instalando, tomando a força de uma besta! Tossia o dia inteiro e, por vezes, era acometido de acessos violentos, curvando-me sobre o corpo, quase cuspindo fora os pulmões. Tudo, então, ficava escuro como num apagão e eu só enxergava flashes de luzes que piscavam como num curto-circuito. A voz ficava cansada e sumia por horas. Entretanto, nunca me ocorreu ir a um médico por causa dessa tosse besta.
            Uma querida amiga de São Paulo, a passeio em Salvador, veio me visitar. Ao testemunhar minha tosse, sugeriu-me um xarope fitoterápico milagroso, cujo nome passou-me num pedaço de papel. Corri até a farmácia, depois que foi embora, e comprei aquela maravilha curativa cuja fabricação era numa cidade da Bahia de nome sugestivo: Santo Antônio de Jesus. Entretanto, passados dois dias e de ter consumido todo o frasco, minha tosse continuava firme e forte.
Aquele meu estado enfermo começava a despertar a atenção e preocupação de amigos. Um amigo italiano, impressionado, veio trazer óleo de hortelã, que faria a tosse sumir. Colocou duas gotas na palma de minha mão e mandou que eu as friccionasse uma contra a outra e as levasse à minha boca em forma de concha, aspirando fundo. A sensação mentolada foi muito agradável e refrescante, mas aquela tosse dava demonstrações de que não desistiria de mim assim tão fácil. Um vizinho árabe, de quase noventa e meio cego, trouxe-me um unguento para passar na garganta. A sensação era agradavelmente gelada, muito interessante, mas, também, não funcionou. Duas amigas vieram me trazer mel, uma delas trouxe um pote enorme do produto colhido na Chapada Diamantina. Ajudaria a suavizar e limpar as vias aéreas, ela disse. Muito delicioso aquele mel, inclusive com um pedaço de pão, mas a tosse não foi embora. Mastigue uns pedaços de gengibre, sugeriu um. Aspire álcool, disse outro. Já tentou um chá de cascas de limão com alho, cravo, mel e canela? Não falha nunca! Pois é, comigo nada disso deu certo.
Certo dia, acordei mal. Hoje vou juntar-me ao Criador, pensei. Lá pelas tantas da tarde, me dei por vencido. Procurei na internet por um médico e, por ventura, encontrei um não muito longe aqui de casa. Depois de uma conversa sofrida, entrecortada por acessos de tosse e perda de voz, o atendente, do outro lado na linha, informou-me que a médica só teria horário no dia seguinte. Tarde demais, implorei, melhor chamar o padre agora. Impressionado, o rapaz disse: “se o senhor vier agora, será o próximo a ser atendido.”
O consultório ficava a apenas três quilômetros e meio de casa, fui a pé, andei rápido. De carro, jamais chegaria a tempo, por causa do interminável congestionamento das 15hs. O consultório ficava num prédio estalando de novo e muito chique, lembrei que não tinha perguntado o preço da consulta, estava na cara que iria doer no bolso. Subi até o quarto andar, ao entrar na sala de espera, me deparei com uma multidão, havia gente sentada e de pé. Ao me apresentar, o rapaz tomou os meus dados pessoais e me mandou direto ver a medica. Não me senti culpado de estar furando a fila, um moribundo tem lá as suas regalias!
Ao entrar no consultório, um lugar branco, asséptico e impessoal, uma jovem e bela mulher com a mesma descrição da sala, levantou-se de sua cadeira por de trás de uma mesa vazia, exceto por um monitor de computador e teclado, veio me cumprimentar. Vestia um desses jalecos grossos, longos e brancos como a neve. A pele não era menos branca e os cabelos longos, lisos e pretos contrastavam com o resto do cenário. Não usava maquiagem, joias ou qualquer adereço, não havia nela nenhum apelo sexual, ao contrário, parecia assexuada. Era muito formal e parecia desconfortável na presença de estranhos.
— Como tem passado, doutora? – estendi-lhe a mão.
— Muito bem. E o senhor?
— Não tão bem e é isto que me traz aqui. – respondi sentando-me na cadeira disponível.
— Conte-me o seu sofrimento. – ela pediu.
— Eu estou sofrendo de amor, doutora. Mas o que me traz aqui é essa tosse.
Enquanto eu descrevia a minha tosse, ela digitava e não tirava os olhos do monitor do computador. Eu não poderia dizer se ela estava atualizando o seu “feed de notícias” do Facebook, twintando sobre a minha consulta, ou pesquisando no Google um diagnóstico sobre os sintomas eu lhe descrevia com riqueza de detalhes literários. Talvez houvesse um médico de verdade do outro lado e ela fosse apenas uma intermediária. Depois de ela me fazer várias perguntas e eu de respondê-las, ela pediu-me que a acompanhasse na sala ao lado, para me examinar.
Sentei-me numa maca e, para minha surpresa, ela dispensou o tradicional “coloque a língua pra fora e diga A”. A medicina moderna deve ter banido este ultrapassado procedimento, pensei. Ao contrário, ela me mandou levantar a camisa, que preferi tirar, e foi auscultar meus pulmões pelas cotas, com a ajuda de um estetoscópio. Mandou tossir, respirar fundo, tossir de novo seguidamente. Fez isto minuciosamente e demoradamente que me preocupou. Examinado as costas, fez o mesmo pela frente. Pude ver de perto a sua pele perfeita e branca. Os olhos eram azuis e gélidos, quase sem expressão. Senti a maciez de sua pele quando me tocou, desejei aquela boneca de plástico.
— Pode vestir a camisa. – ela disse concluindo.
— Doutora, não vai querer examinar a minha próstata? – lancei-lhe um olhar languido.
— Isto é desnecessário. – respondeu surpresa.
— Mas eu faço questão! – insisti.
Ela deu as costas e voltou para a primeira sala e eu a segui logo atrás. De volta à minha cadeira, perguntei-lhe:
— Quantos dias ainda tenho, doutora?
— O senhor ainda vai viver até os cem! – sorriu pela primeira vez.
Em seguida, ela tentou dar um diagnóstico. Indicava que havia alguma coisa inflamada entre a minha cabeça e os meus ombros, mas não precisava ao certo do que se tratava. Chamou isto de uma traqueíte e depois de outra ite, enfim, voltou-se para o computador e foi digitando novamente e depois imprimiu. Era a receita.
— Mas que letra bela e legível. – eu brinquei, mas ela não achou graça.
Prescreveu-me umas gotinhas maravilhosas para fazer o nariz parar de escorrer, um poderoso antibiótico, também muito utilizado para curar dor de dente de elefante e outro comprimidozinho que, se não fosse tomado na dose e tempo certo, poderia trazer-me complicações no fígado, rins, visão ou me fazer andar de cadeira-de-roda pelo resto da vida.
— Eu lamento ter de lhe passar este remédio, mas para o seu caso, não tenho alternativa. – disse a doutora solenemente.
Despedi-me. “Obrigado, doutora. Espero não revê-la nunca mais.” Fui embora.
Voltei para casa andando, no caminho, passei na farmácia e comprei os medicamentos. Lá mesmo, já tomei o primeiro comprimido, seguindo ordens médicas. À noite, tomei mais uma dose e já sentia os efeitos da medicação, podia tossir sem ter a impressão de que a cabeça explodiria junto.
Em situações como esta é que agente descobre os amigos que tem, eu melhorei da tosse dias depois, graças ao carinho, zelo e solidariedade dos amigos que continuaram me telefonando para saber de minha saúde e me sugerindo remédios caseiros milagrosos e, provavelmente, também, por causa dos remédios prescritos pela doutora.

Rio Vermelho, 10 de março de 2013.

domingo, 3 de março de 2013

A Dúvida Cruel


Fui dar minha caminhada na orla como faço diariamente, mas, neste sábado, troquei o final de tarde pela manhã, pois o dia era convidativo a tomar um saudável banho de sol logo bem cedo. Ao passar em frente à praia da Paciência, não resisti aos seus encantos para que eu fosse dar um mergulho, pois a água estava cristalina como a piscina de um clube grã-fino e serena como as águas do Caribe, além de que, totalmente deserta, exceto por um vulto que eu via de longe banhando-se tranquilamente. Dei por finalizada a caminhada e desci a escada que levava até a areia, e, depois de me desfazer de roupas e tênis, mergulhei na água que estava deliciosamente gelada.

         Não muito distante de onde eu estava, pude ver de perto o vulto o qual eu enxergara da balaustrada. Era uma senhora gorda e de expressão alegre que me cumprimentou com um jovial bom dia, ao que eu retribui com o mesmo entusiasmo. Perguntou-me se eu era morador do bairro e respondi-lhe que desde que eu usava fraudas. Ela disse também que sim e apontou-me onde morava, um prédio antigo erguido exatamente em frente à praia. Então eu lhe disse que ali morara uma antiga professora dos tempos do primário, ao que ela falou o seu nome, dizendo que a conhecia desde menina.

         Fulana de tal tinha sido minha professora dos meus 11 aos 15 anos e guardo dela boas recordações. Ela era, então, muito jovem, na flor da idade, uma dessas legítimas louras de farmácia com todos os seus atributos, muito atraente. Gostava de usar roupas justas com decotes que mal conseguiam conter os seios grandes, os quais eram legítimas criações da natureza, além de um punhado de brincos, colares e pulseiras coloridos que chacoalhavam harmoniosamente quando ela caminhava, pois o seu gracioso rebolado era como o de uma musa andando nas areias mornas da praia de Ipanema. Aquele seu jeito sensual chamava muito a atenção dos garotos da escola que agitavam-se quando ela passava pelo pátio e estes  expressavam a sua admiração de forma escondida por debaixo das calças, a ponto de causar-lhe dor e fazê-los andar de ladinho. Eu, também, a admirava muito e, em meus momentos de solidão e a abandono, tinha nela a minha fonte de inspiração...

         Como esta senhora parecia realmente ser uma antiga moradora do bairro, perguntei-lhe se conhecia Fulano de Tal, meu vizinho de sempre, ao que ela respondeu:

         — Lógico, muito meu amigo. – ela respondeu. Em seguida, acrescentou. – Ele morreu.

         — Realmente ele se foi. Que saudades que ele faz. – eu disse.

         — Sou muito amiga, também, de Fulaninho, seu filho.

         — Sim, Fulaninho...

         — Que coisa horrível, Fulano foi morrer justamente no dia do aniversário de Fulaninho. Isto traumatiza qualquer filho.

         — É verdade. – eu disse. – Mas ele vai superar isto, afinal ele é um homem de quase 70 anos.

         — Com tantos dias durante o ano, Fulano foi escolher morrer logo no dia do aniversário do filho! – ela disse com um pingo de indignação.

         — Infelizmente, nem sempre é possível se escolher o dia que se vai encontrar o Criador, não é mesmo?

         — Uma das coisas que Fulaninho mais gostava era fazer uma festa no dia do seu aniversário... Ele convidava todos os amigos, inclusive eu. Tinha tanta comida, bebida e música. Fulaninho sabia como dar uma festa... – ela disse meneando com a cabeça em tom de pesar.

         — Fazer o quê, né? – eu disse sem ter o que dizer.

         — Veja só, mas que situação: no dia que Fulano morreu, Fulaninho não sabia se comemorava o aniversário ou se enterrava o pai. – disse lamentando.

         — Realmente, está é uma dúvida cruel. – respondi perplexo.

Rio Vermelho, 3 de março de 2013.
        
         

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cadê o Romantismo?

As redes sociais buscam sempre se renovar inventando novas modas que vão revolucionando os costumes conforme a boa aceitação da freguesia, e não poderia ser o contrário, pois, terminariam matando de tédio os seus milhões de já entediados usuários. A bola da vez é um programinha que encoraja seus usuários a escolher, dentre os amigos de sua lista de contatos, aqueles com quem gostaria de fazer sexo. Muito criativo, não? Se, por uma coincidência, um dos amigos escolhidos pelo usuário também o tiver incluído em sua própria lista... Bingo! Habemus Transa! “Chega de papo furado e vamos ao que interessa”, diz o slogan do dito programa. Tudo isto, no mais perfeito sigilo e discrição.

         Como ferramenta para quem busca sexo unicamente pelo sexo, ela é bem mais prática que ir de carro até o centro pegar uma prostituta, – ou prostituto – além do que, o serviço é oferecido inteiramente grátis. Precisamos admitir que já chegamos ao final dos tempos, e que há uma banalização de tudo, desde a violência física até aquela que deveria ser a mais pura manifestação de romance entre dois seres humanos. Os parceiros de sexo foram coisificados, estão substituindo o encontro olho no olho pelo desejo através da tela do computador, basta “postar” uma boa foto.

         Onde foram parar as trocas de olhares cobiçosos, disfarçados em desinteresse, as palavras gentis e elogiosas para conquistar a simpatia da pessoa que é o objeto do desejo, a paquera, a descoberta maravilhosa do outro? Este tal programa de computador ignora que a importância da corte não reside apenas em conquistar a pessoa de nosso interesse, mas de saber praticar relações pessoais de forma civilizada e dentro dos princípios de uma ética, do contrário, estaremos banalizando muito algo que tem sido a maior expressão de romantismo do homem de todos os tempos, nos igualando aos quadrupedes.

Qual jovem habitante do mundo cibernauta saberá o prazer da experiência de ser cortejada e seduzida e de ouvir uma romântica declaração de amor como a que fiz, certa vez, a uma linda mulher e jamais fui respondido? Sim, porque este jogo real do amor nos ensina, também, a lidar com as frustrações da vida cotidiana, pois nem tudo na vida é obtido de maneira tão fácil e descartável como fazer sexo com pessoas escolhidas de uma lista de um programa de computador. Vivemos numa época em que só o que vale é ter sucesso na vida e esquecemos que aprendemos muito mais com as nossas falhas.

O sucesso estrondoso deste programa vem apenas confirmar a fragilidade a que chegou as relações amorosas e que estas se tornaram efêmeras e descartáveis. O romantismo está sumindo e adquirindo feições de uma peça empoeirada de museu que muitos jovens já desconhecem a importância em suas vidas. Em vez do ser humano agregar valores superiores com os avanços da modernidade, ele se desvaloriza cada vez mais.

Rio Vermelho, 24 de fevereiro de 2013.