domingo, 7 de dezembro de 2008

Um caso de malemolência nativa.


Pessoas como eu, que tem o infortúnio de morar em áreas urbanas onde reina o caos, aproveitam férias e feriados para refugiar-se em pequenos paraísos ecológicos em busca de um pouco de paz, sossego e um cenário praiano ou bucólico. Não há nada melhor que curtir uma praia distante sem precisar disputar a areia com ruidosos farofeiros. Ou deliciar-se com banhos de cachoeira ou rio no meio no mato. Fico até com saudades só de pensar.

Meu destino preferido é a cidade de Lençóis, incrustada no meio da chapada Diamantina. Caso você, nem nunca tenha ouvido falar do lugar, Lençóis foi erguida nos tempos áureos do garimpo na região, numa época de muita riqueza. Era conhecida como a Capital do Diamante. Tudo isso é passado agora. Os diamantes sumiram. Mas cidade teve a sorte de ter sido construída num vale, cercada de florestas exuberantes, rios e cachoeiras caudalosos que atraem amantes da natureza de todos os cantos do mundo, tornando-a a mais cosmopolita das cidades do interior.

Todas as férias de verão e feriados, a pequena cidade é invadida por turistas vindos de metrópole em busca de um encontro com a natureza. São freqüentes as situações inusitadas que se criam deste encontro entre o urbano e o bucólico. Imagine que o visitante da grande cidade, geralmente um cidadão exigente e sofisticado, está habituado a padrões de serviço que primam pela rapidez e profissionalismo. Por outro lado, o nativo da região, procurando aproveitar a maré turística, oferece seus préstimos ao visitante com a mesma atitude de quem estivesse fazendo um favor. Desconhecem os protocolos geralmente criados pela demanda urbana. As coisas são levadas na tranqüilidade e sem pressa, usando os seus próprios métodos e conceitos. É a sua natureza malemolente. E eles estão certos, para quê toda essa pressa e exigência se as pessoas estão lá justamente para relaxar e esquecer o stress da cidade grande? Algo semelhante aconteceu na China de Mao ao abrir as portas para o ocidente, embora lá não seja nenhum pequeno reduto ecológico, muito pelo contrário, mas é ilustrativo. Os costumes dos visitantes demoraram em ser assimilados. Um recepcionista de um dos poucos hotéis que recebiam turistas estrangeiros achou estranho o pedido de um americano. O ianque pediu à telefonista que o acordasse cedo em determinado horário. A telefonista chinesa não entendeu porque o hóspede tinha lhe feito tal pedido e porque ele mesmo não se acordava sozinho, já que este era o costume na China. Mas aceitou a solicitação mesmo assim. No horário combinado, o telefone tocou ao lado do americano. Em seguida, o pobre coitado ouviu uma voz mal humorada gritando com ele do outro lado da linha: 'Acorda!'

Mas voltando ao pequeno paraíso ecológico da Chapada, os seus nativos nem sempre conseguem compreender o estilo de vida dos visitantes e nem estes tentam ver o lado dos nativos. Eles invadem a pequena cidade e querem encontrar o mesmo conforto que deixaram em casa. Por outro lado, os moradores destas localidades são geralmente pessoas hospitaleiras e prestativas, apenas levam um ritmo de vida diferente e possuem seus próprios hábitos e conceitos.

Verão passado fui passar algumas semanas em Lençóis. O calor na cidade é infernal nesta época, pois ela fica localizada numa baixada cercada de florestas e rochas. Ironicamente, dentro da cidade quase não existem árvores. O calor é insuportável de dia e tolerável à noite. O que faz de Lençóis especial é que ao seu redor existem muitas possibilidades de banhos de rio ou cachoeira com água incrivelmente gelada! Existem também as caminhadas pelo mato, mas nada é comparável a ficar o dia inteiro com o corpo mergulhado na água gelada, embora eu saiba flutuar igual a um saco de areia!

Encontrei um amigo de Salvador, o Zé Luiz. Tinha alugado para a temporada uma casa na Rua da Baderna. Eu também fiz o mesmo. Aluguei uma longe do burburinho da cidade. Ficava numa pequena colina quase dentro do mato. De minha janela, podia ver a floresta exuberante à minha frente, coberta pela serragem das manhãs e, à noite, dormia ouvindo os ruídos dos grilos e da água de um riacho batendo sobre as pedras logo adiante. A casinha era confortável. Seu telhado era de telha de cerâmica e sem forro. Algumas vezes choveu tanto na madrugada que senti os respingos da chuva cair sobre o meu rosto, deitado na cama. Para um sujeito da cidade, isto é assustador, mas para os moradores deste tipo de casa isto é natural. Achei pitoresco, embora não quisesse esta maravilha para minha casa de Salvador. Combinei com o Zé de ir tomar um banho do Ribeirão de Baixo, meu lugar preferido. Só vai quem é da cidade, e chegar até lá, envolve uma bela caminhada de três quilômetros e meio. Lá em lençóis é assim, as pessoas combinam para ir tomar um banho de cachoeira ou dar um passeio no mato, assim como em Salvador combinamos para ir ao shopping ou à praia. Estava combinado, passaria em sua casa depois das 9 e não antes, pois um certo Sr. João iria aparecer para tirar uma goteira do telhado da cozinha. Era coisa simples é rápida, ele apenas subiria lá em cima e recolocaria no lugar algumas telhas.

Acordei cedo e fui tomar um café reforçado na Da. Joaninha. Pedi o completo: suco, frutas, bolo, cuscuz de milho, mingau de tapioca, beiju, avoante, pão, queijo, bolinho de chuvisco, ovos fritos na manteiga de garrafa, aipim, banana frita e, é lógico, café com leite. Com um café desses, eu só iria almoçar no final da tarde quando viesse do passeio. Depois de me refestelar de comida, fui lá para a casa do Zé. Encontrei-o desolado à janela. A casa era umas daquelas geminadas de porta e janela que dão para a rua. O Sr. João não tinha ainda aparecido para concertar o telhado conforme fora combinado. Esperei com ele. O acertado fora às 7:30 e já passavam longe das 9 quando o avistamos subindo rua acima distraído do outro lado da calçada. Vinha sem pressa alguma e se o Zé não tivesse gritado por ele, teria seguido adiante e desaparecido ao virar a esquina.

- Seu João, ô seu João. – gritou acenando com o braço.

Seu João olhou para o Zé com uma expressão de quem lembrara alguma coisa. Atravessou a rua e veio falar com ele.

- Bom dia, Dr. Zé. – saudou com uma voz preguiçosa.

- O que houve, seu João? Esqueceu que tínhamos combinado? – cobrou Zé, impaciente.

- Esqueci, não. – respondeu seu João sem jeito.

- Então vai fazer o serviço agora? – insistiu.

- Vou não, Dr. Zé. – deu um sorriso amarelo.

- Mas por quê? – quis saber surpreso.

Seu João deu um suspiro e depois falou devagar arrastando as palavras.

- Ah... eu tô com uma preguiça!


Rio Vermelho, 7 de dezembro de 2008.


4 comentários:

Cristiana disse...

Cristiano, tenho me deliciado com este seu talento de cronista do cotidiano, mas desta vez a crônica me acertou em cheio; morei por 7 anos na Chapada (não, não foi no Tibet não) e o povo lá é assim deste jeitinho, cuspido e escarrado...

Cristiana disse...

Cristiano,
Tenho me deliciado com suas crônicas do cotidiano. Com esta em especial me identifiquei muito. Morei na Chapada 7 anos ( não, não foi no Tibet!) e é assim que o povo é, cuspido e escarrado... Cristiana Koser

Sarnelli disse...

Cristiano, meu parabéns pelo seu escrito !Me transportei durante os minutos de leitura para aquele ambiente descrito tão singelamente quanto verdadeiro . Senti o calor da cidade, suei durante a caminhada, mas, infelizmente, acordei antes do banho de água gelada , uma pena ! Um dia, ainda vou tentar um desjejum como aquele seu !... Sim,... acabou sabendo quando aquele senhor voltou para consertar a pingueira, ou ainda continua com preguiça ? Abraço

Becky disse...

Foi assim mesmo com o Sr. Ze???
Quero saber mais sobre o seu cafe de manha. Sao fantasticos em Lencois!