terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Desculpa anã.

O maior desejo de Lindiane era um dia se casar e formar uma bela família, assim como fizera os seus queridos e amados pais. E para realizar este maravilhoso sonho, ela contava ter ao seu lado Dinho, seu futuro e amado esposo, depois de quase seis longos anos de noivado. Isto sem levar em conta os outros três de namoro na porta, sob os olhares severos e disfarçados do pai. Para ela, não havia bem mais valioso e sagrado que uma família. Casar e ter filhos poderia parecer, para muitas mulheres modernas, uma coisa antiquada, apesar de que, invariavelmente, era o que lhes acontecia mais cedo ou mais tarde, a menos que escolhessem por levar uma vida fora dos esquemas convencionais ou ignorar os chamados da natureza para trazer a este mundo mais um habitante.

    Lindiane já tinha tudo planejado nos mínimos detalhes, desde o momento em que passou a ter aquele irremediável desejo de formar sua própria família, quando ainda era apenas uma adolescente. Já tinha escolhido o modelo de vestido de noiva, seria igualzinho ao da mãe. Só não seria o próprio porque este não lhe cabia no corpo mais robusto, e qualquer ajuste que sofresse o tornaria definitivamente diferente do original. Era melhor fazer outro com suas medidas. Seria todo em tafetá, e como a tradição mandava, branco, com acabamento nas bordas e no decote em rendas de bilros trazidas do Ceará. Sua tia Arlinda, se encarregaria de sua confecção, uma vez que não havia em toda a cidade, melhor costureira de vestidos de noiva que ela. A cerimônia aconteceria na capela do Colégio Santo Inácio, onde estudara desde menina e onde rezara pela primeira vez pedindo a Deus um marido bom e justo.

    Dinho era tudo que se poderia esperar de um futuro marido e bom pai. Ele era um homem alegre e muito trabalhador. Atencioso e carinhoso com ela, e atento a satisfazer-lhe os desejos nos mínimos detalhes. Ele era compreensível e descontraído. Gostava de crianças. Seus pais, também, gostavam muito dele. Ela também gostava muito da família dele que era composta apenas da mãe viúva e de uma irmã com que ela se relacionava muito bem. Enfim, tudo se coadunava para abençoar aquela união como algo sagrado e eterno.

    Desde o seu primeiro emprego, Lindiane teve o cuidado de economizar uma pequena porção de seu salário para comprar o seu enxoval de casamento, e como planejara se casar num prazo de no máximo oito anos, até lá já teria o suficiente e ainda sobraria alguma coisa a mais para dar entrada num pequeno apartamento. Seu sonho era comprar um na mesma rua onde moravam os pais, assim poderia contar com a ajuda da mãe para cuidar das crianças quando os filhos nascessem e ela tivesse de voltar a trabalhar. Gostaria de ter um casal. O menino se chamaria Aurélio, em homenagem ao falecido pai de Dinho. Já a menina seria Arlete, o nome de sua querida avó materna. Na hipótese de nascerem dois meninos ou duas meninas, pelo menos um deles receberia um daqueles nomes sagrados e Dinho escolheria o outro.

    Lindiane ficava imaginando como seria a decoração de seu lar. Os móveis da sala de visitas seriam novos e bonitos, nada muito expendioso, mas de bom gosto. Colocaria um carpete branco e macio e um conjunto de sofá com poltronas igualmente macios. A mesa da sala seria redonda toda de madeira. Ao centro, ficaria o vazo de cristal Fratelli Vita que ela tanto gostava e que fora uma herança de sua avó. Em dias especiais, o encheria com flores do campo de cores variadas que perfumariam toda a casa com uma fragrância agradável e suave. Sobre a mesa quadrada de fórmica da cozinha, colocaria uma gamela onde poria, semanalmente, frutas frescas de todos os tipos de acordo com a estação. Ela adorava o colorido saudável das frutas. Já ouvira falar que era moda fazer aquela decoração usando-se legumes e verduras também, e por isto, estava curiosa em experimentar aquela novidade. O quarto do menino seria pintado de azul bem claro e decorado com brinquedos e pôsteres de carros e aviões. O da menina seria num tom de rosinha com gravuras de flores penduradas nas paredes e bonecas de pano sobre a cama e prateleiras. Seu quarto, apesar de ser o maior de todos, seria o mais simples. Apenas a cama de casal, um armário para colocar roupas e uma penteadeira. Queria que o exemplo de uma vida bem regrada servisse de modelo para as duas crianças. A casa toda seria limpa diariamente e uma vez por semana passaria óleo de peroba sobre os móveis para dar aquele cheirinho de limpeza.

    Foi este sonho que permeou a sua imaginação durante muitos anos até marcar a data do casamento com Dinho para dali a um ano, quando ele completaria exatos trinta anos. Os dois até já tinham marcado o dia que dariam a entrada no novo apartamento, em duas semanas. Seu sonho já estava se tornando uma realidade. A vida tinha o sabor doce, pensou certa manhã Lindiane.

    Um belo dia antes da data que Lindiane e Dinho haviam combinado para irem à imobiliária fechar o negócio do apartamento, Dinho parecia mais agitado do que o de costume. Quanto ele estava assim naquele estado, Lindiane já sabia que ele queria lhe dizer alguma coisa importante e não sabia como.

    — O que você está tentando me dizer, Dinho? Por que você está desse jeito? — perguntou preocupada.

    — Sabe, Nane, estive com meu tio hoje esta tarde. Agente conversou bastante, sabe. — disse sem jeito.

    — É mesmo? E sobre o que conversaram? — perguntou curiosa.

    — E se agente pegasse todo esse dinheiro do casamento que agente vem juntando e investisse tudo numa plantação de coco-anão? O que você acha? — perguntou desconcertado evitando olhá-la nos olhos.

    Ao ouvir aquele plano esdrúxulo, as lágrimas começaram a verter dos olhos de Lindiane feito um coração que sangrava partido. Ela, que esperara tanto para se casar com Dinho e realizar seu sonho de menina, estava, então, diante de um homem que ela desconhecia. Aquela sugestão infame era o modo de Dinho declarar que não queria mais casar. Que mulher esperaria por algo tão incerto por mais cinco anos, o tempo necessário para um pé de coco-anão crescer e começar a dar os primeiros frutos? Quantos cocos seriam necessários para realizar o seu sonho de casamento? Como vocês podem ver, este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 18 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Ratos de festa.

Era uma daquelas noites enluaradas nas quais o céu fica pontilhado de estrelas que brilham no firmamento feito minúsculos diamantes sobre um veludo negro sem fim. Daquelas que nos dá vontade de passear de mãos dadas com uma bela moça ao longo de uma praia deserta. No entanto, eu estava a caminho de encontrar com amigos dos tempos de escola, o que não deixava de ser uma ocasião especial. Considero os amigos de infância como um bem para toda a vida, estes é que são os amigos de verdade. Para completar aquela ocasião memorável, uma suave brisa atenuava o calor daquela noite morna de começo de um verão fora de época, como um convite perfeito para sentar-se ao ar livre ao redor de uma mesa servida de comida honesta e bebida à vontade, na companhia de amigos que me conheciam desde pequeno, para recordar dos velhos tempos. O local do encontro era o Mariposa do Shopping Boulevard 161.

Cheguei meia hora adiantado, como de costume, e, para matar o tempo, fui olhar vitrines. Enquanto passeava distraído, percebi uma animada música de festa vinda do andar superior através de uma sacada acima de onde eu me encontrava. Não resistindo à minha natureza curiosa, fui até lá dar uma bisbilhotada. Para quem não conhece, o Boulevard 161 é um pequeno e agradável shopping de bairro de tijolo aparente de apenas dois pavimentos, com imensas arcadas que permitem a iluminação e a ventilação natural, uma vez que suas vias internas não são ar-refrigeradas. Usei o elevador para chegar até o andar de cima. Ao sair do cubículo, avistei um pequeno grupo de pessoas elegantemente vestidas em frente a uma loja. Aproximei-me cauteloso para não chamar a atenção. Eis que surgiu logo à minha frente um garçom equilibrando numa mão uma bandeja cheia de longos copos com gelo e na outra, segurava firme uma garrafa de vodca.

—É servido? — ofereceu polidamente com ar solene.

Dei um largo sorriso e assenti com a cabeça. E por que não? Uma dose de álcool faria-me chegar a meu encontro já com o espírito festivo. Logo em seguida, lá estava eu com um copo de vodca importada na mão bebericando. Nem bem dei o primeiro gole e uma bandeja de canapés de camarão surgiu à minha frente, carregada por outro garçom que parecia já ter tomado quatro dozes daquela mesma vodca. Dei outro sorriso e bati com a cabeça. Não vou negar que gosto muito de camarão. Ainda mais camarões de coquetel, são graúdos. Estes eram enormes, pareciam ter vindo de um daqueles arquipélagos na Polinésia, onde super-potências fazem testes de bombas nucleares! Dei uma mordida, estava ótimo. Senti-me radiante, desculpa o trocadilho. Dei uma volta pelo ambiente e não descobri do que se tratava o vento. Camarão? Aceitei outro canapé e fui logo surpreendido por uma taça de champanhe. Não sou fã de champanhe, mas não recusei a oferta. Afinal, champanhe é sempre champanhe numa festa fina. Na verdade, minha preferência sempre é uma generosa dose de uísque. Mal pensei no assunto e surgiu outro garçom com copos cintilantes e uma garrafa de Bala 8 à minha frente. Aceitei um copo candidamente. Mas eu ainda não tinha a menor idéia do que se travava aquele coquetel e nem isso me importava, desde que meu copo estivesse sempre cheio. Eu bem poderia perguntar a um dos garçons, mas isto seria fácil demais. Preferi observar e descobrir por mim mesmo o que estavam festejando.

Esta invasão em festa alheia me fez lembrar-se de um certo camarada português que eu costumava encontrar em ocasiões como aquela, há muito tempo atrás. Não recordo o seu nome e duvido que ele alguma vez o tenha dito ou eu lhe perguntado. Naquela época, eu tinha o hábito de comparecer aos convites que recebia para coquetéis de todo o tipo de evento, exposições de arte, lançamento de livros, datas comemorativas, o que fosse. Era aquele tipo de evento impessoal que acredito que mesmo quem o estivesse promovendo, conhecesse todos os seus convidados. Eu era um verdadeiro rato de festa. Não era raro eu sair de um coquetel para ir o outro. Era uma peregrinação etílica e gastronômica que eu cumpria com redobrado prazer. Foi assim que conheci este personagem, uma vez que ele coincidentemente comparecia aos mesmos eventos. Eu, no entanto, ia de convidado e ele, de penetra! Nossos encontros freqüentes nos levaram a conversar casualmente. Percebi que ele tinha um verdadeiro apetite pelos acepipes, embora eu devo confessar que a maioria daquelas festas primavam pela fartura. Eu sempre o encontrava de boca cheia e com um copo na mão, parecia que era sua marca registrada. Percebi que ele mal conhecia ou tentava conversar com os outros convidados e, por isso, ficava feliz quando eu lhe dava atenção. Até hoje eu não faço idéia de como ele tomava conhecimento de todos aqueles eventos e dava um jeito de estar presente a todos eles mesmo sem ser convidado. Quando eu chegava, lá já estava ele. Ao me ver, vinha me cumprimentar.

— Olha, o croquete de camarão está meio borrachudo, mas as empadas estão boas. — informava-me logo de cara.

— Este uísque está meio suspeito. — acrescentava fazendo uma discreta careta.

Não devo negar que suas informações eram relevantes e poupavam-me frustrações. Nada mais desagradável para um paladar refinado do que por na boca um uísque de terceira categoria. Embora eu soubesse que ele sempre entrava nas festas sem ser convidado, jamais me atrevi a perguntar-lhe como tomava conhecimento delas se não recebia convites. Talvez o penetra de festa profissional tenha uma rede de informações que o põe a par de todas as bocas-livres da semana. Nem o Pentágono ou a CIA seriam tão bem informados.

Um dia, resolvi não ir a um dos convites. Depois não fui a outro e mais outro, e não demorei muito a não ir mais a nenhum deles. E como eu já previra, nunca ninguém jamais deu a menor falta da minha pessoa. Deixei de ser mais uma cabeça para fazer número em coquetéis daquele tipo, tão impessoais. Na verdade, eu já estava ficando surdo de ouvir tanta conversa chata. Certo dia, recebi um telefonema de um querido amigo, avisava que iria lançar mais um livro e que o meu já estava reservado. Embora ele não me pedisse para ir ao lançamento, fui assim mesmo, para lhe fazer esta surpresa e demonstração de apreço. Ao entrar no pátio do local onde aconteceria o lançamento, eis que surge à minha frente outro se não o português penetra e rato de festas. Estava mais velho e mais gordo. Fazia mais de dez anos que eu não o via.

— Rapaz, você sumiu! Que saudades, por onde tem andado? — perguntou com um acarajé na mão.

Salvador, 7 de dezembro de 2009.






quinta-feira, 26 de novembro de 2009

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Valeu!

O observador da esquina.

Minhas freqüentes idas à mercearia deveriam contar como exercício físico, pois, vou a pé e volto carregando algum peso, embora insignificante. Quem sabe já nas Olimpíadas de 2016 a 'ida ao mercado com retorno pesado' já estará incluída entre as modalidades esportivas, e eu não estarei fazendo parte da equipe brasileira? Mesmo uma simples e trivial ida ao armazém pode se tornar numa experiência interessante, se levarmos em consideração o que vamos encontrado pelo caminho, e não é pouca coisa. Aqui no Rio Vermelho, há personagens curiosos que desafiam a nossa imaginação. Um deles, entretanto, tem chamado a minha atenção e curiosidade nos últimos anos. Trata-se de um rapaz saudável e bem apessoado e que tem por hábito sentar-se na murada do canteiro de plantas de uma esquina da Oswaldo Cruz, caminho para as minhas compras. Esta é uma das ruas mais movimentadas do Rio Vermelho, caminho obrigatório de milhares de automóveis e ônibus que vem de outros bairros ao longo das praias em direção ao centro. E se é tão movimentada, imagine como também é barulhenta. Não deixa de ser um local inusitado como a escolha para passar o tempo, levando-se em consideração as belas praias que existem por aqui, e que, certamente, merecem contemplação, embora eu concorde que gosto seja uma escolha pessoal. Fico imaginando o que haveria de tão bom em sentar-se ao sol numa esquina movimentada vendo os carros passarem. Talvez o rapaz seja um expert em transito e esteja estudando uma forma de desatar o nó que se transformou o Rio Vermelho. Ou quem sabe ele considere um tédio sentar-se na areia da praia e ficar olhando para o horizonte sem que nada de incomum aconteça. Não o culpo, também considero sacal passar mais que cinco minutos admirando mais esta Obra Divina. De qualquer forma, achei curioso aquele sujeito e seu hábito urbano. Pensei em aproximar-me para perguntar-lhe a razão de tanto interesse pelo movimento dos carros, mas temi que a resposta castrasse a minha imaginação, afinal o motivo poderia ser simples demais. Algo como preferir estar ali naquele lugar infernal ao invés de ficar em casa aborrecendo o juízo da patroa. Sempre que passo em direção ao mercado, lá está ele sentado na murada, solene em seu posto, na companhia de uma latinha de cerveja. Chamou-me a atenção que seu o cabelo está sempre aparado e aprumado. Veste-se como se estivesse em casa, porém com roupas sempre limpas.

    Imagino se meu amigo observador fica admirado pela grande variedade de modelos de automóveis que desfila pela sua esquina diariamente. Já deve até ter percebido que a cor preta é a preferida de quem possui um Celta e que os carros vermelhos são uma raridade. Os novíssimos em folha já ultrapassaram em número os calhambeques, uma constatação maliciosa de que o número de pessoas endividadas multiplicou. Qual será o destino daquelas pessoas, ele deve se perguntar com freqüência. Algumas delas já devem ser velhos conhecidos, das tantas vezes que se encontram naquele mesmo lugar quase todo santo dia. Outras aparecem de vez em quando, mas nunca deixam de dar uma passadinha pelo local. Elas também já o perceberam. Cada uma vai dirigindo seu próprio automóvel ou sendo conduzida por alguém. Os ônibus também passam, e lotados. É tanta gente espremida lá dentro que quem está do lado de fora nem consegue distinguir seus rostos, voltados para o que se passa do lado de fora. Vão a caminho do trabalho, da escola ou enfrentar qualquer interminável fila de serviço público. A esta altura, meu crítico observador já deve ter notado a discrepância que é a solidão dos mais afortunados, em seus luxuosos automóveis falando ao celular, enquanto dezenas de trabalhadores viajam confinados no transporte público minguado feito gado transportado. Será que eles são mesmo indiferentes aos que aguardam por uma condução de pé nos pontos de ônibus ao longo do caminho, ou apenas receiam a aproximação com estranhos?

Outros pedestres que passam por aquela rua com a mesma freqüência, também já se acostumaram com a presença do rapaz da esquina, e, também o cumprimentam com um 'bom dia' mas, como eu, não ousam perturbá-lo com nenhuma pergunta indiscreta sobre sua atividade observatória. A vida em grandes cidades pode ser vazia e solitária, mesmo para aqueles que busquem preenchê-la de modo nem sempre produtivo. O ócio é a ocupação dos gênios, penso eu. Nenhuma grande obra ou pensamento foi desenvolvido durante as atividades de alguém muito ocupado. Trata-se de uma lei natural das coisas, uma espécie de equilíbrio dentro do universo, enquanto alguns trabalham muito, outros se ocupam em ver passar o tempo.

Outro dia eu fui em minha peregrinação em direção ao mercado, quando deparei com meu personagem em seu habitual posto de observação. Fazia semanas que eu não fazia isto, e foi como encontrar um velho conhecido. Era uma tarde, o que justificava a sombra em seu local preferido. Desta vez ele não estava só. Sentada numa cadeira de armar de metal ao seu lado, estava uma empertigada senhora de idade. Não tive dúvidas que aquela era a sua mãe. Seus cabelos já eram brancos feito algodão, e o seu corpo magro e frágil lembrava uma porcelana fina. Como toda velhinha, ela estava arrumada e perfumada para um passeio. Ao contrário de seu filho sentado ao seu lado, que assistia vigilante o movimento da rua, seu olhar era indiferente e abandonado, alheio a tudo aquilo. Não havia movimento ou expressão em seu rosto, apenas aquele olhar triste e senil. Os dois não trocavam palavra que fosse, nem olhar ou gesto que indicasse algum tipo de interação social, embora um observador atento não deixasse de perceber o laço que unia mãe e filho naquele momento de ternura e solidariedade.

Rio Vermelho, 25 de novembro de 2009.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

As que não soltam as tiras.

Fazia tempo eu pensava aposentar minhas velhas sandálias para comprar um par novo e mais moderno. Embora estas ainda dessem conta do serviço, já estavam dando sinais de desgaste e cansaço, apesar de que elas ficam bem mais gostosas para usar, à medida que envelhecem. Porém, sua hora já havia chegado e o momento de dizer adeus era eminente. Troquei os sapatos e o tênis por este calçado tão democrático e popular que são as nossas companheiras, as sandálias de borracha, já faz tempo. Mas não pense que sou aquela figura excêntrica que sai por ai de terno e calçando sandálias! Nosso clima quente, também, pede mais por confortáveis sandálias do que por calçados fechados que só produzem aquele mau cheiro que só de imaginar torcemos o nariz e que costumamos chamar de chulé.

Já se foi o tempo em que as Havaianas só eram encontradas em gôndolas de supermercados ou nas prateleiras empoeiradas de mercearias de bairro. Tornaram-se peça de grife com suas próprias lojas chiques espalhas por onde quer que se possa abrir uma porta de comércio, são encontradas desde no armazém do bairro até em luxuosos shoppings centers. Foi numa dessas lojas que entrei para comprar um par de legítimas Havaianas, as que não soltam as tiras, como elas mesmo orgulhosamente anunciam, numa bela manhã de sábado, aqui perto de casa. Como era de se imaginar, as opções de modelos eram muitas. Felizmente, os modelos masculinos eram poucos e terminei me decidindo por um novo lançamento, um par de sandálias com o solado mais largo e design estiloso. Eram três vezes mais caras também, mas como as sandálias, para mim, são indispensáveis, valia a pena o investimento. Meus pés são largos e grandes como os de uma figura portinariana, por isso, eles se sentiram muito confortáveis no novo par de sandálias. Meu amigo Nando, cujo pé também é aloprado, simpatizou com minhas sandálias e foi correndo à mesma loja comprar um par. Minhas novas sandálias eram tão confortáveis e elegantes que até imaginei que um belo terno combinaria bem com elas!

Como tudo que é bom dura pouco, minha lua de mel com as novas sandálias não durou nem seis meses. Um belo dia, colhendo mato em meu jardim, a tira do pé esquerdo se partiu. Mas não são elas as que não soltam as tiras? Não fiz movimento brusco e nem aquilo foi o resultado de continuo abuso de suas capacidades físicas, visto que levo uma vida confortavelmente sedentária. Ela simplesmente partiu a tira. Aquilo foi uma fatalidade que poderia ter acontecido a qualquer um. Segundo o IBGE, um em cada um milhão brasileiros corre o risco de ter a tira de sua sandália Havaiana partida pelo menos uma vez na vida. Aquela foi a minha vez. A mesma estatística se aplica para felizes ganhadores da Mega-sena, mas, no meu caso, é sempre mais possível que eu vá perder uma sandália, ao contrário de me tornar um milionário!

Gostei tanto daquele modelo que voltei à loja para comprar outro par. O mesmo vendedor da outra vez veio me atender com um sorriso nos dentes. Contei-lhe sobre a tira partida da sandália que me vendera e, sem fazer ouvido de mercador, como qualquer outro comerciante o faria, disse:

— Telefona para o atendimento ao cliente das Havaianas que eles te dão outra. — escreveu o número numa tira de papel e me entregou.

Nunca me passou pela cabeça reclamar por algo daquela natureza, sobretudo por causa do aborrecido interrogatório que imaginei ser submetido só por causa de um par de sandálias de borracha. Minha especialidade é reclamar pelo barulho e o mau cheiro da churrascaria aqui do bairro. O mais sensato seria, era esquecer o prejuízo, se é que houve algum, e simplesmente comprar um novo par. Mesmo assim, agi contrário à minhas elucubrações e, resolvi arriscar. Deixei a loja de mãos vazias, não levei as sandálias ainda daquela vez. Na segunda feira seguinte, telefonei para as Havaianas contando o meu drama. Para minha surpresa, não houve gravação alguma me pedindo para aguardar um instante, pois, minha ligação era muito importante para eles, ou aquele grande sucesso das paradas da categoria musica de espera, tão irritante aos ouvidos. Fui atendido na bucha. Lembrei que não estava ligando para a companhia telefônica ou para o Banco do Brasil. A moça foi muito educada e solicita e, depois de satisfazer-lhe a curiosidade feminina com algumas respostas sobre a minha pessoa e o par de sandálias, informou-me que eu receberia correspondência com instruções, despediu-se polidamente. Nunca vi nada tão simples. Ela nem sequer tentou por a culpa em mim pelo dano, eximindo seu patrão da responsabilidade, como faria qualquer gerente de banco bem treinado ou outro atendente de serviço de atendimento ao cliente. Ao contrário, tratou-me como pessoa honesta e com boas intenções, o que, aliás, eu sou e tenho. Senti-me justiçado. É tão comum pessoas se sentirem injustiçadas, mas desta vez ocorreu o justamente o contrário. Dias depois, recebi um envelope com as tais instruções. Fui até a agência do correio aqui perto de casa levando o pé de sandália avariado. Entreguei-lhes um cupom que veio junto com as instruções e recebi em troca uma embalagem para por a sandália. Assunto encerrado. Semanas depois, recebi em casa um novo par igualzinho ao que eu tinha comprado. As Havaianas tinham ganhado a minha admiração e fidelidade.

Tudo poderia ter passado como por um desses contratempos que acontecem na vida da gente, de vez em quando e, depois, caem no esquecimento. Não é que quase seis meses depois a dita cuja quebrou a tira de novo? Desta vez, resolvi não fazer mais nada a respeito. Nada de reclamar ao fabricante. Também não comprei sandálias novas, ao contrario, fiz uma combinação. Passei a usar o pé cuja tira estava intacta com o de outra sandália já aposentada. E tem gente que ainda diz que aposentados não servem mais para nada! Foi uma combinação estranha, algo fora dos padrões. Todos olhavam para os meus pés, curiosos com aquela dupla de sandálias incomum. Eu nunca chamara a atenção tanto para mim. Eu achei que estava bom, embora uma sandália fosse cor de marfim com tiras largas em duas tonalidades, azul marinho nas bordas e gelo ao centro e com o design sofisticado parecendo uma prancha. O outro pé era o de um modelo convencional, tinha as tiras pretas estreitas com solado estampado com um motivo praiano em azul e preto. Era uma combinação estapafúrdia e por isso mesmo achei que poderiam dar certo. Quem sabe eu estivesse inventando moda. Afinal, com tanta idiotice por ai virando moda, talvez a minha hora tivesse finalmente chegado. Nunca ninguém pensou em fazer aquilo antes. Seria a última moda do verão. Calçar sandálias com pés diferentes. Dizendo assim até parece coisa simples, mas é uma idéia meio subversiva, algo que mexe com a moral de pessoas acostumadas a ter tudo certinho. Era o caso de patentear aquele invento. Inventos como aquele são patenteáveis. Pode-se patentear de tudo, desde uma simples idéia até a coisa propriamente dita. Já tive outras grandes idéias, e algumas delas até foram roubadas. Por exemplo, os japoneses me passaram a perna com a minha invenção da câmera digital! Mas desta vez eu iria ser mais esperto e registrar logo a minha genial criação. Eu já podia até imaginar a minha idéia virando "case study" em doutorado de curso de marketing. Eu tendo a minha própria grife de sandálias descasadas. Posando os pés para foto de capas de revistas de moda. Bastaria comprar um monte de Havaianas de modelos diferentes e misturar tudo! Uma simples e obvia invenção mudando o curso de uma vida. Eu andava por ai chamando a atenção das pessoas para mim, com o meu invento literalmente a meus pés.

Um dia achei que algo estava errado. Minha consciência de reclamador inveterado me dizia para não me acomodar, e que eu devia me queixar novamente às Havaianas, as que não soltam as tiras. Mandei-lhes um e-mail falando-lhes do ocorrido e dei o assunto por encerrado. Já tinha feito a minha parte. Eu não esperava uma reparação material. Imaginei que eles me responderiam de forma educada, lamentando o ocorrido e informando-me que eu estava desafiando as leis estatísticas, pois, ninguém no mundo jamais teve dois pares de sandálias Havaianas com as tiras partidas em espaço de tempo tão curto e, por isso, lamentavelmente, a troca não seria feita. Troca de uma troca estava fora de questão. Mas, para minha surpresa, dias depois recebi um telefonema das Havaianas, e o resto vocês já podem imaginar. Ganhei outro par de sandálias! Pode-se viver disso, mas para mim, já basta. As Havaianas já provaram que me levam a sério.

Rio Vermelho, 13 de outubro de 2009.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O barulho mora aqui ao lado.

Em tempos em que consideração e respeito ao próximo não são mais valores apreendidos em casa, as novas gerações agem como se o mundo fosse uma temível selva na qual, cada indivíduo deve comportar-se como um ser individualista e destituído de qualquer espírito comunitário e solidário. É a lei do cada um por si. Tenho experimentado na pele esta triste realidade.

Esta semana recebi uma carta um tanto intimidadora de um estabelecimento barulhento aqui ao lado de casa. Em resumo, a tal carta avisava que eles não vão mais tolerar que eu vá até lá reclamar do barulho que eles fazem. Eles sentiram-se incomodados com minhas repetidas reclamações de que o barulho deles incomoda à mim, à minha família e a outros visinhos, alguns, pessoas idosas, residentes aqui há mais de 40 anos. Sentiram-se ofendidos, pois, em sua compreensão, seu alvará lhes dá total permissão para fazer de nossa vida um inferno e, por isso, devemos aturá-los a todo custo. Bonito, não? Mas como este é o país dos absurdos, junte-se este a todos os outros.

Meus contínuos apelos ao proprietário do estabelecimento, um jovem e inexperiente empresário, considera-se um ambientalista, vejam só, para que o barulho fosse eliminado, uma vez que seu empreendimento foi instalado numa área residencial, nunca foram atendidos. Ao contrário, a cada vez que pisava os pés por lá para fazer minhas queixas, ele me olhava com expressão e sorriso de desdém. Eu teria de aprender a conviver com a sua presença, ele informava. Barulho em área residencial não é o tipo de poluição que todo ambientalista deveria reprovar? Nem os apelos pela minha mãe idosa e doente fizeram diferença alguma. Afinal, quem está sofrendo é a mãe dos outros e não a dele.

Até há poucos tempo atrás, o estabelecimento se apresentava como um empreendimento ambiental, preocupado com a qualidade de vida em nosso planeta. Bem pomposo, não? Talvez eu entendera errado, a qualidade de vida a que ele se referia era, na verdade, a de seu proprietário, o ambientalista de carteirinha, e não um bem comum para todos. Coisa chata. Eu também me preocupo com o meio ambiente, com a qualidade de vida do ser humano como parte deste ambiente, sobretudo. Sou um humanista. Mas, como muitas vezes acontece com as grandes idéias, infelizmente, a vaca foi pro brejo. O tal papo ambiental do jovem e arrogante empresário não emplacou, ninguém comprou sua idéia. Para não ficar no prejuízo, o consciente ambientalista empresário, transformou o local em casa de shows e espetáculos. Rebatizou aquilo de espaço cultural. Engraçado, né? Eufemismo é uma ferramenta poderosa no mundo dos negócios. Fazem as coisas parecerem melhores do que elas realmente o são. O veterinário não praticou eutanásia em meu saudoso velho cão doente, apenas o colocou para dormir placidamente com uma injeção. Se como empreendimento ambiental este lugar ao lado de minha casa já incomodava, você pode imaginar o que aconteceu ao ser elevado à categoria de espaço cultural. Não há nada de errado em pessoas tentar ganhar a vida de algum modo, desde que o seu negócio não seja um estorvo para outros. É aquela velha frase que nos chama ao bom senso, a qual eu já ouvia nos tempos do Tereza de Lisieux, "o direito de um, termina onde começa o do outro", seja lá o que isto queira dizer.

Este episódio me fez lembrar que não muito longe aqui de casa, precisamente na rua Jequié, funciona há anos, de modo discreto e despercebido, um bordel. Isso mesmo, um brega, ou casa de massagem, como se costuma dizer hoje em dia. É aquela estória do eufemismo que eu lhes contei há pouco. Um puteiro aqui perto? Eu nunca soube disso até recentemente, apesar de sempre ter passado em frente à tal casa sem nunca perceber nada de extraordinário ali. Mesmo depois de tomar conhecimento, e de tentar observar com um olhar mais crítico a sua movimentação, quando por lá passava ocasionalmente, não percebi nada de incomum. Contudo, coletando informações aqui e ali, na inocente intenção de, futuramente, escrever uma bela crônica a respeito, soube que as "meninas" que lá exercem o seu talento, são as de melhor qualidade que há, inclusive sendo algumas de nível universitário, como em Cuba! A clientela, também, não poderia ser outra senão uma de fino trato, homens do mais alto gabarito, inclusive alguns ilibados pais de família. Tudo nos conforme.

    Pois bem, a ilustre casa de massagem coabita o mesmo logradouro que respeitáveis famílias de classe média e professoras aposentadas, ali existem duas, sem que uma incomode a outra. Convivem pacificamente. Nenhuma das famílias jamais se queixou da inusitada vizinha, até porque, muitas das práticas que ali dentro daquele estabelecimento tomam acontecimento, se perpetuam, da mesma forma, na intimidade do quarto do pai e da mãe, sem que, no entanto, haja troca de prazer por dinheiro, embora muitas esposas sonhem algum dia, serem compensadas por executar tal obrigação matrimonial. A mim também não incomoda que ali funcione uma casa do pecado. Já tive até um vizinho político, por que então, me ofenderia se prostitutas morassem aqui ao lado? O Rio Vermelho tem de tudo, mesmo.

    Fico imaginando como a empresária proprietária da casa de massagem registraria o seu negócio, caso fosse obrigada pela Receita a pagar o imposto por seus serviços prestados. Centro Recreativo e Terapêutico Tia Simara Ltda. Ou Instituto Para o Estudo de Práticas Interpessoais S.A. E por que não, Espaço Cultural e de Lazer Sobrinhas da Tia Simara?

Rio Vermelho, 27 de setembro de 2009.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O jardim dos Amados.

Outro dia, fiz para o almoço uma de minhas especialidades culinárias. Um suculento sanduiche de pão integral assado em meu forno, presunto com queijo, tomate e alface americana, aquela que parece um repolho e suas folhas são crocantes como o beijú. Não uso presunto de verdade, e sim aquilo que o fabricante orgulhosamente chama de "presunto de peito de peru light". Ele anuncia aos quatro cantos que é saudável, e eu faço as pazes com a minha consciência pois, estou finalmente cuidando de minha saúde. Depois de montar minha criação gastronomica, coloquei-a num prato sobre a janela que dá para o jardim, enquanto fui até a cozinha procurar por alguma bebida que combinasse com a iguaria. Ao voltar com o copo cheio de chá gelado, o sanduiche não estava mais lá. Simplesmente havia sumido como por um encanto. Só deixaram o prato e nada mais. Como só havia eu em casa, aquele súbito desaparecimento tomora o contorno de um caso de mistério. Eu poderia jurar a mim mesmo que eu havia feito um sanduiche e o colocado por alguns minutos sobre a janela. Dei a volta pela porta da sala até o jardim para ter uma melhor perspectiva daquele intrigante mistério e, quem sabe até, desvendá-lo. Não tive trabalho para matar a charada. Por um galho do nosso mirrado pé de pinha, um sagüi fugia levando o meu almoço!

Tornou-se comum, nos últimos tempos, o aparecimento desses macaquinhos cinza rajado pelas vizinhanças do bairro em busca de alimento. Felizmente são eles, e não aqueles ursos pretos que invadem os quintais das casas nos subúrbios americanos, atrás de comida. A tia de um amigo, moradora das vizinhanças, se queixou que um cacho de bananas sumira de sua varanda. Bananas sempre estiveram associadas à macacos, mas nunca ouvi falar que eles também apreciassem sanduiche de presunto de peito de peru light.

Soa até simpático se falar de macaquinhos que nos visitam pela janela e roubam a nossa comida. A estória ganha contornos de uma fábula bucólica que acontece em plena zona urbana. Mas a verdade para isto estar acontecendo não tem nada de encantamento. É que puseram abaixo a moradia destes bichinhos e, em seu lugar, ergueram-se arranha-céus de luxo e gosto duvidoso. Sem lugar para morar e encontrar comida, eles aparecem aos bandos às nossas janelas roubando os nossos suculentos sanduiches de peito de peru light e cachos de bananas maduros comprados na barraca do crente alí no canal. Desde que a especulação imobiliária arrasou com o Horto Florestal e adjacências, os animais que tinham lá a sua moradia desde os tempos da Criação, passaram a procurar refúgio do lado de cá, invadindo o nosso espaço. Além dos delicados sagüis, tem aparecido por aqui jandaias, pica-paus e outros bichinhos do mato.

Não tenho nada contra animais deste tipo, e até preso a sua presença. Mas acho que eles devam habitar o seu lugar natural que é o meio do mato. Enfim, cada macaco em seu galho. É lá que eles estão mais seguros e aonde eles pertencem. Acho que se eu fosse morar no mato eu seria considerado um intruso e, com certeza, não me sairia tão bem lá como aqui no meio do concreto e dos automóveis. Não deixei de ficar me perguntando onde eles estariam se refugiando agora que o Horto e adjacências haviam sido invadidos pelas construtoras. Eles vêem até as nossas casas, pegam comida e depois vão para onde? Não tornei disto outro caso de mistério, como o desaparecimento do meu almoço mas fiquei com a puga atrás da orelha.

Foi outro dia ao visitar Pedrão, amigo de infância desde os tempos de escola, que tive a minha curiosidade plenamente satisfeita. Morador de sempre da rua Alagoinhas, teve sorte de ser vizinho do querido Jorge Amado. Era um final de tarde e ficamos na varanda de sua casa jogando conversa fora e tomando uma limada gelada. O sol já tinha desaparecido por detrás das casas e quando finalmente mergulhasse no oceano, deixaria tudo às escuras. Mas ainda era dia. Enquanto conversávamos, notei uma movimentação de sangüis andando pelos fios da rede elética como esquilibristas da morte se achegando para aquelas bandas.

- A esta hora eles vão todos para o jardim de Jorge Amado. – disse Pedro satisfazendo a minha curiosidade. – Os pica-paus, jandaias e outros pássaros também passam lá a noite.

Para quem nunca teve a satisfação de um dia entrar na casa de Jorge Amado, sua melhor descrição possível são as palavras conforto e simplicidade. Nada de luxo para quem já varreu o mundo afora e conheceu palácios suntuosos. A decoração da casa é despojada e não obedece nenhuma lógica estética dos profissionais da arte de arrumar os móveis. É composta de objetos de cultura popular de todas as partes do mundo e obras de arte presentedas por queridos amigos artistas. O telhado da casa é de telha-vã como só se vêem nas casas de fazenda antigas ou habitações simples do interior. Mas o que mais impressiona é o seu jardim, enorme. O jardim dos Amados é uma pequena reserva ecológica nas vizinhanças, com árvores de tudo quanto é tipo. Parece uma mata virgem e selvagem. Isto porque, Jorge sempre se opôs à podação de suas árvores, preferia deixá-las crecer e se expandir conformes os mandos da natureza. Não é à toa que seu jardim mais pareça uma porção da mata de onde os macaquinhos foram expulsos pelas construtoras, razão pela qual eles são atraídos para lá feito formigas em açucareiro. É neste jardim também onde as cinzas de Jorge e Zélia foram depositas, à sombra da velha mangueira onde costumavam namorar sentados de mãos dadas sobre um banco de alvenaria. Jorge Amado gostava de bichinhos, por isso, acho que não é mera concidencia que eles sejam atraídos pela hospitalidade que sempre foi uma caracteristica do número 33 da rua Alagoinhas.

Rio Vermelho, 15 de setembro de 2009.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

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Valeu!

Relíquia.

Outro dia acordei disposto. Iria matar alguém. Não no sentido literal, fique claro. Lavei o rosto com sabão barato depois de me escovar. Ao pegar meus óculos, gentilmente com a ponta dos dedos, sobre a bancada da pia, o dito cujo se partiu ao meio. Naquele instante, o meu mundo, onde nada de extraordinário acontece, sofreu um pequeno abalo sísmico. Sou tão dependente de óculos, apesar de enxergar razoavelmente bem sem eles, que a idéia de passar um único dia sem eles me assustou. Tive o mesmo pânico que um astronauta fumante inveterado, voando na Columbia, teve ao descobrir que se esquecera de levar um pacote de cigarros para o fim de semana! É que tenho a natureza um tanto perfeccionista, e sem óculos, não consigo ver o mundo tão perfeito em toda a sua imperfeição.

    Na noite anterior, eu tinha encontrado uma solução para desatar o nó em que se encontrava a trama do meu livro. Não via a hora de me sentar nesta cadeira para começar a escrever. Iria matar um personagem que se tornara um incomodo. Infelizmente, só na ficção é que é tão simples se livrar de alguém indesejado. Na vida real, é bem mais trabalhoso e arriscado. Meu personagem já tinha cumprido a sua missão, precisava sair de cena. Se ele tivesse um pouco mais de grana, pouparia sua vida, mando-o para uma viagem longa e sem retorno à Europa, como nas novelas. Embora os óculos quebrados fossem os de longe, não precisaria deles para escrever. Porém, não conseguiria pensar mais em outra coisa se não resolvesse aquele perrengue. É que tenho usado óculos quase a vida inteira. Eles caem bem com meu rosto. Acho até que já nasci de óculos, o que deve ter sido muito doloroso para minha pobre e querida mãe. De modo que, tive de rever minhas prioridades. Deixei para cometer o meu crime mais tarde. Fui procurar um par de óculos velho pelos armários da casa. Porém, o único que encontrei me fazia enxergar pior do que estar sem óculos. Como o Dr. Luciano, meu oftalmologista vitalício, só me atenderia na semana seguinte, como fui informado educadamente pela atendente ao telefone, conclui que esperar tanto, estava fora de questão. Peguei o par de óculos velhos e a ultima receita datada de dois anos atrás. O jeito era fazer um arranjo provisório, trocando as lentes da armação velha utilizando a receita antiga. Um par de lentes novas, embora desatualizado, não sairia por mais que um BigMac com fritas, calculei.

    Calcei os meus chinelos e fui até uma das duas óticas aqui do bairro. A vendedora da primeira loja foi muito solicita. Contei-lhe o meu drama e minha urgência. Enfrentaríamos uma crise pior que a do Senado, caso eu não tivesse meus óculos logo, tentei impressioná-la, embora ela parecesse não ter a menor idéia do que eu falava. Feliz de quem é desinformado. Porém, ela tinha o cacoete de vendedora. Quis me empurrar uma armação nova, pois, como me explicou didaticamente, aquela velha que eu levara comigo corria o sério risco de partir ao ser manipulada no laboratório. Resolvi arriscar, afinal, duas armações partidas na mesma semana, seria muito azar! Não se preocupe, prefiro correr o risco, já ouvi a mesma estória antes e nunca nada aconteceu, disse à vendedora. Mas ela estava disposta a impedir que seu patrão ganhasse nem que fosse um único tostão naquela ensolarada manhã. Sua receita já perdeu a validade, insistiu. Nunca ouvi aquilo. Não quis argumentar. Resolvi não perder tempo ali e fui para a outra ótica.

    A outra ótica funcionava mais adiante, numa casa onde outrora morou uma senhora que, em minha infância, despertou a minha imaginação inocente de criança. Eu morava numa rua próxima, na rua do Céu. Um nome tão poético para uma rua, mas que cometeram o desatino de, muitos anos depois, subtrair-lhe a dignidade ao rebatizá-la com o nome de um político. Sabe Deus se este merecia mesmo ir ou não para o céu! Pois bem, a dita senhora era uma mulher de pele branquinha, baixinha e gordinha feito uma bola de algodão. Nos meus primeiros anos de vida, eu nunca tinha visto ninguém assim tão gordo e redondo. Como podia ser. Fiquei fascinado. Todos os dias, pouco antes do almoço, ela passava pela esquina de minha rua em direção de sua casa. Eu corria até a esquina e sentava no batente de uma casa só para assistir aquela figura que parecia ter saído de um livro de estórias infantis passar compenetrada sem nem mesmo perceber que eu existia. Guardo aquela imagem em minha memória até hoje. Atendeu-me o próprio dono dá ótica. Um camarada simpático que usava na cabeça um chapeuzinho de pano que hoje anda muito na moda e que lhe conferia, juntamente com o brinco preso na orelha, ares de cantor de boleros.

    Contei-lhe o meu pequeno drama. Mostrei-lhe o par de óculos quebrado e que, depois de analisá-lo, ele se incumbiu de dar um remendo que o agüentaria tudo junto por alguns dias. Disse-me, fazendo um misterio, que tinha uma cola especial. Não quis saber detalhes, era especial e pronto. Quanto à receita velha, não haveria problemas. Nada como falar com o proprietário. Desde quando receita antiga tinha validade? O ideal seria uma nova em folha, mas estava esta estava fora de questão. Mostrei-lhe os óculos velhos para o qual queria as lentes. Ao recebê-lo em suas mãos, fez uma expressão admirada.

    - Mas que beleza de peça! – exclamou analisando-a.

    Comprei aquela beleza no Rio de Janeiro há mais de quinze anos, no tempo das vacas gordas. Eu procurava pelas lojas de Ipanema, numa ensolarada manhã de sábado, uma armação para por novas lentes. E como não encontrasse nenhuma do meu agrado, já estava me dando por vencido quando vi na vitrine de uma lojinha prestes a fechar, esta armação que se distinguia de todas as outras que encontrei, justamente pelo desenho incomum, que camuflava a feiúra do meu rosto, tornado-o mais palatável. É esta! Exclamei comigo mesmo. Parecia de encomenda. Era muito leve e delicada, imitando a aparência de casco de tartaruga. Entrei na loja e fechei negócio. Era a única peça da loja. Não era à toa que a achei tão especial, custava mais que uma geladeira duplex com viva-voz e conexão com internet em banda larga! O estojo, também, era algo de chamar a atenção. Bonito e sofisticado, parecia que era feito de couro de animal em extinção, tal a sua qualidade. Enfim, um bichinho daqueles iria fazer seu papel na natureza, servindo de estojo para meus novos par de óculos. Acredito até que o valor alto da armação era devido àquele estojo, e que, na verdade, eu estava pagando caro por ele e a armação vinha como brinde!

    - É uma Giorgio Armani – disse surpreso. - O design desta peça é muito bonito. É raro encontrar por aqui algo tão bonito.

    - Não diga. – reagi surpreso.

    - É feita de um material excelente. Vai durar a vida toda. A NASA o utiliza para fazer puxador de gaveta espacial. – acrescentou oculista cantor de boleros.

    - Não diga.

    - Ela está ressequida. Se o senhor me permitir, passarei um produto especial para hidratá-la. Deveria cuidar melhor dela, pois é uma relíquia.

    - Não diga. – respondi tentando imaginar se o fabricante daquele produto especial era o mesmo que fazia a cola.

    - Há muito tempo eu não via nada semelhante.

    - Não diga. E por quanto vai ficar as lentes?

    - Vai lhe custar exatamente o preço de um BigMac com fritas. – anunciou depois de consultar a tabela.

    Um dia depois, recebia um telefonema. Os óculos estavam prontos e me esperando. Larguei o que fazia. Calcei os meus chinelos e rumei correndo até a loja. A armação parecia nova em folha, como se tivesse saído de fábrica.

    - O senhor vai me prometer uma coisa, Sr. Cristiano. – falou o oculista colocando a peça cuidadosamente em minhas mãos     - Vai cuidar muito bem dela. Daqui a seis meses, volte aqui para eu hidratá-la novamente.

    - Pode ter certeza disso. – respondi satisfeito.

    Coloquei-o na cara e voltei para casa, orgulhoso de possuir sobre o nariz uma relíquia do Giorgio Armani, uma vez que sair por aí pelo Rio Vermelho de chinelos e vestindo um de seus famosos paletós, estava fora de questão. Eu já estava pronto para voltar ao meu trabalho e eliminar com estilo o personagem de minha estória.

Rio Vermelho, 18 de julho de 2009.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

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Valeu!


Praia de Santana

‘Summertime’ na Bahia.

Você deve ter percebido a tosca foto acima e deve estar se perguntando quem será aquela mulher com cara de maluca na praia do Rio Vermelho. Esta foto foi tirada uns quarenta anos antes de a câmera digital ter sido inventada, por isso a sua pobre qualidade. Ela é o inegável registro de uma incrível estória vivida pelo meu querido amigo Lula Martins, um grande artista plástico baiano, ex-morador aqui do Rio Vermelho, e que hoje vive na badalada costa da Ilha de Ibiza, no Mediterrâneo. Sujeito do sorriso fácil e franco, cuja aparência física lembra um monge tibetano. Depois de ler minha ultima crônica (Não saio daqui do Rio Vermelho), ele me escreveu saudosista, contando-me o seguinte inesquecível episódio de sua vida.

Era um escaldante verão de 1970. Vivíamos no auge da ditadura militar no Brasil, os Estados Unidos e Vietnã matavam uns aos outros numa sangrenta guerra, havia a guerra fria entre o Ocidente e a União Soviética, os pacifistas gritavam por 'Paz e Amor' e os hippies alegravam as cidades com suas roupas coloridas e propunham uma vida alternativa livre do capitalismo. Também se ouvia muita bossa nova e o rock 'n roll. Lula deveria ter uns vinte e poucos anos, sua casa ficava onde hoje é exatamente a quadra de futebol, ali na praia de Santana, e onde funcionava, também, o seu atelier. O lugar era um casarão antigo mal-tratado pelo tempo, um prédio pitoresco fincado quase na praia, de sorte que a maré ao subir, escorria a água do mar até o chão da sala, trazendo a natureza para dentro de casa. Dizendo assim, parece até poético, mas deveria ser um saco! Naquele memorável verão, Lula, estava organizando com amigos artistas e intelectuais uma viagem de Kombi até o Rio de Janeiro. Formavam um alegre grupo meio hippie. A idéia era recriar a atmosfera de uma versão baiana do Magic-Bus famoso ônibus psicodélico que fazia o incrível percurso de Amsterdã até a Nova Deli. O motivo era ir assistir ao show de uma famosa cantora americana que andava mexendo com a cabeça da juventude daquela época. Seria na Praça Ozório, onde acontece até hoje em dia a feira hippie, todos os domingos.

Pois num certo final de tarde, Lula estava visitando uma amiga, quando recebeu um telefonema pedindo que voltasse para sua casa imediatamente, pois, uma surpresa lhe aguardava. Ora, a casa de Lula funcionava como uma espécie de pouso para os amigos que vinham de tudo quanto era. As chaves até ficavam num esconderijo que todos tinham conhecimento, de modo que eles eram bem-vindos caso Lula não estivesse em casa para recepcioná-los. Ele logo imaginou que se tratava da chegada de um destes amigos, e rumou de volta para a sua casa para recebê-lo. Ao chegar, confirmou que tinha hospedes ao ver as bagagens amontoadas em sua pequena sala. E como eles não se encontravam em nenhum lugar dentro da casa, só poderiam estar na praia, que ficava exatamente nos fundos. Ao chegar na areia, Lula foi arrebatado pela surpresa de ver aquela mulher que mais parecia uma miragem brincando com as ondas, descalça na beira da praia como uma Venus pop surgindo da espuma. Era surreal demais para ser verdade. Agora volte àquela foto e olhe com mais atenção. Isto mesmo, era a Janis Joplin!

A maioria de vocês se não é fã, deve ter ouvido falar pelo menos uma única vez da Janis Joplin, esta rebelde musa do rock. Imagine o estado de admiração que ficou Lula em ter ali em seu quintal a presença de um ídolo musical. Lula ouvia seu ultimo álbum, "ChipTrill", quase que diariamente, apaixonado por aquela voz forte e vibrante. Ela estar ali diante dele era algo equivalente ao Papa bater em sua porta pedindo um copo de água gelada. Ou à visita do Harry Potter em pessoa. Lula conteve os ímpetos para não dar demonstrações de macaca de auditório, procurou agir com toda naturalidade, como se os Beatles tivessem acabado de sair de sua casa antes de ela chegar; eles também sabiam onde ficavam escondidas as chaves da porta. Como se celebridades daquele naipe entrassem e saíssem a toda hora de sua humilde casa. Enfim, mais uma vez ele teria de fazer sala para uma estrela mundial.

A Janis – olha eu aqui pegando uma intimidade – também agiu com igual naturalidade na presença de Lula e, em poucos minutos, eram como se os dois fossem amigos de longas datas. Ela estava vivendo uma aventura, uma entre muitas, com certeza. Viera ao Brasil acompanhada de um amigo texano. Passara o carnaval no Rio, onde fora impedida de desfilar numa escola de samba devido aos seus trajes hippies. Quase foi presa por fazer topless na praia de Copacabana, uma devassidão para a época. E foi expulsa do presunçoso Copacabana Palace por nadar nua na piscina! Depois de agitar o Rio, viajou de carona durante dois dias em cima de caminhão juntamente com o texano e com um amigo de um amigo surfista carioca que também era amigo de Lula, do tempo que eles pegavam ondas juntos no Arpoador, e que lhe dera o seu endereço para que ela batesse à sua porta pedindo abrigo. Ninguém reconheceu aquela moça que mais parecia uma entre tantas outras hippies estrangeiras que pegavam carona nas estradas.

Eram tempos difíceis para Janis. Ela estava no auge se sua carreira e tentava se livrar do vício que a levaria à morte oito meses mais tarde. Aquele passeio a Salvador a ajudou a ficar longe das drogas por algum tempo, mas não da birita, que era consumida já no café da manhã feito farinha. Nos inesquecíveis dias que se seguiram, Janis ficou cercada de pessoas amigas – Lula e sua turma de inseparáveis amigos - que lhe deram uma força naquele momento pelo qual ela estava passando. A turma hippie que se formara andava alegre para cima e para baixo da cidade do Salvador sem ser incomodada. Janis até achava graça de que ninguém a reconhecesse pois, ela já era muito famosa e assediada em suas andanças pelo mundo.

Mas o ponto alto de sua breve estada foi certa noite quando a turma foi parar numa espelunca na Ladeira do Carmo. Lugar freqüentado por estivadores, marinheiros e mulheres de vida fácil. A boate ficava num casarão antigo, cujas paredes eram caiadas com um tom rosado desbotado, descascadas aqui e ali, e manchadas de mofo pela umidade. O cheiro de fumaça de cigarro e perfume barato se misturavam ao da madeira velha do assoalho. A atmosfera era de festa e alegria. O vozerio dos homens falando alto e as gargalhadas espalhafatosas das mulheres eram abafadas pela música tocada por uma tosca banda de rock que ficava num canto, iluminada por uma meia luz vermelha. Lá pelas tantas, no auge da magia da bebida etílica barata consumida aos excessos, o guitarrista da banda do pretenso cabaré fez um sorriso maroto e deu a introdução da 'Sumertime'. Janis, que estava numa mesa do canto com seus novos amigos, foi tomada de um arrebatamento. Levantou-se e foi até o guitarrista para acertarem o tom da música. E o que se sucedeu depois, foi algo de mágico e inesquecível. Durante as horas que se seguiram, aquela musa do rock, parecia ter entrado em transe, tomada por algum espírito que a transformara numa mulher maravilhosa e eletrizante. Ela cantou uma musica após a outra, acompanhada daquele guitarrista que conhecia todo o seu repertório. Hoje em dia, ele deve contar, também, esta estória a seus netos, tocou com a musa do rock Janis Joplin. O bar inteiro parecia que estava enfeitiçado por aquela voz forte e vibrante cuja voz aguda rasgava o silêncio da noite janela afora. Parecia coisa do outro mundo. A turma das docas aplaudia de pé enfeitiçada por aquela estranha mulher estrangeira. Os amigos baianos de Jane estavam em estado de graça, hipnotizados. As meninas do puteiro de tia Celeste, na casa em frente, interromperam suas atividades profissionais entretendo a clientela, para dar uma chegadinha até a janela para ouvir melhor aquela voz estranha e bela que as vezes parecia um lamento. A bebida corria solta. Todos se divertiam como nunca. Dançavam e cantaram até o nascer do sol sobre a Baia de Todos os Santos.

No dia seguinte, Janis picou a sua mula para a vila hippie de Arembepe, cuja estória você já deve ter ouvido tantas vezes até que virou lenda. Mas certamente ignorava que antes, ela deu uma passadinha aqui no velho Rio Vermelho.

Rio Vermelho, 25 de junho de 2009.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Não saio daqui do Rio Vermelho.

Uma querida amiga nova-iorquina acha engraçado eu não sair do Rio Vermelho para quase nada. Ela tem razão. Quando vem me visitar, almoçamos em restaurantes, vamos a barzinhos ou dançar, fazemos compras, tudo sem ir longe aqui de casa. Outro dia, ela me perguntou curiosa se eu tenho outras roupas além de bermuda, camiseta e chinelos, pois nunca me viu de outro modo. Só me visto assim para andar aqui pelas vizinhanças, é mais confortável. É fato que raramente atravesso as fronteiras do meu bairro. Fácil de entender. Salvador cresceu bagunçada, ir de um lugar a outro é um verdadeiro martírio e perda de precioso tempo. Há fartura de congestionamentos para todos os lados e gostos, desde aqueles intermináveis entre uma sinaleira e outra, até os sem motivo algum. Eu não me incomodaria em viajar duas horas diárias para ir e voltar do trabalho, desde que uma hora do trajeto não fosse perdida empacado em engarrafamentos. Por isso, fiz do Rio Vermelho o meu microcosmo.

    Aqui, temos de tudo, você não pode nem imaginar. Desde gaúchos de bombachas perdidos pelas ruas, até pingüins vindos da Antártida! Perto daqui mora um sujeito estranho que creio ser um cidadão de outro planeta, mas minhas suspeitas ainda não se confirmaram. Temos uma pequena colônia italiana e outra 'turca' – para 'o cara' de Brasília, libaneses, sírios e turcos são tudo a mesma coisa. O Rio Vermelho está até na história do Brasil. Os primeiros portugueses que aqui chegaram foram saboreados pelos tupinambás na Mariquita, onde hoje só se comem acarajé. Alias, foi aqui que o Diogo Álvares Correia, o Caramuro, naufragou, antes de dar o lendário tiro de espingarda num pobre pássaro, para causar temor aos indígenas. Hoje em dia, próximo ao local fica o Mercado do Peixe, ponto de abastecimento de nossos bêbados e boêmios em fim de noite. Escritores famosos e artistas plásticos também fizeram daqui a sua moradia, dando a fama que o bairro tem. Rio Vermelho também é um lugar rico em estórias e personagens, mas desta vez não planejo falar sobre eles. Muitos moradores nasceram e se criaram aqui e daqui nunca saíram. E os que se aventuraram a partir, retornaram arrependidos. Outros moradores se casaram com alguém daqui mesmo do bairro, mais uma prova que aqui tem de tudo, inclusive bons partidos. Existe um magnetismo e atmosfera inexplicável neste lugar que só quem tem o privilégio de morar aqui é que percebe.

    Li recentemente numa revista que reduzir a rotina diária ao limite de poucas quadras de onde se mora é um novo estilo de vida, já praticado por pessoas em grandes centros urbanos mundo a fora. Então, eu não inventei nada de novo, e só estou seguindo uma tendência mundial, o que me livra do rotulo de ser um bairrista, e me transforma num ser cosmopolita. Quem mora em cidades grandes e desordenadas como Salvador, passa a maior parte da vida dentro de um transporte tentando chegar a algum lugar. Poderia estar fazendo algo mais útil ou agradável. É claro que a grande maioria não tem essa opção, mas para aqueles que têm o privilégio de trabalhar em casa feito eu, sobra mais tempo para fazer coisas interessantes, como escrever um blog, por exemplo, ou tomar uma cervejinha no final de tarde na casa de algum vizinho aposentado, ou falar mal do governo em um acalorado bate-papo em alguma esquina. O segredo de tudo isso é tentar simplificar a vida. Tenho uma amiga que não põe os pés em Shopping Center porque prefere prestigiar o comércio do bairro e fugir da aporrinhação em procurar por uma vaga de estacionamento. Cada um de nós tem seu motivo para resolver sua vida sem ir muito longe de casa, como você pode ver.

    É uma contradição vivermos numa época em que se vive por mais tempo que nossos antepassados, e desperdiçarmos este precioso tempo ganho a mais, em congestionamentos ou em filas de banco. Com tanta tecnologia e serviços às nossas ordens, computadores de todos os tamanhos, internet, celulares que fazem de quase tudo, entregas rápidas, novas formas e teorias de administração de negócios, para exemplificar algumas, aqueles tipos de trabalhos solitários executados sentados numa mesa de escritório de uma empresa ainda não podem ser transferidos para o quartinho dos fundos de nossa casa.

    Certa vez fui almoçar na casa de um milionário, destes que possuem banco, usinas de álcool, petroquímicas, construtoras, fazendas, governadores, prefeitos, senadores, presidentes da republica e até uma barraca de praia em Itapoan, só para exemplificar a grandeza do homem. O magnata comandava todos os seus negócios sem sair de casa, trajando como uniforme de trabalho bermuda, camisa de malha e chapéu panamá. Ele me contou que certa vez um ministro de estado foi até sua casa para uma reunião. Sua Excelência precisou enviar urgente um documento para Brasília, para cumprir uma ordem do Todo Poderoso. Foi até a copa e perguntou à cozinheira:

    - Minha senhora, onde fica o aparelho de fax?

    A velha pensou por um instante, desconfiada, antes de dizer alguma coisa.

    - Meu senhor, isto aqui é uma casa de família, não tem essas coisas não! – respondeu indignada.

    Como você pode ver, esta nova era já chegou para alguns afortunados, e para outros, nem tanto.

Rio Vermelho, 10 de junho de 2009.

    

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Mas, para quê mais tempo?

Outro dia encontrei um querido amigo e vizinho do bairro ao voltar do meu mergulho diário de meia hora na praia da Paciência. Este é um pequeno hábito que cultivo há meses. O mar estava calmo e límpido, parecia o mar azul do Caribe. Cancun fica aqui no Rio Vermelho! Meu amigo Bartolomeu estava sentado na balaustrada admirando os barcos bailando ao sabor das ondas da enseada de Santana, tendo ao fundo um imenso horizonte azul manchado de branco. Fazia isto brincando com o costumeiro palito de dente no canto da boca. Quando ele se encontra neste estado contemplativo, é porque está matutando alguma coisa. Seus pensamentos estavam envolvidos com uma questão filosófica sobre o tempo. Não é nenhuma novidade que a simples contemplação do mar da Bahia é capaz de inspirar seu expectador pensamentos filosóficos e profundos. Meu amigo fora acometido deste arrebatamento. Neste caso, poderia ser mais uma questão física também, pois o seu questionamento era sobre como as pessoas hoje em dia se preocupam em ganhar tempo. E para poupar tanto tempo, procuram fazer as coisas com mais rapidez. Estão sempre apressadas para ganhar mais tempo. Se lhes sobrassem realmente mais tempo, poderiam estar ali sentados ao seu lado admirando a beleza do mar, filosofou. Mas por que tanta pressa, ele se perguntava. Onde as pessoas pretendem chegar? E o que fazem com o tempo que lhes sobra? Se é que lhes sobra algum realmente. Ele é uma pessoa que viveu mais de setenta anos – e espero que viva por mais setenta! - e do alto de sua experiência e conhecimento, percebeu que em sua juventude ele já correu muito e no final chegou ao mesmo lugar onde está hoje. Correr tanto não lhe fez nenhuma diferença, pois não ficou mais jovem ou vai viver mais por causa disto, e nem ficou mais sábio do que os seus cabelos brancos sugerem. E nem mais rico ou pobre. As pessoas simplesmente correm por que o sistema lhes incutiu na cabeça que estão perdendo tempo de algum modo. Como se o tempo fosse algum bem mensurável e tê-los a mais fosse fazer alguma diferença. Então, correm sem sentido e para o vazio. Perdem o tempo correndo para ter mais tempo.

Esta sua preocupação me faz pensar em muitas coisas sem sentido que fazemos pela vida e nem nunca nos damos conta disso. Lembrei de um filme clássico. Um homem vagando pelo centro da cidade grande, perdido na noite, entrou casualmente num inferninho onde pessoas se amontoavam para ouvir uma banda de rock no palco adiante. Ao final da música, a platéia ovacionou o guitarrista que, ensandecido, tirou o instrumento do ombro e o destruiu batendo-o violentamente contra o piso. Apesar de quebrada em pedaços, cada parte da guitarra continuava presa à outra pelas cordas. Em seguida, jogou-a sobre o público delirante, que passou a se digladiar para possuir aqueles destroços como se fossem eles algum tipo de troféu. O tal homem que acabara de chegar ao lugar também entrara na briga, arrebatando os restos de guitarra das mãos de um fã e, em seguida, fugindo do local correndo pela rua com uma pequena multidão ao seu encalço querendo arrebatar-lhe o dito troféu. Depois de alguns quarteirões, as pessoas desistiram da perseguição. Ele se vê sozinho novamente. Mais adiante, ele passa por uma lata de lixo onde deposita os restos da guitarra. Ela não lhe servia mais de nada. Perdera sua importância e se tornara lixo. Esta busca incessante por ganhar tempo, como a disputa pelo troféu, se igualam pelo vazio de sentido. O barato está no processo para se consegui-lo, sem se pensar mais profundamente no seu significado e em sua utilidade. Evoluímos muito como seres humanos e, no final, nos tornamos seres autômatos.

Certa vez, eu ficara mais tarde no escritório para adiantar o serviço. O segurança do prédio, em vistoria pelo andar, me descobriu enfurnado em minha sala atrapalhado em meio á papelada.

- O que faz o senhor aqui ainda a esta hora? – perguntou surpreso.

- Estou pondo em dia o serviço atrasado. – respondi sem lhe dar muita confiança.

- O expediente já terminou. O senhor já está fazendo o trabalho de amanhã. Vá para casa – aconselhou o vigia.

Rio Vermelho, 10 de abril de 2009.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O meu caro amigo JR.

O meu amigo JR que é um das pessoas mais gente boa que conheço e também uma das mais mal humoradas. O personagem está sempre de cara enfezada e pouco ri. A menos que lhe contem uma boa piada. Neste caso, dá boas gargalhadas. Se eu não o conhecesse tanto e soubesse que o sujeito é uma boa pinta, eu diria que ele foi o inventor do mal humor. Também não é para menos. Quase tudo em sua vida deu errado.

    Quase ficou milionário ao fazer uma quina, não tivesse um prosaico furo de pneu lhe desviado do percurso até a lotérica. Depois do concerto feito numa borracharia próxima, resolveu não fazer o jogo naquele sábado. O pneu furado lhe deu uma sede danada apesar de ele não ter feito esforço algum. Preferiu tomar uma cerveja num boteco mais adiante. O jogo poderia ficar para a semana seguinte, nunca ganhava mesmo. Naquela noite deixou de ser o único ganhador do prêmio. Seus cinco números tinham sido premiados e nenhum apostador levara. Nunca mais entrou numa lotérica. Segundo ele, um raio não cai duas vezes num mesmo lugar.

    Suas tentativas de casar e ser feliz para sempre fracassaram feito plantação de milho em estiagem. A primeira noiva tinha nome de flor. Chamava-se Rosa. Foi também a primeira namorada. Depois do arrastado noivado de quase uma década, ele finalmente tomou coragem para fazer da moça uma mulher honesta. Pediu-lhe a mão em casamento. Pedido aceito na hora. Um apartamento de primeira foi logo pago a vista e decorado por profissional renomado do ramo, para abrigar o jovem futuro casal. Enxoval fino. Tudo nos trinques. Pois não é que a miserável o largou às vésperas do casório? Fugiu com o tal do decorador. Nunca mais JR voltou ao imóvel, de tanto desgostoso. Terminou vendendo-o ao primeiro comprador por mixaria, desde que não botasse mais os pés lá. Visitei o lugar dias antes da tragédia. Fui ajudá-lo a instalar o videocassete importado. Digo que o decorador ladrão de noivas fez um excelente serviço. E deve ter feito mesmo, do contrário, a noiva não fugiria com ele.

     Não muito tempo depois, ele foi no interior onde era o senhor de umas terras. E lá conheceu Maria Rita, uma boa moça. Menina simples, mas de família digna. Namorou na porta quase um ano. Nunca saia com a moça se não fosse alguém de junto para segurar a vela. Às vésperas do Natal, pediu-lhe em casamento. Em maio deu-se o matrimônio como mandava o figurino e, em agosto, o divórcio. Até hoje o motivo do desenlace permanece um mistério. Ele não toca no assunto. Só há conjecturas. Uma delas é que o casamento nunca foi de fato consumado. Motivo suficiente para JR perder a paciência e devolver a moça ao pai do jeito que veio de fábrica. Resolveu nunca mais casar. Não merecia tanto desamor. Passou a freqüentar os melhores puteiros da cidade, com o intuito de sublimar suas decepções e sofrimentos amorosos. Ótimo remédio.

    JR é um homem fino e de bom gosto. Já tem quase setenta anos. Desde adolescente que tinha gosto pelos clássicos. Sua discoteca possui mais de cinco mil discos. E, para desfrutá-los, comprou equipamento de ultima geração feito sob encomenda na gelada Finlândia. Ele adquirira algo semelhante a um Rolls Royce da eletrônica. Uma maravilha. Cheio de frescuras. Por exemplo, se o disco não fosse de boa qualidade, ele o recusava. Em suas horas de lazer, meu amigo solteirão convicto, sentava-se na varanda de sua casa tomando excelente vinho francês e ouvindo sua música clássica. Parecia até que a orquestra estava em seu jardim. Um dia a geringonça parecia não funcionar bem. O som estava baixo. O técnico veio e não descobriu nada. JR foi ao médico e foi informado que estava ficando surdo. Teria de usar um parelho e ouvir a música com volume mais alto. Ele que já andava de mau humor, ficou com mais mau humor ainda. Mas o pior ainda estava por vir.

    Certa manhã, quando despertou de um sono profundo, JR olhou pela janela e verificou que o dia ainda estava escuro. Virou-se para o outro lado e voltou a dormir. Mas alguma coisa estava errada. Seu relógio biológico lhe dizia que já estava na hora de levantar, tomar um banho e ir para o batente. Algo de ruim acontecera. Constatou, estarrecido, que perdera a visão em meio a uma noite tranqüila de sono. Foi no médico. A perda parcial da visão foi diagnosticada com um nome complicado, mas nem por isso curável. Umas gotinhas de colírios e uns comprimidos controlariam o estrago. Ele só enxergaria imagens embaçadas e distorcidas. Meu coitado amigo JR ficou amargurado. Quase surdo e cego, não poderia mais trabalhar. Foi tomado de um tremendo mau humor.

    JR ganhou um relógio de ouro pelos anos de serviço e foi mandado para casa mais cedo. Passava os dias ouvindo os clássicos e como não podia ler ou ver TV, adquiriu o curioso hábito de ouvir a TV Senado e TV Câmara. Este novo hábito só agravou o seu mau humor. Também não era para menos, aquilo lá é um esgoto a céu aberto. Acho que mesmo que ele não tivesse perdido a visão e a audição, tomar conhecimento do que se passa pelos intestinos do Congresso Nacional já é o suficiente para deixar qualquer um infeliz. Acompanhava as decisões da Casa, não digo que diariamente porque senadores e deputados não são afeitos ao trabalho diário, mas assistia, ou melhor, ouvia, sempre que tinha sessão. Aprendeu o nome da corja inteira apenas reconhecendo-os pela voz. Mesmo aqueles que se salvavam não eram grande coisa como ser humano. Mas enfim, se eles estão lá, é porque é o melhor que merecemos. Todos os discursos, decisões e discussões eram acompanhados com atenção, como se tudo aquilo tivesse um feito imediato sobre ele. Ele sempre estava aborrecido com esta ou aquela medida do congresso. E sem falar nas más notícias políticas e econômicas que ouvia nos noticiários. Todo este excesso de estar bem informado lhe fazia mais mal que bem, e devo dizer que o mesmo efeito causaria a qualquer pessoa descente. Outra coisa, JR é um dos caras mais honestos e éticos que conheço. Caso fosse eleito para o senado, por exemplo, teria o mandato cassado, devido a estes seus 'defeitos'. Sempre que dou uma passadinha para vê-lo, ele não fala de outra coisa que não seja dos desmandos do país. Está sempre aborrecido com isso. Fala inflamado das roubalheiras políticas. Mas, seu mau humor não afeta a amizade que tenho por ele. Há males muito maiores na alma de um homem, e certamente o mau humor não é um deles.

    Um dia, sua irmã mais nova veio do interior lhe fazer companhia. Amélia era uma solitária e eterna chorosa viúva sem filhos. Não tinha o mau humor de JR, mas gostava de se lamuriar e falava pelos cotovelos. Apenas falava por falar, não sabia manter a boca calada. Talvez porque antes de ir morar com JR, ela vivia também sozinha, cultivara o hábito de falar à medida que o pensamento lhe brotava à cabeça. Não havia um dia que não se queixasse de alguma coisa, ao contrário de JR que, apesar de seu mau humor e de seus revezes, não se queixava de nada além das roubalheiras dos políticos e do governo. JR que já estava acostumado a viver sozinho e sem ter com quem conversar diariamente, em pouco tempo, se arrependeu do convite, mas não disse nada. Afinal ela era prestativa e trabalhadora, e cuidava da casa de um jeito que ele não podia mais fazer. Ela apenas falava pelos cotovelos. Por isso ele quase nunca puxava assunto, ou dizia alguma coisa que lhe incentivasse a tagarelice. E, quando acidentalmente isto acontecia, ele simplesmente desligava seu aparelho auditivo e se isolava do mundo. Eram dois solitários sob mesmo teto. Amélia já se acostumara com o jeito sisudo do irmão e com o seu mau humor. Creditava a isso à sua solteirice e as perdas da audição e da visão.

    Certa tarde de calor, JR estava desfrutando da brisa que soprava em sua varanda, tomando uma limada, quando a irmã se aproximou com seus habituais queixumes. Ela estava se sentindo solitária aquela tarde e queria conversar. JR não estava afim de papo, para variar, e foi logo avisando.

    - Não estou para conversas. Hoje estou de mau humor.

    - E quando é, meu irmão, que você não está de mau humor? – perguntou irônica.

    - Hoje eu estou pior! – disse enfezado.


 

Rio Vermelho, 5 de abril de 2009

    

segunda-feira, 30 de março de 2009

Diet, light ou orgânico?

Nunca vi tanta gente preocupada com o que enfia na boca. Refiro-me a alimentos, é claro. Querem estar saudáveis. Viver com saúde é fato inquestionável. Não dá para imaginar uma vida feliz ao contrário. Vivemos em épocas em que todos desejam esticar o próprio prazo de validade e com mais saúde. Ou queremos viver com mais saúde e por isso viveremos mais um pouco? Difícil saber o que realmente importa. Viver mais ou ter uma vida saudável. Mas a que custo?

    Tenho amigos que levam isto tão a sério que terminam exagerado na medida. Não comem esta ou aquela comida na mesma refeição. Não faz bem à saúde, dizem, embora sejam alimentos saudáveis. Nunca ouvi falar de ninguém que tenha morrido por misturar comidas no prato. Agem como se fossem membros de alguma nova religião. Não comem nada que não seja orgânico. Como era possível o mundo antes dos orgânicos? A palavra transgênico soa-lhes como uma blasfêmia, um verdadeiro pecado. Já baniram há muito tempo qualquer tipo de carne do cardápio. E como suas escolhas terminam sendo limitadas, passam a maior parte do tempo imaginando o que vão comer e como consegui-lo, uma vez que o seu saudável alimento não se encontra em qualquer mercado ali da esquina. Para obtê-lo, exige-se certo esforço extra. Ser saudável, dá trabalho, acreditem. Não comem isso, não comem aquilo. Com tantas restrições, impossível convidá-los para comer fora. Terminam cozinhando suas próprias refeições porque só eles é que sabem como aproveitar melhor o alimento. Hum... ensopadinho de abobora com chuchu, sem sal, acompanhado de arroz integral orgânico e caldo de repolho, uma delicia! Esta gororoba deve ser até saudável mesmo, mas duvido que seja esta coca-cola toda. Embora se alimentem bem, segundo seus conceitos, eles estão sempre se queixando de fome e de cansaços misteriosos. Mal humor. São magros como nordestinos fugindo da seca no sertão. E eu que ouse lhes dizer que tudo isso é o efeito da porra da dieta maluca em que se meteram. Já ouvi caso de um sujeito que não comia nada, queria se alimentar apenas da luz solar. Quase virou vegetal! Lembrei de um casal de amigos do papai que fazia macrobiótica. Pareciam duas almas penadas. Quando vinham almoçar em nossa casa de praia, quase todo fim de semana, faziam enormes pratos de feijoada com todas as carnes e ainda lambiam os beiços. Mas quanta fome!

    Existem aqueles que simplesmente não pensam no assunto. Não estão nem ai. Não se importam com o que comem. Pedem no Mcdonalds o tradicional sanduíche bombando em calorias e colesterol que faz coronárias tremerem de pavor. Em seguida, ouvem da balconista depois de pedirem o refrigerante. Diet ou normal? Como se isso fizesse alguma diferença! Fazem, então, as pazes com a consciência ao pedirem uma diet, pois afinal, a saúde vem em primeiro lugar! Cada um tem a sua própria dieta saudável e uma boa explicação para ela. Neste caso, o açúcar dos refrigerantes é que é o grande veneno.

    A indústria alimentícia aproveitou essa onda – minha intuição diz que foi ela quem a inventou – e encheu as prateleiras dos mercados com produtos industrializados com pinta de saudáveis, acondicionados em embalagens ecologicamente corretas. Olha como eles são preocupados com a saúde do planeta, até a embalagem é feita de material reciclado. Difícil saber qual a diferença. Diet, light ou orgânico. Todos garantem fazer bem à saúde, evitam que pessoas engordem e prometem vida longa. Ao contrário de elas simplesmente fecharem a boca, basta comer estas maravilhas.

    A verdade é que nunca saberemos quanto tempo a mais viveremos depois de ingerir tanta saúde, até porque ninguém sabe o dia que vai prestar contas com o criador. Ou se todo aquele esforço de só comer alimentos saudáveis e negação aos prazeres da carne terá realmente valido a pena. Cada um de nós tem uma conformação orgânica diferente. Uns são altos, outros são baixos. Alguns são magros, mesmo que comam um boi na hora do lanche. Outros engordam comendo apenas uma ervilha. Meu vizinho octogenário fuma feito uma chaminé desde os catorze, está vendendo saúde. Outro mais jovem, amigo da família, foi levado pelo câncer nos pulmões sem nunca ter posto um único cigarro na boca. Fico imaginando até onde tanto cuidado realmente faz alguma diferença. Não sugiro que as pessoas saiam por ai fazendo de tudo, mesmo sabendo que um dia terão de morrer mesmo. Aproveitem que a vida é curta, mesmo só comendo diets, lights e orgânicos!

    Nunca tive gripe ou outro tipo de doença. Sou saudável, mesmo comendo de tudo. Não exagero em nada. Não sei quantos anos viverei, mas espero não quebrar nenhum recorde. Detesto comidas diets ou lights, e não sei o gosto de um alimento orgânico. Dizem que é gostoso, não duvido. Uma alface orgânica tem o sabor de alface mesmo, já me prometeram. O tomate, então, nem se fala. Mas como eu como tudo temperado, jamais saberei a diferença. Quando estou em lugar que me oferecem algo light ou diet, sempre recuso polidamente. Mas em seguida, me explico. Minha filha, não como nada muito saudável ou que prometa me fazer viver mais tempo. Tudo em excesso faz mal, mesmo comidas saudáveis, sabia? Tenho medo de ficar saudável demais, ter um piripaque e morrer antes da hora. De qualquer forma, espero morrer doente, e não saudável.

    Este assunto tem visitado meus pensamentos ultimamente. Mas não imaginem que estou querendo seguir algum tipo de dieta. Nada disso. Apenas penso no assunto, como penso em outras coisas, como em roubalheiras em Brasília, por exemplo. Outro dia me vi na seguinte situação bizarra. Fui até a loja comprar veneno para rato. Têm aparecido uns enormes e bem saudáveis aqui por casa. Eu gosto de animais e jamais faria mal a eles, mesmo no caso de ratos. Preocupado com o bem estar dos roedores, pedi um veneno orgânico, pois minha intenção era de exterminá-los, mas sem fazer mal à saúde deles!

Rio Vermelho, 26 de março de 2009.

quarta-feira, 18 de março de 2009

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Estórias para quem tem pouco tempo.

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Valeu!

Parabéns pra você!

Não sou fã de festa de aniversário de adulto. Não tem nem 'brigadeiro' e nem 'olho de sogra'! Considero-a uma das comemorações mais chatas, seguida da festa de Natal, é claro. Nunca comemorei o meu, embora não seja contra quem o faça. Até aplaudo a iniciativa! Festa de aniversário é uma daquelas tradições familiares cultivadas desde o berço e que se estende pela a idade adulta como parte de nossa formação. Não nos habituamos a cultivar tal costume aqui em nossa casa, talvez por uma questão de calendário. É que o meu aniversário - e o de outros três dos meus seis irmãos - cai no auge das férias de verão, quando os amigos estão longe. Não tinha quem convidar, portanto. Nem mesmo aqueles parentes mais próximos, pois somos imigrantes do Ceará. Os parentes mais próximos moravam longe! Por isto, cresci aleijado, sem nunca fazer festinha no dia do meu aniversário. Para falar a verdade, meus pais nunca foram apegados a tradições e, por isso, os sete filhos nunca tiveram festas de aniversários. Em resumo, não somos pessoas comemorativas.

    O aniversariante que é animado por fazer uma festinha, nunca deixa de reunir os amigos e a parentada para comer um bolinho. Deseja compartilhar o momento por mais um ano de vida com as pessoas queridas. Termina se empolgando e convidando todo mundo. E ai é que começa a chatice.

    Uma amiga que conhecera há pouco tempo, teve a delicadeza de me incluir em sua lista de convidados. Ligou-me pessoalmente e fez o solene convite. Minha presença era indispensável. Não tive como escapar. Um convite por telefone logo assim a queima roupa. Se viesse pelo correio, culparia o carteiro pela minha ausência, entregou o convite depois da data. Se fosse via e-mail, a culpa sobraria para o provedor. Mas um telefonema pessoal fica meio difícil de se esquivar. Primeiro, ela foi cautelosa, perguntando o que eu faria no sábado. Respondi que nada. Em seguida, veio o convite. Seria um almoço. E como eu teria mesmo de almoçar naquele dia, apareci na hora marcada.

    Tenho o mal habito de cumprir horários. Cheguei à casa da aniversariante em ponto, como para comparecer à consulta para exame de próstata. Era o único convidado. Casa ampla e confortável. Fiquei no jardim bebendo uma cervejinha oferecida pelo garçom Moacir e tomando uma fresquinha debaixo de um jambeiro, enquanto a anfitriã dava os últimos retoques na maquiagem. Hora e meia mais tarde, apareceram os outros convivas e depois mais outros até que chegou todo mundo. Não era muita gente. Um bando de desconhecidos. Isto não foi nenhuma surpresa para mim, pois o chato da festa de aniversário é justamente esta possibilidade de você não conhecer ninguém além do aniversariante. Mas não me senti desconfortável por isso. Embora eu não aparente, sou uma pessoa bastante sociável. Sou capaz de puxar conversa até com defunto em beira de cova, para me entrosar no ambiente.

     Aproximei-me de um casal de amigos da aniversariante. Duas figuras apáticas. Eles também mal a conheciam. Coincidência demais, né? Pensei em me queixar do tempo. Sempre funciona. Mas o tempo estava muito bonito e não renderia muito que falar. Lembrei-me do último escândalo do governo. Um ótimo assunto. Só se falava disso ultimamente. Mas os dois não sabiam de nada, tal qual o nosso presidente. Como eles pareciam que não tinham nem assunto para conversar entre si, desisti de perder o meu tempo com eles. Dei uma desculpa e me afastei. Sentei-me ao lado da única convidada bonita e desacompanhada. Tinha a expressão de uma galinha que ia botar um ovo e depois mudou de idéia. Mal comecei a puxar uma conversinha e percebi que alguém já tinha chegado antes de mim e lhe posto uma barriga de seis meses. Seria um menino. Era uma produção independente, mas ela já tinha mudado de idéia. Estava à procura de um pai para o filho a caminho de juntar-se a nós neste mundo. Fiquei mudo e, por falta de outro assunto, fui buscar um copo de refrigerante para ela e nunca mais voltei. Mas enviei um garçom para servi-la, claro. Ela, certamente, sabia como se livrar de chatos como eu.

    Conversei com outro. Estava meio abandonado num canto encostado junto a uma janela que dava para o jardim. Conversar com as plantas também uma boa idéia. Era um sujeito meio calado. Só conhecera a aniversariante há uma semana. Hum...Tomava um uísque e se queixava de dores na coluna. Adoro conversar sobre dores nas costas. Disso eu entendo e muito, pois padeço deste mal. Seu tratamento resumia-se a tomar analgésicos e pensar em algum dia talvez ir ao medico. Como a sua experiência não era tão rica no assunto como a minha, falei mais que ouvi. Dei os meus conselhos de expert.

    Finalmente a comida foi servida para alegria geral. Todos os convidados abriram um largo sorriso quando a mãe da aniversariante anunciou em voz alta. Uma paella supimpa. Fiz meu pratinho e fui sentar numa mesa onde haviam três outros convidados. Uma tia, a sobrinha e o namorado. Cheguei logo no início da conversa. O assunto era uma renite. Sei muito pouco desta moléstia, mas achei interessante ouvir a sobrinha falar sobre sua mazela. Ela era muito linda e fiquei encantado com a descrição detalhada de todo o seu sofrimento. A tia era uma senhora agradável e falastrona também. O rapaz só concordava com tudo, daria um perfeito marido, pensei. De renite, pulamos para reformas em casa. Tinha sido a poeira de uma construção em sua residência a causadora do nosso assunto à mesa. Resolvi ficar ali com aquele grupo ouvindo as duas tagarelas e dando um pitaco no assunto de vez em quando. Éramos a mesa mais animada da festa, vejam só.

    Depois do almoço seguiu-se o grande momento. Cantar os parabéns e apagar as velinhas. Minha amiga não economizou em velinhas. Cantamos todos juntos batendo efusivas palmas. Eu estava logo na frente puxando o coro a plenos pulmões de entusiasmo. Cantava que nem um Pavarotti 'parabéns pra você! parabéns pra você!'. Comi um pedaço do bolo e fui embora logo em seguida. Missão cumprida. Amigos, não é por achar festas de aniversário um saco que não deixarei de marcar presença na sua próxima primavera!

Rio Vermelho, 13 de março de 2009.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A falta que ela faz.

Esta semana li que burocratas, cientistas e ambientalistas do mundo inteiro vão se reunir na Turquia para discutirem o problema da falta de água no planeta Terra. A coisa ta ficando séria, né? Isto mesmo, daqui a alguns anos, vai faltar água pra quem tiver sede. Como todo mundo, cuidarei de fazer meu estoque aqui em casa. Encherei com água garrafas, panelas, latinhas, sacos, sacolas plásticas, enfim qualquer coisa onde ela possa ser armazenada. Não apenas para o nosso consumo, venderei a dita cuja no mercado negro, na Sete Portas. Ao ler esta dramática notícia, fechei os olhos e tentei imaginar um cenário de como seria o mundo sem este líquido insípido e incolor. Não vi nada. Talvez porque não haverá nada para se ver além de pedras e poeira. A terra será um grande nada. Nem eu estarei por aqui para tirar uma foto e postá-la em meu blog. Na hipótese de haver um único sobrevivente, este poderá atravessar o Atlântico a pé. Provavelmente, ele morrerá de sede antes de chegar ao outro lado.

    Tudo isto é um exagero, é claro. Mas a nação que tiver água sobrando, será mais rica que aquelas que tiverem petróleo em seu subsolo. Isto me fez lembrar de um filme que assisti faz pouco tempo. Um engenheiro americano foi trabalhar na Arábia Saudita, e num passeio de carro por uma estrada através do deserto, encostou num posto para abastecer. Talvez pela falta de fregueses naquela região inóspita, o frentista ocupava seu tempo lavando o pátio do posto com a intenção de abaixar a poeira. Usava uma mangueira. Para a surpresa e terror do americano, o líquido utilizado era a gasolina! O mesmo saudita talvez tivesse reação semelhante, caso presenciasse cena inversa aqui no Brasil. Nosso frentista estaria usando água, é claro. Água já vale mais que petróleo naquela parte longínqua do mundo.

    Nunca demos a devida importância a esta coisa de economizar água, a não ser para não sermos pegos de surpresa com uma conta dolorosa da EMBASA, no final do mês. Lembrei de um vizinho, sempre os meus vizinhos. Um simpático senhor aposentado que gostava de aguar as plantas do jardim e lavar os quatro automóveis da família diariamente. Como se isso não bastasse, ele molhava sua calçada e o pedaço de rua em frente à sua casa demoradamente. Ficava ali na calçada, de pé, segurando a mangueira e se deliciando com o jato de água que saia abundante. Adorava ouvir o barulho da água batendo das pedras da calçada e sobre o paralelepípedo da rua e o cheiro de terra molhada. Saca como é, se aliviar no mato demoradamente enquanto assobia, coça a cabeça e admira a paisagem? Era assim mesmo. Sua conta de água era amarga, apesar de água ser uma coisa barata aqui por estas bandas. Felizmente foi morar num prédio de apartamento chique e o mundo se viu livre um predador aquático.

    Água é um troço tão simples e elementar, mas que é impossível passarmos um dia sem ela. Não há coisa mais gostosa do que tomar um copo de água gelada depois de comer um doce de leite. Ou tomar um banho frio e demorado num dia de calor. Sem água, não dá pra ficar.

    Eu sou um cara que gosta de inventar coisas. Os japoneses já roubaram muitas das minhas idéias, acredite. Eu tenho um invento que desta vez vou patentear, e vou ficar mais rico que xeique árabe. Água em pó. É simples. Ela será vendida em pacotinhos. Quando o cidadão tiver sede, é só despejar o conteúdo num copo e adicionar água e mexer. Tá pronta!

    Estou falando aqui de água apenas para o consumo doméstico e como isso mudará nosso comportamento. É claro que a industria e a lavoura vão penar também. Lembrei de um amigo que ao se formar na faculdade, comprou uma motocicleta e resolveu viajar pelo Nordeste. Seu espírito era jovem e idealista, queria conhecer a fundo o nosso país e suas mazelas. O Lula teve uma idéia semelhante antes de finalmente conseguir ser presidente, mas seu diploma é o de esperteza. Pois bem, Roberto saiu sem lenço e nem documento montado em sua Honda pelos grotões do sertão. Certa noite, apeou numa pequena fazenda e foi acolhido de forma hospitaleira pelo dono da casa e sua patroa. Era um lugar miserável de quente e seco. Os donos da casa eram meio calados. Provavelmente economizavam nas palavras para não sentirem sede. Poupavam a água de beber. Mas eram muito simpáticos. Sorriam sempre. Roberto puxou conversa durante o jantar que foi um guisado de teiú com arroz de pequi, iguaria muito apreciada no sertão em época das vacas magras. Não chovia há oito meses. Dona Francisca já tinha até feito uma promessa de acender 5 velas de um metro aos pés da estátua do padre Cícero em Juazeiro, caso chovesse em um mês. Seu Amâncio não tinha como trabalhar em sua roça, e por isso arranjara um emprego inusitado. Era jardineiro de uma mansão em pleno sertão! Além de aguar as plantas e o gramado diariamente, cuidava, também, da piscina da propriedade que pertencia a um deputado federal importante. Tinha, também, de lavar os carros da família todo santo dia. A seca só não atinge gente importante, disse ele amargurado. A vantagem de trabalhar lá naquela casa é que ele podia beber água à vontade todos os dias e até tomar banho, se quisesse.

    Ao final da janta, Roberto agradeceu muito aos anfitriões e recolheu-se em seu quarto, pois como não havia luz elétrica na casa, todos iam para cama cedo. A casa era de paredes de adobe e caiada. Não havia forro e as paredes não iam até o teto. Deitado em seu catre, Roberto pode ouvir o seguinte diálogo vindo do quarto ao lado. Algo que ilustra bem o que é viver em tempos de pouca água.

    - Bem? – chamou dona Francisca.

    - Eim?

    - Tu vai me querê hoje?

    - Na... – grunhiu seu Amâncio.

    - Ah! Então só vou lavar os pé!


 

Rio Vermelho, 4 de março de 2009.