sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O lado high-tech da Chapada Diamantina

A Chapada é um desses paraísos ecológicos onde a natureza resiste intrépida aos avanços do homem, e o seu verde, a abundância de água e a sua flora maravilham os olhos até daqueles menos entusiastas pelas coisas da natureza. Tudo lá cheira a saudável e promissor, e é o lugar onde o homem urbano se comunga com suas origens e o faz se sentir um grão de areia no universo diante de tanta beleza natural. E, extrapolando os meus limites da racionalidade, se fosse eu um homem de fé, até arriscaria o palpite de que há o dedo de Alguém por detrás de tudo isso, que só o sobrenatural explicaria tanta exuberância.

No entanto, a pequena cidade de Lençóis, onde o homem pôs o dedo, e onde fiquei instalado, também padece daquele mal que eu pensava ser típico apenas de Salvador, onde impera a falta de bons modos e das boas práticas para o convívio social harmonioso. Os marmanjos nativos também andam de um lado para o outro levando na mão um aparelhinho eletrônico que, embora feito na China, parece só saber tocar pagode, e justamente o de pior qualidade, considerando-se que deve haver alguns exemplos primorosos desta tal forma de expressão musical erudita.

As pequenas geringonças tocam no mais alto volume possível, fazendo suas caixas bufarem de tanto esforço ao reproduzirem um barulho estridente e rouco de tanto gritar, como se estivessem a ponto de irem pelos ares, porque me parece que o uso do fone de ouvido foi definitivamente abolido, por ser considerado pelos seus usuários como uma prática antissocial. A ordem do momento desta moçada é compartilhar o seu gosto musical, goste você ou não de pagode. Não tenho nada contra o pagode ou qualquer outro estilo musical, desde que estes, ao serem tocados em espaços de uso comum e que não sejam em casas de espetáculos, não afetem a liberdade do outro e nem se tornem num caso de poluição sonora. Assim como os fumantes sofrem todo tipo de restrições, aos amantes de música deveria ser obrigado o uso dos fones de ouvido até debaixo do chuveiro.

Eu estava sentado na balaustrada em frente à rodoviária esperando o ônibus noturno que me traria de volta, a contragosto, para Salvador, quando passou um moleque miúdo de cerca de dez anos, de pele quase transparente e cabelos claros com as pontas tingidas de lilás e rosa tal qual eu tenho visto ultimamente, vestindo uma camisa do seu time de fé duas vezes maior que o seu tamanho e calças com os fundos na altura do tornozelo, uma figurinha, segurava a tal geringonça espalhafatosa colada ao ouvido. Ele caminhava devagar com a expressão compenetrada na música e vez por outra dava uma breve parada como se o ato de andar e ouvir ao mesmo tempo dificultasse a compreensão da letra. Tocava tão alto que eu cheguei a imaginar que o pagode fizera um estrago em sua audição. Gritei para ele com aquele meu humor sardônico que já me custou amigos porque eu perco a amizade, mas não uma boa piada “Aumenta o volume que o pessoal lá na praça também quer ouvir!” Ao que ele me lançou um olhar surpreso e depois de refletir um instante, me fez um sinal de agradecimento com o polegar direito e aumentou ainda mais o volume da coisa!

Rio Vermelho, 26 janeiro de 2012.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A Chapada é inesquecível, mas o nome de uma certa moradora, nem tanto.

Acabo de voltar da Chapada onde afoguei o calor miserável do dia em mergulhos nos caldeirões do Serrano cujas águas ferruginosas fazem ranger os dentes sob o sol a pino em pleno verão, uma delícia. E respirei natureza, muita natureza bebendo dela o seu sumo que me inspirou a elaborar o final de meu livro que “salvei” em minha cachola, só precisando convertê-lo em bytes no computador. E à noite dormi com o balanço da rede armada na varanda sentindo o sereno da floresta sob o brilho das estrelas que lá parecem brilhar com mais vida e generosidade. Trouxe de suvenir na bagagem apenas uma intermitente tosse de cachorro e uma infecção intestinal de me dar calafrios, e que ainda me farão, por alguns dias, recordar com saudades daquela semana de perfeita comunhão com a natureza.

Na Chapada, o ritmo de vida obedece às suas próprias convenções, que é a de não haver pressa alguma e aproveitar o momento. Por exemplo, no restaurante o garçom demora a aparecer para pegar o pedido, que demora a chegar à mesa e ao final come-se lentamente. E foi na hora do almoço que desci até a cidade à procura de um restaurante que oferecesse um tempero diferente. Subia a Rua das Pedras quando encontrei uma querida amiga de muitos anos que sempre me convida para ir a sua casa, no final da tarde, tomar um café com bolo de aipim que ela fará especialmente para mim, mas que ao chegar lá, o maridão já o devorou até as últimas migalhas. Mas o que me leva à sua casa mesmo é a prosa agradável, contento-me com a xícara do café colhido em seu quintal e com as fofocas e “causos” da cidade. Deu-me um abraço afetuoso e eu perguntei pela família. Enquanto nos queixávamos do calor cujo assunto é o favorito nas conversas de rua, superando as seguidas prisões do prefeito da cidade por improbidade administrativa, minha atenção foi distraída pela passagem de uma bela moça de corpo forte e saudável, dessas que se dizem que podem dar muitos filhos, usava um short de chita apertado que denunciava a redondeza das nadegas apoiada em dois pares de pernas grossas formidáveis. A moça devia fazer muitas trilhas pelo mato, pois tudo nela era músculo e saúde sem, no entanto, aparentar ser algum tipo de atleta. O cabelo preto era crespo e cheio amarrado para trás num coque. Minha amiga percebeu minha curiosidade e foi logo informando “ela está solteira há três meses”, ao que eu lhe perguntei “E cuma é o nome dela?” E foi neste momento que precisei pedir-lhe que me repetisse mais uma vez o nome da criatura, pois eu nunca ouvira nada semelhante antes nem aqui e nem em outro mundo.

Na Chapada encontra-se de todos os estilos de mulheres, desde a perua à bicho-grilo. E parece que o local também tem a propriedade de atrair pessoas cujos nomes são exóticos como se fosse próprio daquele fim-de-mundo acolher pessoas de nomes esdrúxulos. São combinações de nomes de astros com elementos da natureza ou nomes de alguma divindade indiana ou um vocabulário indígena. A alcunha daquela bela moça não se parecia com nada que eu já ouvira antes e cuja sonoridade tanto lembrava nome de personagem de revistinha em quadrinhos japonesa como nome de pomada milagrosa para combater fungo entre os dedos. Eu desisti de lhe pedir que repetisse mais uma vez o nome, pois a minha capacidade de memorizá-lo parecia limitada.

Minha amiga chamou pela moça que deu meia volta e veio sorridente ao nosso encontro e se apresentou com aquele nome incomum que não consigo fixar na memória. E logo fiquei sabendo que ela era a feliz proprietária de um restaurante ali perto, mas que naquele dia da semana, que não era feriado, não iria abrir as portas para o almoço porque ela achava que andava trabalhando muito ultimamente e isto estava afetando-lhe a sua qualidade de vida pois o que mais ela almejava era não ser escrava do trabalho e que felizmente a cidade dispunha de outros restaurante de modo que ninguém passaria fome por sua causa. Eu, por meu turno, pensei lá com os meus botões se a sua comida seria tão apetitosa quanto a sua pessoa. De qualquer forma, eu continuava sem lembrar seu nome e achei isto estranho de minha parte, pois tenho grande facilidade de lembrar nome de mulher bonita, mesmo aquelas que eu nunca tenha sido apresentado.

Terminei indo comer no mesmo lugar de sempre que é onde metade da população de Lençóis frequenta, inclusive a delegada e os forasteiros como eu, que é o Bode Grill, onde o cardápio oferece iguarias de dar água na boca como o ensopado de casca de jaca e a salada de palma, que é um tipo cacto da região muito usado para engorda do gado. No entanto, fui outras vezes até a porta do restaurante daquela bonita moça cujo nome me falha a lembrança e me pareceu que não havia um acordo entre o seu horário de funcionamento e a minha fome pois, sempre que eu aparecia ou este ainda não tinha aberto ou já tinha fechado, mas foi graças a isto que conheci outros estabelecimento de Lençóis os quais eu jamais havia posto os pés antes e a isto os concorrentes lhe são muito gratos.

Mas o mais incrível desta estória toda é que até a hora de fechar esta crônica eu não consiga me recordar o nome bizarro daquela moça, mas com certeza ela não se chamava Rumpelstiltskin.

Rio Vermelho, 17 de janeiro de 2012.

domingo, 8 de janeiro de 2012

As coisas simples da vida II ou minha coleção de geringonças engenhosas.

Como em todo verão, resolvi beber mais líquido na intenção de manter meu corpo bem hidratado para enfrentar as rigorosas temperaturas que tanto nos castigam, fazendo-nos derreter feito picolé. E para não ficar só na cerveja – água também serve para hidratar, mas não tem o mesmo gosto – resolvi tomar suco de frutas, mais precisamente o suco de laranja que é o qual eu mais aprecio.

Dei um pulo no mercado e comprei algumas caixas de sucos variados, mas ao prová-los descobri que eram intragáveis. Fiquei imaginando que aquilo só deve agradar ao paladar de quem jamais tomou suco algum de fruta fresca colhida no pé. Os sucos de polpa, também, não são muito diferentes, apesar do que dizem, não se comparam ao sabor do suco da fruta fresca. Não quero ser de um preciosismo, mas fico imaginando se estes sucos industrializados possuem realmente algum valor nutritivo.

Frustrado com as caixas e saquinhos congelados, resolvi eu mesmo fazer o meu próprio suco com frutas de verdade. Minha primeira providencia foi ir a campo comprar uma máquina de fazer suco e terminei adquirindo uma dessas últimas invenções que fazem suco de qualquer coisa, inclusive de frutas frescas. Custou uma pequena fortuna, dividida em tantas prestações que deixarei aos meus herdeiros a tarefa de liquidarem a fatura. E lá me pus a fazer experiências transformando em suco tudo que via pela frente. Asseguro-lhes, meus caros, que a combinação de suco de chuchu com jiló é ótima para provocar vômitos. Mas como minha preferência sempre foi o suco de laranja, comprei muitas delas na “barraca do crente”, nosso quitandeiro – já publiquei aqui uma crônica sobre a qualidade de suas filhas, e quando digo filhas não estou usando metáfora para me referir às suas frutas, que fique claro. – que lá, uma dúzia sai por menos de dois Reais. Era só descascá-las e colocá-las na máquina que aproveitava até os bagaços e o resultado era um suco de laranja encorpado, de cor viva e saudável e doce como o mel, sendo que esta última característica não advinha da propriedade da máquina e sim da qualidade da fruta. E passei a tomar suco de laranja no café da manhã, no almoço e no jantar, deixando a cerveja para os intervalos, nunca fui tão feliz com tão pouco.

No entanto, meu romance com aquela máquina extraordinária durou exatas duas semanas, pois devo admitir que era um pequeno martírio usar aquela geringonça. Cada vez que ia fazer um suco, eu tinha de encaixar variadas peças que se juntavam ao motor principal. Depois de ter o suco pronto, lá ia eu desmontar toda a parafernália e lavar peça por peça separadamente. A coisa dava tanto trabalho que roubava o prazer de se tomar um copo de suco de laranja, e me fez entender porque os sucos de caixa e polpas congeladas são tão populares. Desisti dos sucos e me concentrei na cerveja como única e prazerosa fonte de hidratação do corpo humano. Era só tirar uma lata estupidamente gelada do congelador e beber de gute-gute. Enfim, terminei depositando a dita máquina de fazer sucos no armário lá dos fundos entre a máquina de fazer hidromassagem nos pés e a de estimular o cérebro com ondas ultra magnéticas. Mais uma peça para o Museu da Inutilidade.

Quando um certo dia, lá ia eu no ônibus a caminho do shopping center comprar uma nova geladeira, numa parada entrou um desses vendedores ambulantes eloquentes. Este não vendia balas e petiscos como passatempo da viagem, nem canetas importadas a preços camaradas e nem pomadas que servem para curar de tudo ou água mineral gelada que mata o calor, e sim uma pequena peça de plástico de cor alaranjada, semelhante a um funil e que ele espetava numa laranja da qual extraia o suco apenas espremendo-a. Fiquei encantado. Existiria coisa mais simples e genial neste mundo? Além de tirar o suco da laranja prometia fazer fisioterapia nas mãos. Não dava trabalho algum, pois não era necessário montar peças, não consumia eletricidade, era só enfiá-la na fruta e espremê-la, e, para limpá-la, era só jogar um pouco de água e pronto! Esta relíquia custava só dois míseros Reais, e comprei logo uma dúzia para presenteá-la aos parentes, vizinhos e amigos que uma invenção tão maravilhosa dessas deve ser compartilhada.

Salvador, 7 de janeiro de 2012.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Conto de Natal ou de como gentileza gera gentileza.

Hoje é Natal e acordei bem disposto. E como não nevava lá fora, resolvi dar uma longa caminhada para queimar as calorias adquiridas com os excessos da noite passada, tendo me empanturrado de peru, panettone, frutas importadas, vinho, sobremesas e outras gulodices natalinas. Este ano, o meu amigo M.M. presenteou-nos com um maravilhoso peru assado, embora eu desconfie que aquele bicho fosse, na verdade, um filhote de avestruz. Estava delicioso, no entanto, e, devido às suas proporções avantajadas, provaremos uma variedade infinita de receitas com sobras de peru nos próximos dias.

Então fui fazer a minha caminhada natalina sob o escaldante sol de verão e lá pelas tantas aproximou-se um rapaz bem apessoado montado numa motocicleta, sem o obrigatório capacete. Usava um desses óculos escuros modernosos que fazem a pessoa parecer um besouro de ficção científica.

— Bom dia, senhor. Feliz Natal! – ele disse.

Eu gosto muito da cordialidade entre pessoas que não se conhecem porque isto me faz eu me sentir como um cidadão que vive numa comunidade onde moram pessoas civilizadas.

— Bom dia. Feliz Natal! – respondi.

— Isto é um assalto. – disse educadamente apontando um revolver do tamanho de um canhão em minha direção.

Ser assaltado nunca foi o meu forte e, por isso, não sei como me comportar em tais situações.

— Jura? Em que posso ajudá-lo?

— Passa a carteira. – respondeu o assaltante educadamente.

— Eu não trago carteira comigo quando venho caminhar. Tudo que tenho são cinco míseros Reais para tomar uma água de coco e pegar o ônibus de volta.

— Só isto? – pareceu aborrecido.

Eu tinha no pulso um relógio novinho em folha que Papai Noel colocou em meu sapatinho que deixei na janela do quintal, e que me custou uma pequena fortuna cujas prestações restantes ficarão como herança para meus herdeiros. Ele tem de tudo que você possa imaginar, inclusive mostra as horas e a data.

— E este relógio aí? Deve ser bem caro.

— Nem tanto. – tentei enrolá-lo, mas ele era um connoisseur de grifes caras.

— É muita imprudência do senhor andar por aí com um relógio destes, não sabe que a cidade anda cheia de assaltantes?

— Realmente, ouvi falar... Só não esperava encontrar com um deles justamente no dia do Natal. Minha mãe bem que disse para eu não sair de relógio, mas como sou um cabeça dura, não lhe dei ouvidos.

— O senhor deveria seguir os conselhos das pessoas mais velhas, elas sabem o que dizem. Como não tem dinheiro, vou ser obrigado a levar o relógio.

— Eu entendo o que o senhor está dizendo. Realmente, é muito desagradável fazer as coisas por obrigação. – disse-lhe despedindo-me do relógio.

Ele me examinou de cima a baixo e fixou os olhos no par tênis seminovo que eu usava, especial para caminhar e que promete queimar calorias, melhorar a postura e endurecer o bumbum.

— Vou levar o tênis, também. – informou o assaltante.

— Mas até os tênis? – disse retirando-os, pois não queria provocar a sua susceptibilidade.

Depois de me depenar ele ainda foi gentil.

— O senhor deseja uma carona para algum lugar?

— Obrigado, mas não quero desviá-lo de seu caminho, além do mais o senhor deve ter muito serviço pela frente.

— Realmente estou um pouco abafado. Esta época do ano, eu sempre trabalho dobrado. Dá próxima vez, tenha mais cuidado e feliz ano novo!

— Vou seguir o seu conselho. Feliz ano novo.

Ainda bem que desta vez eu não saí com a intenção de fazer fotografias usando a minha Cannon profissional!


Rio Vermelho, 25 de dezembro de 2011.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Na vida como na arte.

Ir ao cinema é minha diversão favorita. Não passo uma semana sem ir. No entanto, prefiro não saber muito sobre o filme além de seu horário e local de exibição, porque, para mim, faz parte da diversão a surpresa de ir tomando conhecimento da estória à medida que ela vai se revelando na tela prateada. Tenho só o cuidado de não ir a filmes de terror, que os de hoje em dia mais causam nojo que medo. Filmes de pacientes terminais, também não me agradam, pois o final é bastante obvio e está estampado na cara do moribundo principal. Há, também, aqueles apocalípticos cuja trama é um mirabolante plano para mandar o mundo para o quinto dos infernos, cheios de efeitos especiais e cenários fantásticos, estes me entediam e me fazem ficar questionando porque alguém está se dando tanto ao trabalho de acabar com o mundo e porque é que apenas um homem vai impedir que isto aconteça. E filmes cujo tema é a violência contra crianças ou mulheres, nem pensar, afinal eu vou ao cinema é para me divertir.

Ontem fui num cinema cuja sala só vende assentos marcados, e como a plateia era apenas de meia dúzia de gatos pingados, me rebelei, sentei em qualquer lugar. Os primeiros quarenta e cinco minutos do filme descreviam a rotina de um jovem e feliz casal, e lá pelas tantas, quando aquilo já estava ficando tedioso, a mulher conhece outro homem e, não satisfeita em ir apenas uma vez para a cama com ele, fez disso um hábito, transformando-o num tórrido romance. O marido, por sua vez, não fez diferente, desconhecendo os malfeitos da esposa, começa também a ter um caso extraconjugal, no entanto, como ele andava meio confuso, foi parar nos braços de outro de seu gênero, porque ele queria experimentar esta coisa diferente de que tanto falam. A partir daquele ponto do filme, a estória, que parecia um daqueles patéticos casos de duplo adultério, adquire contornos bizarros, quando a esposa descobre que seu querido marido a estava traindo justamente com o seu amante. Para complicar mais ainda o imbróglio, a mulher aparece grávida e como se isto não fosse o bastante, era de gêmeos e, neste momento, a trama insinua que talvez cada criança pertencesse a um pai diferente, o que dificilmente saberemos por que este era um daqueles filmes europeus que não tem fim. Para quem ficou curioso por saber em que pé ficou o triangulo amoroso, digo que o amante ficou prestando assistência à esposa e ao marido concomitantemente, seguindo ao pé da letra aquele preceito bíblico que diz que marido e mulher devem compartilhar de tudo na alegria e na tristeza. E esta é uma das desventuras de se ir num filme sem ler a sinopse previamente.

Esta inverossímil estória me fez lembrar de outra que certa vez me contaram. Uma jovem moça tinha a satisfação de “sair” com dois belos rapazes sem que um soubesse da existência do outro. Tudo ia muito bem até que certo dia ela engravidou. E como naqueles áureos tempos paternidade era mais uma presunção que uma informação científica confiável, a moça resolveu comunicar o fato aos dois rapazes, dando-lhes a palavra que um deles era o pai embora não soubesse precisar qual dos dois. Foi nesta oportunidade, também, que ambos foram apresentados, e como eles eram dois homens de boa índole e bom senso, não faltaram com solidariedade à moça e se comprometeram a dar toda a assistência a ela e à criança, inclusive até a sua idade adulta

De fato eles cumpriram o prometido. Durante toda a gravidez, não deixaram que nada faltasse à gestante. No mês previsto para a criança desembarcar no mundo, um deles precisou viajar a trabalho ficando fora algumas poucas semanas, até que certo dia este recebeu um telegrama que informava suscintamente: “Lívia deu a luz. Nasceram gêmeos. O meu, infelizmente, morreu. Parabéns!

Rio Vermelho, 15 de dezembro de 2011.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Que azar danado.

Já escrevi aqui sobre minhas caminhadas na orla do Rio Vermelho nos finais de tarde, mas não devo ter contado que, na verdade, estou treinando para as olimpíadas, pois vou competir na modalidade “devagar se vai ao longe”. Este exercício tem me feito muito bem, embora eu não saiba precisar exatamente em quê. Mas depois que o verão começou para valer derretendo-nos feito picolé, tenho saído de casa só depois que o sol se põe por completo porque uma brisa suave e fresca começa a soprar na orla tornando a atividade de caminhar num exercício agradável e revigorante.

No domingo passado, fui dar minha caminhada no início da noite, mesmo sabendo que as ruas estavam desertas àquela hora, o que não deixava de ser uma imprudência minha, pois Salvador, nesta época do ano, está entregue aos bandidos, movidos pelo espírito natalino. Estas festas de fim de ano realmente movimentam a economia em todos os setores e por isso não é de surpreender o aumento da ação dos criminosos que não querem ficar à margem dos acontecimentos. Pois lá ia eu, tranquilamente em minha caminhada, gozando da brisa do mar e absorto em meus pensamentos quando um negão surgiu armado à minha frente e me mandou passar tudo que eu tinha e que não era quase nada, pois não carrego coisa alguma comigo além das chaves de casa. Insatisfeito com a minha penúria, levou-me o único bem de valor que achou, um velho relógio de pulso comprado num camelô no centro da cidade e que me custou, depois de barganhar o preço, exatos oito Reais. Não estivesse ele visivelmente apressado, pois tinha em mente outras vítimas mais abonadas, poderia ter levado meu par de tênis que era de grife e me custara os olhos da cara. Depois de ter praticado o “malfeito”, o bandido se foi correndo para os lados da praia e sumindo no breu dos rochedos que dá acesso para uma favela nas proximidades e onde provavelmente ele fixara residência. E eu segui o meu caminho, continuando o meu exercício mesmo assim, pois a probabilidade de eu ser assaltado aquela noite já se concretizara e só por muito azar mesmo isso aconteceria duas vezes seguidas em pouco espaço de tempo. Preferi esquecer aquele incidente desagradável e deixá-lo para trás, pois o que estava feito, já estava feito.

Quis o destino que naquela mesma noite, mais tarde, eu fosse ao Cinema do Museu, que se gaba de ter uma clientela diferenciada e educada. Educada uma ova, pois durante o filme alguns representantes dessa elite aproveitavam para conversar entre si, fazer ligações ou recebê-las como se todos na plateia fossem obrigados a aturar a sua completa falta de educação. Agora que desabafei, continuo minha narrativa dizendo que depois do filme voltei para casa e no caminho dei uma parada no Porto da Barra para tomar uma água de coco gelada porque o calor estava de matar. Enquanto me refrescava com a salutar bebia, encostei-me à balaustrada observando na praia lá embaixo um grupo animado que fazia um luau, alguns casais namorando deitados na areia e alguns gatos pingados aventurado-se a cair na água que estava serena e presumivelmente tépida. Enquanto eu me deleitava com aquele cenário, um rapaz se aproximou de mim para me abordar e como o seu rosto me fosse familiar, estendi-lhe a mão para cumprimentá-lo. Ele apertou minha mão e, para minha surpresa, pediu-me dinheiro e, como lhe neguei, pediu-me um cigarro e, como eu não tinha nenhum porque não fumo, ele foi-se embora. Enquanto ele se distanciava eu tentava puxar pela memória de onde eu o conhecia até que tive um sobressalto ao lembrar que ele era o cara que me assaltara algumas horas antes!

Rio Vermelho, 11 de dezembro de 2011.

domingo, 30 de outubro de 2011

Você é tão lindo!

Quando pequeno, JR acreditava que ao crescer iria se tornar num belo cisne de penas negras que iria ser admirado por todos por causa de sua inigualável beleza. Mas ao alcançar a idade adulta, logo percebeu que ele não fazia parte de nenhum conto de fadas e que, se ele era feio quando criança, ao crescer, ficou mais feio ainda. Enfim, ele era feio como o pecado, mas estranhamente a sua feiura era mais de fascinar que de repelir. E além de ser destituído de predicativos de beleza física, ele era um duro, outro agravante que só tornava as coisas difíceis para o seu lado.

Fala-se muito da nobreza da beleza interior, principalmente quando a exterior deixa muito a desejar e, no caso de JR, as mulheres pareciam não ter os esperados olhos de raios-X que tanto enxergam o âmago do ser de uma pessoa, porque esta poderia ser uma dessas inspiradoras estórias de superação na qual o nosso herói passa por uma provação, no caso a sua falta de beleza, até ser reconhecido e admirado pelo seu conteúdo humano, mas, no caso de JR ele era um sujeito superficial e sem muitas qualidades pessoais que o distinguissem dos outros seres da espécie, então ele não apenas carecia de beleza exterior, mas de interior também, no entanto, ser má pessoa ou mau caráter, isso ele não era.

Mas apesar de seu percalço, ele era um ser humano como outro qualquer que se levantava todas as manhãs motivado por sonhos e desejos. E um desses desejos atendia pelo nome de Ritinha, uma deliciosa e mal afamada mocinha que era balconista da loja de ferragens do bairro que ficava no seu caminho diário para o trabalho, uma mulher muito bonita, mesmo. Os olhos do pobre rapaz brilhavam de desejo cada vez que ele punha os olhos sobre ela ao passar em frente da loja e provavelmente outras partes de seu corpo se manifestavam com igual grau de paixão. Mas a moça tinha horror a homem feio e o nosso pobre JR se encaixava exatamente naquela categoria. Vez por outra ele entrava na loja nem que fosse para só comprar um prego, ou dois, apenas pelo prazer de ser atendido por Ritinha, mas apesar de toda sua delicadeza e educação ao tratá-la, ela retribuía com um olhar duro de desprezo porque para ela, ele era mais um daqueles homens feios que enchiam a sua paciência com olhares e palavras melosas. Vez por outra JR a encontrava no mercado e tinha a petulância de se aproximar para conversar na intenção de convidá-la pra sair ao que ela lhe respondia gentilmente: “Você não se enxerga? Vai te catar!” O rapaz interpretava isto como um “talvez” e repetia o pedido em outras oportunidades, ouvindo sempre a mesma promessa encorajadora.

Mas a vida não foi totalmente injusta com JR, pois que, certo dia, teve o sofrimento de perder um tio querido e a compensação de herdar toda a sua pequena fortuna. A notícia logo se espalhou pelo bairro e virou assunto de conversa de esquina, balcão de farmácia, mesa de botequim até chegar à loja de ferragens na qual a indiferente Ritinha trabalhava e pôs-se ouvir aquela conversa toda com disfarçado desinteresse. A estória que corria era que ele queria achar uma boa moça para casar e que com todo aquele dinheiro que herdou, candidatas é o que não faltavam e quem quisesse tentar, melhor que se apressasse porque a fila estava começando a dobrar o quarteirão. Não demorou muito, Ritinha percebeu que subitamente estava perdidamente apaixonada pelo homem mais feio que já vira em toda a sua vida e dono de uma fortuna de encher os olhos de qualquer moça que sonhava encontrar seu príncipe encantado e ela encontrara o seu.

A partir de então, ela passou a ir ao mercado diariamente com o intuito de esbarrar acidentalmente com JR, o que de fato aconteceu e daquela vez foi ela quem teve a iniciativa de puxar conversa. E como era de se esperar, JR insistiu mais uma vez no convite para saírem juntos ao que foi aceito de pronto e com demonstrações de alegria e entusiasmo que faria qualquer cego de bengala desconfiar, menos JR que estava cego de amor pela moça. Ao se despedirem reafirmando o encontro já para aquela noite – para que esperar tanto... – Ritinha deu um beijo melado no rosto de JR e disse-lhe languidamente ao pé de seu ouvido “Você é tão lindo!” Bem, o resto da estória é previsível de imaginar. Eles viveram felizes para sempre, ele por ter uma esposa que era muito bela e ela por ter se tornado proprietária de uma bela conta bancária.

Rio Vermelho, 30 de outubro de 2011.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Il sole é mio!

Se o luar é dos amantes então, o pôr do sol a quem pertence? Todos os fins de tarde, nas três últimas semanas, Bartolo, o meu amigo italiano, calça o seu sempre bem cuidado par de tênis de futebol de salão e, munido da câmera digital novíssima em folha, vai até a Praia de Santana registrar mais um crepúsculo. Outro dia ele não compareceu como esperado, preferiu ficar em casa fazendo espaguete, porém, imaginando que se tratava apenas de um mero atraso, o sol retardou o seu momento de sair de cena como se estivesse à sua espera para mais uma vez exibir-se para a fotografia, mas como o italiano não deu as caras, a noite, então, começou um pouco mais tarde aquele dia.

Todos os fins de tarde, eu saio para caminhar na orla do Rio Vermelho, naquele trecho entre o Teatro do SESI e a segunda escada da Praia da Paciência cujo comprimento deve ter pouco mais que mil metros, e repito o mesmo percurso cerca de oito vezes, considerando-se a ida e a volta. Tudo de caloria e gordura que eu perco neste exercício inútil, eu candidamente reponho, às sextas-feiras, comendo churrasco ou espetos de camarão pistola e sardinha na brasa, regados a fartas rodadas de cerveja estupidamente gelada no refrigerador de última geração da casa de meu amigo e vizinho Habib. O caminho do meu “Cooper” é sinuoso porque ele obedece ao movimento do mar, começando reto até a igreja e depois fazendo uma barriga acompanhando a enseada da Praia de Santana e depois segue reto novamente e mais adiante faz outra barriga na Praia da Paciência. É uma caminhada privilegiada por poder se admirar toda a beleza do mar quebrando nas pedras jogando espuma para o alto. Até bem recentemente, o pôr do sol só era visto acontecer por detrás de prédios e, por isso, não era um espetáculo lá muito interessante, mas como ele tem se movido no sentido leste como parte de seu ciclo natural, não faz muitos dias, ele já é visto desaparecer no oceano, onde pode ser melhor contemplado por quem quer que esteja andando ou passando de automóvel ao longo da avenida que corre lado a lado com o mar.

Um fato que tem merecido a minha atenção é o encantamento das pessoas pelo pôr do sol e o seu impulso de fotografá-lo como única forma de congelar para sempre aquele momento singular, porque o sol se põe diferentemente todos os dias para nunca repetir o mesmo espetáculo. Então eu vejo pessoas como o meu amigo Bartolo chegar até a orla trazendo suas câmeras com a vívida intenção de gravar aquele momento sublime. Ou outras que, de dentro de seus carros ou do ônibus ou encima da motocicleta, no congestionamento da avenida naquele final de tarde, não desperdiçam o momento e fazem uso até de câmeras embutidas em aparelhos celulares. Tudo está valendo, de máquinas baratinhas até as profissionais com suas teleobjetivas espetaculares, desde que ninguém deixe de compartilhar aquele efêmero instante. De onde vem tal magnetismo pelo pôr do sol? Como ele consegue esta façanha de se reinventar a cada dia e agregar tantos admiradores? Eu mesmo fico divido entre fazer o meu exercício ou apenas sair de casa levando a minha Canon para juntar-me aos outros para celebrá-lo. Talvez por preciosismo, no entanto, eu penso que o pôr do sol deveria ser livre e sempre único e guardado na memória, por isso me privo de fotografá-lo porque nada substitui a emoção de vê-lo ao vivo.

Rio Vermelho, 18 de outubro de 2011.