quinta-feira, 27 de março de 2014

Sobre a arte de tirar proveito da vaidade humana

Outro dia, uma moça bonita, minha conhecida, sorriu para mim. Notei que o seu sorriso, daquela vez, estava colorido por pequenas miçangas azuis colocadas entre um dente e outro. Achei aquilo curioso, deveria ser mais algum tipo de moda bizarra. Ora, se há quem espete piercings nas partes íntimas do corpo, porque não haveriam de adornar os dentes, que estão postos em local bem mais a vista, refleti. Entretanto, ela me explicou, estava fazendo um tratamento dentário e aquelas contas azuis era borrachas colocadas para abrir caminho para um futuro aparelho ortodôntico. Seu dentista lhe disse que ela precisava muito daquilo. Eu fiquei matutando como esta moça conseguiu sobreviver até os trinta anos de idade sem a ajuda de tal imprescindível aparelho.
         Este episódio me fez lembrar de outro de minha adolescência. Eu tinha uma professora cujos peitos eram enormes e formosos, verdadeiras maravilhas da natureza e fonte de inspiração dos garotos da turma. Certa vez, ela ausentou-se por motivo de saúde e quando retornou à classe, semanas depois, ela estava mudada, parecia que tinha encolhido de tamanho. Perdera aquele magnetismo que nos fazia prestar atenção à sua aula, ou melhor dizendo, ao seu decote. Ela submetera-se a uma cirurgia de redução dos seios. Uma grande perda, uma tristeza para nós meninos. Conheci outras mulheres que fizeram o mesmo. Eu ficava imaginando se haveria algum banco de peitos para onde aqueles pedaços de mamas extirpados eram doados para serem reaproveitados em mulheres menos afortunadas. Então, diminuir o tamanho dos seios era a moda do momento naquela época, uma invenção dos cirurgiões plásticos para aquecerem os negócios.
         Na mesma época, os ortopedistas descobriram que as meninas estavam fora do prumo e por isso as coitadas eram submetidas ao uso de umas armaduras de metal que as faziam ficar eretas e de pescoço duro. Na minha escola havia mais de uma dezena delas. Era o tempo da ditadura militar, aquelas as meninas estavam longe se serem consideradas subversivas, mas eram torturadas mesmo assim com o uso daquela coisa horrível.
         E quando não sobraram mais seios para serem reduzidos de tamanho, Deus criou as próteses de silicone para dar mais autoconfiança às mulheres cujos peitos eram pequenos. A vez delas tinha finalmente chegado. A moda era aumentá-los de acordo com o tamanho da falta de autoestima de cada freguesa, havia aquelas comedidas que precisavam deles só um pouquinho maior para caberem num modesto sutiã e outras exageradas que faziam o queixo sumir entre os peitos novos, a provocar nos homens pensamentos impróprios. Um dia eu vi um programa de TV no qual um cirurgião plástico, usando uma bandana colorida cobrindo a cabeça, similar às que o cantor Bel Marques costuma usar, explicava ao repórter que iria adicionar mais silicone aos peitos já super siliconados de sua paciente, uma bela dançarina stripper, como uma forma de conferir mais dramaticidade a eles. Eu não sei quanto à dramaticidade nenhuma, mas certamente os seus peitos ficaram enormes de tirar o fôlego. E sobre a bandana na cabeça, é sabido que a do Bel tem como propósito ocultar a sua extensa calvície, enquanto à do cirurgião, certamente, esta serve para esconder a sua completa falta de ética.
         Ah....(um suspiro) a vaidade humana é porta de entrada para toda espécie de artifício para acalentar a insatisfação das pessoas com a sua própria aparência. Os médicos, dentistas e outros profissionais da saúde conhecem muito bem esta fraqueza humana e as manipulam conforme a sua ambição, uma pena.

Rio Vermelho, 26 de março de 2014.
          

sábado, 15 de março de 2014

Visita à Cidade Grande

A filha recebeu a visita do pai que veio do interior e ficou muito satisfeita. Sentia saudades dele e de todo o resto da parentada que deixara para trás na pequena cidade natal. Raríssimas foram as vezes que seu Herculano se aventurou a sair da tranquila roça em C... para vir até Salvador. Isto foi para ele uma aventura tão grande como a do primeiro homem a pisar na lua.
         A filha foi recebê-lo com todo o carinho na rodoviária e lhe cobriu com mimos durante a sua estadia, lhe preparou os pratos favoritos que a mamãe fazia quando era viva. É claro que a galinha de cabidela feita com frango congelado de supermercado não se comparava à galinha pé duro que o pai criava no sítio. O sangue para o molho, este, então, foi uma complicação danada para consegui-lo, pois não era encontrado em nenhum supermercado ou mercearia. Pediu para a empregada arranjar no terreiro que ela frequentava e onde galinhas eram sacrificadas para se fazer trabalhos. Mas o pai reconheceu o esforço da filha e comeu com gosto e sem fazer cara feia.
         No dia seguinte, o velho resolveu sair sozinho e fazer um turismo pela cidade enquanto a filha trabalhava. Vestiu sua roupa domingueira e pôs um paletó, parecia um crente indo para o culto. Saindo do apartamento da filha, preferiu descer os três lances pela escada ao invés de se aventurar pelo elevador, que era um lugar muito pequeno e abafado. Caminhou até o ponto de ônibus mais próximo e viu um que acabara de encostar. O letreiro dizia o destino: Vale das Pedrinhas.
         Aquele nome trouxe bonitas recordações a seu Herculano. Um vale verde e bonito, um riozinho no meio correndo alegre com suas águas límpidas cheias de peixinhos. Pedrinhas nas margens. Não teve dúvidas, embarcou no ônibus rumo àquele lugar encantado.
         A viagem foi tão demorada que imaginou estar indo para outra cidade, mas logo foi tranquilizado pela moça ao lado que disse se tratar de um bairro de Salvador. O ônibus andava de vagar, parava a todo minuto sem ter chegado a um ponto, seguia uma fila infinita de automóveis. Quantos carros, lamentou seu Herculano. Finalmente chegou ao Vale das Pedrinhas e desceu no segundo ponto.
         Olhou em volta com o olhar triste. Viu pequenos casebres espremidos uns contra os outros subindo morro acima. Alguns eram tão toscos que pareciam que iam cair a qualquer instante. Umas construções tinham reboco e outras não, que feiura. O lixo se amontoava por todos os lados, o lugar fedia a mijo. À sua frente, havia um canal aberto ladeado por concreto onde, além de lixo jogado lá embaixo, passava uma água escura e fétida. Nem sinal do riozinho de águas límpidas e das pedrinhas encantadas que imaginara.
         Desolado, seu Herculano atravessou a rua para pegar o ônibus de volta. Enquanto aguardava, um garoto que tinha a idade de seu neto de quinze anos aproximou-se com o seu nariz escorrendo de catarro, mostrou-lhe um canivete e pediu-lhe a carteira e o celular. Nunca tive isso, disse seu Herculano e entregou-lhe a carteira com pouco dinheiro. O menino lhe lançou um olhar ameaçador e num gesto rápido lançou-se com o canivete contra o velho. Mas este foi mais rápido ainda, fez como se agarrava um novilho, deu um garrote no pescoço do menino. Com o outro braço tirou de sua mão a faca que fez desaparecer na água escura do canal. Sentindo-se seguro, soltou o garoto que saiu correndo até sumir pelos labirintos da favela praguejando, por esta ele não esperava.
         Que tristeza isso aqui, pensou seu Herculano embarcando no ônibus de volta para a casa da filha com uns trocados que lhe restara no bolso. Não tinha rio algum, nem vale e nem pedrinhas e as crianças agiam como adultos perigosos. Não entendia como a filha tinha gosto em morar na cidade grande.

Rio Vermelho, 15 de março de 2014.

terça-feira, 4 de março de 2014

O Novo Vizinho

As noites frescas do verão tornaram-se bucólicas nas últimas semanas aqui na Rua Ilhéus. Tenho a impressão de que voltei a morar no campo. (Não que eu tenha realmente morado no campo alguma vez, mas o fato de já ter passado um fim-de-semana inteiro numa fazenda, me faz sentir credenciado para me considerar um homem da natureza!) O motivo de tal atmosfera campesina, foi a súbita chegada de um novo vizinho. Um sapo fixou residência na boca-de-lobo que fica logo em frende à nossa casa. Coaxa a noite inteira sem parar, alto e forte como o timbre de um bem nutrido barítono. Ele começa o seu canto ribeirinho ao escurecer e quando eu levanto no meio da noite por qualquer motivo, lá está ele cortando o silêncio da madrugada com a sua balada que parece mais um lamento triste e solitário.
         Bonito, não? Imagine ter um sapo em baixo de sua janela coaxando a noite inteira sem parar, noite após noite. No início, isto foi curioso e encantador como qualquer novidade. A natureza invadiu a minha casa, me regozijei Até pensei em tirar uma foto ao lado do bichinho para pôr no Facebook. Entretanto, depois do terceiro dia consecutivo, o sapo tornou-se uma chateação ecológica, rasguei o meu diploma de homem do campo. Só no que eu pensava era transferir o domicílio do batráquio para a porta de outro vizinho bem longe daqui.
De onde veio esta criatura, eu me perguntei. No entanto, é fácil de entender porque isto está acontecendo. A nossa casa foi construída sobre um aterro onde antes existiu um charco, habitat natural dos sapos, nas margens do rio Lucaia, que fica a poucos metros de minha casa. Eu me lembro quando ainda se podia pescar ali quando eu era criança. Em dias de maré cheia, a água do mar invadia o rio e os pescadores jogavam tarrafas para capturarem minúsculos peixes de nome pititinga. Naquela época, o rio ainda não era o sombrio esgoto em que foi transformado nos dias de hoje e que, em breve, será um canal fechado com placas de concreto sobre o qual uma avenida ou área de lazer será construída. Finalmente, o moribundo rio, cujo fedor, nos lembra , noite e dia, de sua decadente existência, será sepultado. Tentar revitalizá-lo é uma solução impensável para o governo que despreza soluções ecológicas baratas em favor daquelas que doam para as suas campanhas eleitorais, as empreiteiras.
A verdade é que as cidades nascem e crescem em espaços onde antes dominava a natureza e, embora as edificações humanas ponham abaixo a vegetação deixando sem moradia os animais nativos da região, enxotando-os dali, algum dia, movidos por uma força invisível, eles voltam para reconquistar o seu antigo lar. É a natureza querendo de volta aquilo que lhe foi tomado.

Rio Vermelho, 3 de março de 2014.
        
        

                  

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Fábula carnavalesca

Ubirajara dos Prazeres era um respeitável pai de família. Sujeito pacato e afável, funcionário da Caixa Econômica há mais de vinte anos. Casado com dona Elvira, uma mulher tirana e acostumada a ser obedecida por todos de casa, inclusive pelo dócil marido, cujo temor à mulher era motivo de chacota dos amigos.
         Entretanto, dona Elvira tinha bom coração, permitia o marido encontrar os amigos às sextas-feiras para a tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos, depois do expediente na Caixa. Mas ele que não se atrevesse a chegar em casa embriagado, pois seria mandado de castigo passar a noite no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava ele brincar a terça-gorda de carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, no 2 de Julho, em companhia da turma de amigos. Apesar de sua natureza pacata, existia no coração de Ubirajara um folião adormecido.
         Era o ano da graça do Senhor de 1962 e os carnavais daquela época eram uma divertida festa popular com fantasias de pierrôs, piratas e colombinas, serpentinas e confetes, brincados ao ritmo de românticas marchinhas carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca saírem de moda e nos quais pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas da cidade e bailes noturnos em clubes sociais até o raiar do sol. Naquele ano, Ubirajara contava os dias para cair na folia vestido com a mesma fantasia de pirata dos carnavais anteriores. Sua maior despesa, fora com uma mamadeira de bebê dentro da qual despejou rum Montilla com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E quando a noite de terça-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro da Saúde, onde residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia.
         Mal ele pôs os pés no salão do clube, foi dominado pela animação causada pela música tocada pela famosa Banda do Maestro Tabajara. O pacato Ubirajara então se transformou num folião agitado, proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se aos amigos e caiu na folia noite adentro.
         Naquele baile os homens podiam se fantasiar do que quisessem, mas não era permitido que usassem máscaras, ao contrário das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Ubirajara pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem se cansar e se dar conta do tempo que parecia infinito. A moça tinha um requebrado e trejeitos que enfeitiçaram o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, faça-se justiça, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente enamorado, fez gracejos com aquela moreninha da qual só pôde ver os lábios grossos e gordurosos, pois como todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara colorida e enfeitada com purpurina. Nosso herói era só alegria, nada da chateação da repartição pública ou de receber ordens da irritante da Elvira, aquela noite era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas, a magia do carnaval daquele ano começava a desvanecer-se. O sonho acabava. Na despedida, ele perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la algum dia, quem sabe em outros carnavais.
Do Clube dos Fantoches desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra feito uns moleques e foram terminar em dona Lurdes no Mercado Modelo, onde o famoso mocotó os aguardava para rebater a ressaca, cozido magistralmente na apertada cozinha de seu modesto restaurante em suas panelas sebentas. Lá pelas sete da manhã, ao entrar finalmente em casa nas pontas dos pés, deu de cara com outro, se não o seu algoz, que o aguardava mal humorado.
         ― Até que fim chegou o pé-de-valsa! – bradou dona Elvira. – Então, dançaste de rosto coladinho com uma fulana a noite inteira, hein, seu filho da puta!
         ― É...? E como você sabe? – admitiu com atrevimento, ainda sob o efeito maléfico do rum.
         ― Ela acabou de me contar. – e apontando em direção da cozinha. – Você dançou foi com a cozinheira, seu descarado!

Rio Vermelho, 24 de fevereiro de 2014.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Emprego dos Sonhos

Eu ligo para a Secretaria do Meio Ambiente com o intuito de fazer uma reclamação. Tento seguidas vezes os mesmos números que me passaram, mas ninguém jamais atende. Inconformado, no dia seguinte, tento novamente até que uma voz feminina e sonolenta finalmente me atende e pede que eu aguarde, pois vai chamar a pessoa responsável. Quando eu quase desistia de esperar, a mesma voz preguiçosa retoma a ligação, informa que a responsável não foi trabalhar naquele dia. Pergunto quando ela costuma ir trabalhar e sou instruído a tentar novamente por minha conta e risco na manhã do dia seguinte.
         Uma cozinha industrial instalou-se em nossa rua na casa onde marava uma querida vizinha. Primeiro foi o pai que se foi há muitos anos quando eu ainda era um meninote. Depois, a mãe. Finalmente, certo dia, não muito tempo atrás, ela comeu uma ostra estragada e não deu outra. Como não tinha herdeiros diretos, a casa foi vendida pelos irmãos. Nossa rua é residencial, mas isto não importa para a prefeitura que vê no IPTU comercial uma fonte de renda mais lucrativa que o residencial. Salvador carece de um plano diretor e de um ordenamento urbano, aqui tudo pode.
         O estabelecimento prepara alimentos que vão ser consumidos por seletos clientes de uma certa cadeia chique de cafés cujo funcionamento é em shopping centers, mas foi construído sem observar as normas para este tipo de empreendimento. A chaminé da cozinha não possui os apropriados filtros que impedem a poluição do ar e sua altura está abaixo do comprimento estabelecido. Resultado, os moradores do pequeno prédio vizinho sofrem com o cheiro de frituras e outros cozimentos e quando o vento sopra para o lado de minha casa, do outro lado da rua, nas correntes de verão, meu momento de leitura na rede do jardim é incomodado com o odor enjoativo.
Uma vizinha que mora no pequeno prédio ao lado da chaminé da tal cozinha já bateu duas vezes à minha porta choramingando e se queixando que o mal cheiro tem agravado a renite alérgica de seu filho. Sugeri-lhe que talvez fosse mais eficaz se ela reclamasse diretamente com o incomodador, mas sua natureza a impede de tomar tal iniciativa, que baiano intimida-se ante a necessidade de encarar enfrentamentos. Isto deve ser ainda herança dos tempos de senzala, penso eu, quando dezenas de homens, mulheres e crianças eram obrigados a coabitar o mesmo espaço sem direito a privacidade alguma e, por isso, tinham de engolir calados os aborrecimentos que surgiam naquele tipo de situação. A passividade e submissão, o medo da retaliação perduraram até os nossos dias. O prestativo de seu marido passa o dia fora no trabalho e quando volta para casa não quer saber de problemas. Restou a mim, o prefeito honorário da rua, fazer algo a respeito. Eu tinha resistido a isto, na esperança de que os incomodados tomassem a iniciativa, até o dia em que eu mesmo me senti incomodado.
         Liguei no dia seguinte para a Secretaria do Meio Ambiente e a mesma voz entusiasmada me atendeu. Os fiscais estavam todos fora fiscalizando as denuncias, informou. Mas alguém tem de anotar estas denuncias para que os fiscais possam ir para campo, não é? Tem sim, mas esta pessoa não chegou ainda, ela disse. Mas não foi esta mesma que não foi trabalhar ontem e estaria hoje aí pela manhã? Ela não chegou ainda, a atendente informou mais uma vez. E quando ela vai aparecer por aí, tem alguma ideia? Tente depois das dez, a outra respondeu. Eu gostaria muito de ter um emprego assim, lhe disse. Eu também, ela foi irônica, mas não sou concursada e por isso tenho de estar aqui no trabalho no horário todo santo dia.

Rio Vermelho, 13 de fevereiro de 2014.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O Dia Em Que Derrubei Um Mike Tyson

Eu gosto de gastronomia a ponto de me aventurar a experimentar algumas receitas simples de vez em quando. Sim, porque a minha ambição pela arte culinária não vai muito além de recriar algumas receitas fáceis de fazer que não frustrem o entusiasmo do chef amador que existe em mim. Outro dia mesmo eu participei de um workshop sobre risoto oferecido pelo SENAC e tive a grata surpresa de descobrir que aquilo que eu fazia com tanto empenho nunca foi um risoto.
         E foi conversando sobre pratos exóticos com um amigo natural do sertão de Minas Gerais que me veio a lembrança de um episódio em minha vida cuja relação com a culinária é nenhuma. Meu amigo mineiro falava de como sua mãe sabia fazer um ensopado de tatu como ninguém e de como ela até aproveitava o rabo do bicho. Não sou fã de tatu, jamais comi um e creio que este não está na minha lista de 100 coisas para comer antes de morrer. Considero-o até um animal simpático e até já tivemos um desses em nossa casa da Rua do Céu quando eu era criança. Mas desde que tomei conhecimento que o animal fazedor de buracos na terra apreciava cadáveres a sete palmos como iguaria e é um transmissor da doença de Lázaro, desenvolvi uma repulsa em tê-lo à minha frente em um prato sob qualquer receita que seja.
         Outra especialidade que a mãe do meu amigo tem é fazer um prato de nome tão incomum para nós baianos como ele próprio. Chama-se galopé e é feito a partir da mistura de dois cozidos, um de pés de porco frescos e outro de um cozido de galo duro. Minhas papilas gustativas salivaram encantadas com a ideia de prová-lo. Deve ser aquele tipo de comida que agente come e sua ao mesmo tempo e depois vai se deitar numa rede na sombra o resto da tarde para fazer a digestão. Entretanto, esta é uma receita que jamais terei a oportunidade de experimentar, a menos que eu vá parar num rincão de Minas. Eu me perguntei em nome de Deus onde eu conseguiria pés de porco frescos e ainda mais um galo velho e duro para abater aqui em Salvador. Naquele momento, lembrei-me de um certo galo.
         Eu vinha de uma fazenda onde fui passar o fim de semana com amigos e já era noite quando passávamos em frente à CEASA do Rio Vermelho. O carro vinha a certa velocidade, cheio de gente e malas e eu estava ao volante. Estávamos exaustos da longa viagem, já era noite, mas eu mantinha os olhos firmes e atentos na estrada. Ao passar em frente a um ponto de ônibus, fui surpreendido com a presença de um animal no caminho logo à nossa frente. O farol do carro devia tê-lo hipnotizado, pois ele estava imóvel como uma estátua e pude ver a potente luz do carro refletida em seu pequeno olho. Ele tinha um de cada lado da cabeça e estava de pé de perfil para nós. Era um majestoso e robusto galo. Naquele instante, meu pensamento foi ágil e rápido, calculei que seria impossível frear o automóvel sem causar um acidente e desviar para qualquer um dos lados também resultaria numa tragédia. Com o coração apertado, segui adiante e até hoje me lembro de sentir uma batida surda no chassis do carro. Aquele foi o meu primeiro e único atropelamento até os dias de hoje.
         Um amigo sentado no banco ao meu lado testemunhou o terrível episódio e ainda viu o dono do animal esbravejando feito um louco no ponto do ônibus.
         — Corre, Cris! – ele gritou exaltado. – Você matou um galo de briga, o dono está puto segurando a faixa de campeão!

         Rio Vermelho, 10 de fevereiro de 2014.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Violência Gratuita

Fui parar na Praia do Forte este fim de semana passado. Uma praia distante de Salvador, frequentada por grã-finos endinheirados ou pelos pretendentes a tal posto. Não sou nenhuma coisa nem outra, só um ponto fora da curva. Faço este passeio anualmente exatamente no dia 2 de fevereiro, com o intuito de fugir da muvuca em que se transformou a tradicional festa de Iemanjá, a Rainha do Mar, a protetora dos pescadores, pois em troca de oferendas garante-lhes pesca o ano inteiro. Esta festa, cujo momento culminante é a entrega de presentes à Iemanjá, deixados em alto-mar pelos pescadores, acontece a poucos metros de minha residência e, em minha opinião, apesar do incomodo que ela causa aos moradores em seu entorno, a considero a mais bela de todas as manifestações populares da Bahia de que tenho conhecimento.
Na hospedaria onde pousei em Praia do Forte, conheci um rapaz estrangeiro que estava de passeio de férias pelo Brasil. Falei-lhe da beleza que é a festa de Iemanjá, incentivando-o a vir até Salvador assistir à entrega das oferendas à Rainha do Mar. Entretanto, ele me respondeu que resolvera se abster de participar de eventos deste tipo enquanto estivesse visitando a nossa terrinha. Não era à toa. Seu rosto estava arrebentado e remendado por pontos cirúrgicos cuja carne costurada ainda pulsava vermelha de dor e deixará cicatrizes na pele e na alma. Dois dias antes, ele estava no Festival de Verão, – um evento musical e cultural produzido pela iniciativa privada aqui da cidade, portanto, em local fechado e com ingressos a peso de ouro – andava tranquilamente entre os participantes quando lhe desferiram um soco brutal de nocautear até o Anderson Silva. A alegria da noite terminou por ali. O estrangeiro desconhece o motivo pelo qual foi vítima de tamanha violência. Não havia tumulto algum, briga na qual tivesse sido acertado por um soco perdido. Não houve assalto. Deixaram a porta da jaula aberta e o animal que estava lá dentro fugiu para a noite agredindo covardemente pessoas que atravessavam em seu caminho. Nosso visitante, lamentavelmente, foi uma destas vítimas. Alguém divertia-se agredindo outros gratuitamente, mas que forma perversa e doentia de diversão.
De onde vem tanto ódio e insensatez? O caso deste rapaz estrangeiro não é um fato isolado. Longe disto, são centenas as vítimas que são agredidas injustificadamente neste tipo de evento de massa aqui em Salvador, quer seja este público ou privado, sem falar daquelas que assaltadas ou se metem em brigas as quais preferiam estar longe. Sair para se divertir em eventos que reúnem uma grande quantidade de pessoas tem se tornado uma atividade de alto risco na Terra da Felicidade. Não é raro as vítimas de tais violências carregam para o resto da vida sequelas causadas pela brutalidade.
Eu me pergunto por que isto acontece num país onde o seu governo se regozija de seu sucesso na economia, na saúde pública, segurança e educação. Se está tudo tão bom assim, então qual o motivo da fúria?
Se a Civilização é a violência dominada, como dizem, a vitória sobre a agressividade do primata, sim porque somos e sempre seremos primatas num estágio evoluído, como definiríamos então o nosso país? Em que estágio da evolução humana nos encontramos? Somos a nação que constrói aviões de alta tecnologia, produz vacinas e faz pesquisas em biotecnologia, mas também é o mesmo lugar que reduz o homem livre ou o presidiário a seu estágio mais primitivo da condição humana. Somos uma sociedade que funciona como um motor a produzir violência gratuita em nosso cotidiano. Temos medo de sair na rua de dia ou à noite, vivemos com medo por nós e pelos outros.

Rio Vermelho, 4 de fevereiro de 2014.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Homem Mau Foi ao Cinema

Hoje eu faço um mea-culpa. Esta minha postura é tão rara quanto a ouvir o belo canto do uirapuru no coração da floresta amazônica. Devo admitir que sou orgulhoso o bastante para não praticar tais atos de humildade e engrandecimento da alma. No entanto, achei que tinha passado dos limites e só uma autocrítica pública me livraria do sentimento de culpa que tem me consumido.
         A minha insensatez tem se expressado sob forma de queixas àqueles que fazem do aparelho celular não apenas um instrumento destinado à comunicação, mas como um objeto de atrito social. Seu uso descontrolado em qualquer ocasião, mesmo nos lugares onde são expressamente proibidos tem gerado conflitos entre aqueles que possuem bom senso e os que não sabem para que isto serve.
         Ontem fui ao cinema. Sim, este mesmo que é a fonte do meu lazer, também é a causa de meus dissabores. A linda moça veio e acomodou-se ao meu lado e antes que o filme iniciasse, ela sacou de sua bolsa o aparelho celular e checou as mensagens ou seja lá o que fosse de tão importante. Como todos sabem, ao ser acionada, a tela do aparelho celular emite uma brilhante e continua luz. Isto não representaria inconveniente algum se não ocorresse numa sala escura como a do cinema, cuja principal característica é ficar um breu durante a exibição do filme. No escuro, a luz do celular provoca desconforto à visão dos que estão sentados ao lado usuário do aparelho, assim como daqueles localizados logo atrás dele. Não tem como não se sentir incomodado numa situação como esta.
         Eu tento não ser intolerante – ó, Deus, como eu tento! – me contenho em não protestar até que o filme comesse e ainda assim sempre dou uma margem de tolerância de mais cinco minutos para que o proprietário do celular possa se acostumar com a ideia de ficar longe dele pelos próximos longos minutos que durar o filme. No entanto, passados os meus tais cinco minutos de tolerância, a minha vizinha continuou ligando de forma intermitente o seu aparelho e sua luz ao lado a me incomodar. Como aquilo me parecia que não teria fim se eu não interferisse, pedi-lhe educadamente que desligasse aquela merda. Ela disse que sim e pôs o aparelho dentro de sua grande bolsa. Constrange-me pedir a um adulto para se comportar.
         Não demorou cinco minutos, no entanto, e lá estava ela novamente de olho no celular. Desta vez, entretanto, ela teve o cuidado de acendê-lo dentro da bolsa. Provavelmente o excesso de tintura loura em seus longos fios de cabelos tenha lhe subtraído a pouca quantidade que ainda lhe restava de inteligência, pois só a ignorância justificava o fato de ela não perceber que mesmo estando parcialmente dentro de uma enorme bolsa, o seu celular continuava a emitir luz e a incomodar as pessoas ao seu redor.
         Eu fiquei refletindo sobre o que faria uma pessoa adulta e aparentemente sadia como ela insistir no erro. E foi neste instante que um sentimento de culpa se apoderou de mim e me fez ter vergonha de mim mesmo. A personagem do filme que assistíamos admitia naquele mesmo instante que ela era viciada em sexo – não vá assistir a Ninfomaníaca esperando ver cenas picantes, pois este filme é apropriado a passar na Sessão da Tarde sem cortes. Se quer ver sacanagem explícita com história, assista Azul é a Cor Mais Quente, é até educativo. – e que não podia controlar aquele vício que era maior que ela mesma. Então eu acordei para o fato que o mesmo acontecia com a criatura ao meu lado. A coitada era uma viciada em celular – não no aparelho propriamente, mas na necessidade de estar conectada à internet. Sua vida não valia coisa alguma se ela não pudesse a cada cinco minutinhos dar uma olhada na tela do aparelho. A sua vida devia ser tão vazia quanto a da protagonista do filme, que contava angustiada o seu drama, num tom confessional, a um desconhecido. A vida da personagem ao meu lado e assim como à da tela era preenchida pelo vazio e pelo equívoco. Checar o celular a cada instante na expectativa de que daquela vez houvesse realmente algo de importante que desse sentido à sua existência deveria ser o seu martírio.
         Eu me senti um injusto e insensível por estar exigindo de um viciado algo que ele não tem poder para controlar. Era como pedir a um alcoólatra para não tomar o primeiro gole do dia ou ao dependente químico para se abster de dar aquela cheirada que lhe proporcionará conforto. Assim como há em curso uma epidemia de crack aniquilando a nossa juventude sem que se faça nada a respeito, uma multidão de viciados em estar atualizado através da internet se multiplica silenciosamente sem que as autoridades de saúde pública atentem para o fato.
Eu não sou um viciado em coisa alguma, mas gostaria. Todos os anos eu me prometo que adquirirei algum vício, mas sempre fracasso até neste intento. Mas sou capaz de entender e de imaginar a aflição e tormento de um viciado e o inferno que deve ser para aquela moça ficar desprovida de seu aparelho celular por alguns minutos durante a exibição de um filme. Não checar as suas mensagens a cada instante, não ver a última postagem do amigo na rede social deve ser para ela uma tortura tal como deve ser para o político praticar um único ato honesto uma vez na vida. É algo incompreensível para a sua compreensão enferma e por isso não me surpreendo se ela tiver me considerado um homem mau. Ela merece a minha compaixão e não a recriminação. Depois do filme, ofereci-lhe o telefone de um amigo, um excelente psiquiatra. Fiz bem?

Rio Vermelho, 22 de janeiro de 2014.