sábado, 19 de janeiro de 2013

Sobre Vacas e Cavalos ou a Estória do Garoto que Despertou Para Um Novo Mundo

Era um menino franzino, destes, criado em condomínio, mas que aos dez anos de idade já era um mestre de lutas marciais no vídeo game e exímio usuário de computadores e similares. Seu mundo restringia-se a um monitor de 25 polegadas e a uma tela de um ipod. Nunca brincara de bola de gude, picula ou fizera estripulias em cima de uma árvore. Ver uma vaca ou cavalo em pessoa, nem pensar! Era um perfeito garoto nascido e criado na cidade, como tantos outros. Filho de pais separados.
         Naquele sábado, era dia de ele ficar com o pai. A mãe, então, arrumou-lhe a mochilinha com uma muda de roupa limpa e foi ela mesma levar o embrulho na casa do ex, logo cedo pela manhã. O pai recebeu o filho com um abraço afetuoso e em instantes já estavam na rua, pai e filho foram à barbearia do bairro cortar o cabelo. O passeio seguinte foi uma ida ao mercado para fazer as compras da quinzena, e quando voltaram para casa estavam famintos, já era a hora do almoço. Uma lasanha congelada saiu do freezer diretamente para o micro-ondas e em poucos minutos já estava materializada em seus pratos à sua frente na mesa, era só o trabalho de comê-la com um copo grande de Coca-Cola e muito gelo. Uma delícia! Depois do almoço, enquanto o pai tirava um merecido cochilo, o filho queimava as suas calorias de frente do computador, antes do próximo passeio do dia que era uma ida ao shopping, seguida de uma sessão de cinema.
         Foi o garoto que fizera a escolha do filme, era justamente aquele que anunciava na TV a cada meia hora e prometia uma diversão para toda a família. Era a estória de um tsunami, a enorme onda oceânica vinha de surpresa e causava uma verdadeira bagunça numa cidade. Ele nunca vira um tsunami antes, assim como nem uma vaca ou cavalo em pessoa, mas sabia que o do filme era de mentirinha, mas estava muito curioso de ver os efeitos especiais hollywoodianos, provavelmente o tsunami seria a melhor parte! Em antecipação ao filme, em sua cabecinha de criança, ele teve fantasias de como seria uma catástrofe natural como aquela.
         E no final da tarde, pai e filho foram ao shopping e o garoto ganhou, como sempre acontecia em todas as suas visitas, um presente bacana que o pai fazia questão de lhe dar, embora não fosse seu aniversário, dia das crianças ou o Natal. A programação seguinte era o filme cujo ingresso, depois de ter sido comprado após uma espera numa longa fila, havia outra maior ainda os aguardando para entrar na sala de exibição. Não fazia mal, enquanto esperavam comeriam um balde de pipoca com um litro de Coca-Cola, afinal, criança em fase de crescimento precisa comer bastante!
         Quando o suplício de aguardar na fila terminou, pai e filho tiveram sorte de encontrar um lugar ao lado do outro na plateia e, em seguida as luzes se apagaram e a magia começou! O pai não tinha muita ideia do que se tratava o filme, mas se era liberado para crianças de doze anos, seu filho de dez, com certeza, era um menino esperto para entender a estória.
A estória do filme girava em torno de uma família que sobrevivera a um tsunami, disso o garoto já sabia. Entretanto a seu entusiasmo tornou-se um pesadelo meia hora depois de começado o filme. Como a própria propaganda dizia, um enorme tsunami veio e arrasou um país inteiro, e no centro daquela catástrofe estava uma típica família americana de férias nas praias de num país exótico. Muita dor, muitas mortes, muitas perdas. Os minutos seguintes foram de angustia e sofrimento da família, brutalmente separada pela tragédia e de sua procura para reencontrar-se em meio ao caos. Ao ver tanta miséria o garoto teve medo e arrependeu-se da infeliz escolha. Lamentou por aquela família que tinha um garoto de sua idade. Assistiu o filme emudecido com o choro preso na garganta. Depois daquela sessão de terror foi para casa assustado e teve pesadelos com tsunami a noite inteira. Quanta diversão para uma criança de apenas dez anos.
Na manhã seguinte, no domingo, pai e filho tomaram um delicioso café, uma pizza Portuguesa sem cebola. Em seguida, o pai arrumou a mochilinha do garoto e foi ele mesmo entregar o embrulho à mãe. Esta o aguardava com saudades, abraçou e beijou o filhote ternamente e lhe perguntou se teve um ótimo sábado. Ao que o menino respondeu com um aceno de cabeça e, em seguida, correu para o seu computador.
Evitando descrever a rotina de um domingo modorrento, o ponto alto do dia foi no final da tarde, quando a mãe tinha uma surpresa reservada para o filho. Foram ao teatro ver um concerto da orquestra sinfônica, algo que o menino jamais vira antes na vida, assim como uma vaca e um cavalo em pessoa. Era uma programação especial para adultos e crianças que nunca foram num concerto: as trilhas sonoras de filmes famosos!
Este era um concerto muito incomum porque ao invés de usarem os costumeiros trajes escuros, os quais para os homens são os smokings e para as mulheres os longos, os músicos fantasiaram-se como personagens de filmes famosos, até mesmo o maestro! O garoto ficou maravilhado com a surpresa e, enquanto os músicos aguardavam a entrada do regente, ele tentava adivinhar qual personagem cada fantasia se referia. E quando finalmente o maestro chegou, a primeira música que ele regeu foi aquela que todos conhecemos e que é a abertura de todos os filmes. O garoto se viu num sonho acordado, seus olhos brilhavam de encantamento.
Para cada música tocada o maestro tinha o cuidado de apresentá-la previamente ao público, algumas eram consagradas peças de música clássica e outras recriações inspiradas em músicas conhecidas. Alguns dos filmes o garoto nunca ouvira falar em sua vida, pois não eram do seu tempo, outros eram recentes e os seus preferidos. Entretanto, todas possuíam a mesma coisa incomum, segundo as próprias palavras do garoto, eram todas lindas! Nossa, ele nunca reparou como a música do E.T. fosse tão maravilhosa e a do Super-homem tão impressionante. A do Harry Potter ele não reconheceu a principio, mas depois a achou linda demais. Enquanto o garoto escutava encantado com tanta beleza, a música clássica ia cuidando de lavar de sua memória as lembranças ruins do filme do dia anterior, sim, porque a música clássica é uma das maiores invenções do ocidente e é a única expressão da criação humana capaz de nos transportar para algo próximo ao paraíso, caso este realmente existisse.
Ao final do concerto, o garoto estava feliz e o seu espirito em estado de contemplação. Anunciou decidido à mãe que queria ser um maestro quando crescesse, ao que ela lhe respondeu dizendo para ele aprender a tocar algum instrumento antes e lhe perguntou qual ele mais gostava e ele respondeu satisfeito e alegre: o violino!

Rio Vermelho, 19 de janeiro de 2013.


segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Pedido de Ano Novo

Não se sabe de onde ela vem ou para onde ela vai sob o sol inclemente das onze. Talvez poucos na rua tenham prestado atenção numa senhora passante, cuja idade bem poderia ser igual à de nossas mães ou avós. O fato é que ela é quase invisível em meio à paisagem urbana indiferente aos miseráveis e solitários. É inquietante ver uma idosa daquela idade exposta ao rigor do calor de verão.
         Da janela de onde a observo, também posso contemplar maravilhado as ondas do mar quebrando sobre as pedras e jogando espuma para o alto, ao lado da igreja de Santana, no Rio Vermelho, sob o sol infernal deste final de dezembro. Protegido pelo conforto do ar condicionado, sei que faz muito calor lá fora e não chove há meses, vejo a grama da praça logo em frente queimada e quase evaporando. O céu está límpido de causar aflição e com o ano novo quase batendo à porta, não há previsão de que cairá uma só gota de água para amainar a alta temperatura. É mais um ao que se vai, e quem dera chovesse um pouco para lavar a cidade do ano que termina e para receber o novo que logo logo se inicia.
         Mas a senhora a que me refiro, todos os dias passa em frente a esta janela. Trajando um vestido de cor desbotada e surrado pelo tempo, empurra um carrinho de supermercado sobre o asfalto escaldante, mas que não leva compras e nem alimentos para fazer o almoço, só bugigangas que ela vai coletando pelo caminho e adicionando ao seu rico tesouro. Vai apressada como se estivesse atrasada para chegar ao seu destino, onde não se sabe onde fica. Curiosamente, ela não está desacompanhada em sua solitária jornada. Logo à sua retaguarda, segue um cão mal tratado de pelo ralo cor de ferrugem que bem poderia ser igualmente invisível não fosse por chamar a atenção pela falta de uma pata traseira. Vai mancando logo atrás de sua dona tentando lhe acompanhar o passo apressado. Contudo, ela não olha para trás, é como se ignorasse a existência do bicho. Talvez este nem seja o seu cachorro, eles apenas se cruzaram certo dia e ela lhe fez um agrado, e como fosse raro este receber carinhos, por isso, elegeu a velha como sua dona, seguindo-a fielmente sob o sol implacável, apoiando-se nas três patas que lhe restam, em busca de mais um carinho.
         Eu só notei a existência da velha na terceira vez que a vi. Talvez não nem tivesse reparado nela se não houvesse atrás de si o cachorro que manca, foi a dupla inusitada que me capitou a atenção. Quem haveria de supor que uma velha tivesse tal fiel guardião.
         Eu não sou o tipo de pessoa que faz pedidos ou lista de mudanças para o ano novo, mas certamente, se fosse fazê-lo, pediria que aos idosos fosse-lhes dada uma vida mais digna e de reconhecimento pelo o que eles já representaram em sua juventude.
         Feliz 2013 a todos vocês, a quem dediquei com prazer o meu tempo e carinho para lhes escrever ao longo do ano. Desejo a todos vocês e suas famílias um ano de alegrias, realizações e paz no coração.

         Rio Vermelho, 31 de dezembro de 2012.

domingo, 25 de novembro de 2012

O príncipe da mamãe.*

Houve um tempo, não muito distante, em que o professor era tratado respeitosamente por seus discípulos por “senhor” – ou por “senhora” –, e acatávamos em silêncio a sábia reprimenda, estava no seu direito como educador, pois fazia parte de sua missão moldar a nossa formação. Não havia coisas como detector de metais no portão da escola e nem catracas que liberavam a nossa entrada mediante a verificação, através de um cartão de plástico com um chip, se a mensalidade já tinha sido depositada na conta bancária do dono do estabelecimento. Educação, então, era uma vocação, e não um comércio praticado por um dono de colégio semianalfabeto.

A diretora da escola onde estudei era uma espécie de santa viva e nascera para educar. Seu nome era majestoso como o de uma rainha, Maria Helena Neves da Rocha. Guardava na memória – não a do computador – o nome e sobrenome de seus quase dois mil alunos, assim como os de seus pais, e fazia ela mesma questão de entregar-nos pessoalmente os boletins, indo de sala em sala. Quando as notas eram ótimas, ela nos parabenizava pelo esforço, mas quando estas não eram lá aquelas maravilhas, não tinha nenhum pudor em dizer “suas notas estão medíocres, estude mais da próxima vez!” Ouvi isto uma única vez e quase morri de vergonha, nunca mais deixei que isto acontecesse. Dona Maria Helena era por todos nós respeitada e jamais elevava o tom de sua voz ou nos fazia ameaças, sabia falar com doçura com os estudantes, e por isso a admirávamos. O pai – ou mãe – ao assinar o boletim escolar aborrecia-se ao ver as notas baixas e esfregava-o na cara do filho, “Tá bonito isso?” Aluno era tratado como aluno e ponto final.

         Hoje em dia, não existem mais alunos, são todos clientes, e, como tal, vale sempre aquela máxima que diz que “todo cliente sempre tem razão”. O pai, quando recebe, por e-mail, o boletim do menino com notas vergonhosas, imprime-o e vai até a escola para esfregá-lo na cara do coitado do professor como se fosse responsabilidade deste fazer o filho aprender, “Tá bonito isso?” Por estas e por outras que professor vive com os nervos à flor da pele, aplacando o estresse à custa de tranquilizantes que mal pode comprá-los. Nem político safado e ladrão é vítima de tanto abuso verbal e psicológico como um professor na sala de aula hoje em dia e, no entanto, há pais que não deixam de falar em se construir um mundo melhor para os filhos, quando estes mal sabem que jamais haverá um mundo melhor se eles não criarem e educarem os seus para serem cidadãos dignos de viver neste mundo.

         A mãe insatisfeita com as fracas notas do filho foi tomar satisfação com a coordenadora e a encontrou em sua sala apertada com uma mesinha apenas e duas cadeiras para os visitantes. As paredes eram decoradas com fotos de alunos fazendo atividades.

         — Eu sou a mãe do príncipe. – anunciou com ares de nobreza.

         — Não me lembro de nenhum aluno com este sobrenome... – respondeu a coordenadora estudando aquela figura que mais parecia ter saído de dentro da coluna social da revista do Yacht Clube.

         — Como? A senhora não sabe quem é o meu príncipe! Ele é um garoto formidável, todo mundo gosta dele.

         — E qual é o nome dele?

         — Bruno.

         — Ah!

         — Já sabe de quem estou falando?

         — Ainda não. De qual série?

         — Ora, do segundo ano.

         — Hum... E qual dos 59 Brunos do segundo ano a senhora está se referindo?

       — Ora, do Bruno Lima de Carvalho! Então, já sabe quem é agora? – perguntou impaciente.

         — Agora, claro que sei, sim! A senhora está se referindo à “Mãinhia”. – respondeu finalmente à coordenadora, lembrando-se do garoto acima do peso que vivia se empanturrando de batatas fritas de saquinho, balas e outras porcarias que ia deixando vestígios pelo caminho denunciando a sua passagem, e que era um pequeno mau caráter, mentiroso, cínico e dissimulado que sonhava um dia virar político, já tinha talento para tanto.

         — Mãinha? Mas que diabo de apelido horrível é este, porque vocês chamam o meu príncipe assim? – perguntou indignada.

         — É porque ele sempre diz coisas como “se eu tirar nota baixa no teste, mãinha vai me bater”, “se eu chegar assim em casa, mãinha vai me comer de porrada”, “se mãinha souber disso, ela vai me arrancar o couro.”

         — Ah, é? – perguntou, não mais parecendo tão nobre desta vez.

         A coordenadora a fitou em silêncio por alguns instantes como se estudasse aquela mulher sentada à sua frente e, em seguida, perguntou:

         — Eu estou curiosa, gostaria de entender melhor o seu Bruno. Diga-me, a senhora costuma dar surra no seu príncipe?

Rio vermelho, 29 de novembro de 2011.

*Estória me contada pelo amigo Gabriel Lopes Pontes.

sábado, 10 de novembro de 2012

Das desventuras de se ir ao concerto


Assistir um concerto de música clássica em Salvador, terra da música axé, requer concentração, obstinação e, sobretudo, nervos de aço. Uma tremenda contradição, considerando-se que concertos de música clássica deveriam ser eventos culturais de propriedades relaxantes que nos transportam para um mundo onírico de sensações auditivas. Digo isto com a experiência de quem não perde uma apresentação de nossa querida orquestra sinfônica, que completa 30 anos de existência no decorrente ano.

Ao escolher um assento para assistir o último concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia, um dos raros programas culturais noturnos para o qual me animo a deixar o conforto de meu lar, apliquei uma técnica desenvolvida por mim mesmo, baseada em minhas desafortunadas experiências. É um evento de poltrona livre, isto é, os assentos não são demarcados, é preciso saber escolhê-los com sabedoria.

         Nunca me sento muito próximo a velhinhas. Uma só velhinha, é um ser inofensivo, um doce de pessoa como todas as velhinhas geralmente o são. Entretanto, um bando delas, sentadas lado a lado na fila logo à frente, à atrás ou ao lado, pode ser um pesadelo. Todos os seus pensamentos e emoções precisam ser verbalizados durante o espetáculo e, nesta idade, senhoras idosas desenvolvem o tom de voz dos contraltos, de modo que, mesmo sussurrando, elas são perfeitamente audíveis. “Ele teve ter menos que quarenta.”, cochichou, certa vez, uma para a coleguinha ao lado, em referência à idade de nosso jovem maestro. Outra disse: “Agora vai tocar o violino.” E, como num passe de mágica, realmente os violinos começaram a tocar harmoniosamente. Logo atrás de mim, uma delas sabia a música de cor e resolveu solfejá-la como se estivesse no banho. Outra tinha consigo uma dessas bolsinhas de mão que fazem um click toda vez que são abertas ou fechadas. Repetidas vezes, ela abria e fechava a sua bolsinha para tirar e colocar de volta uma latinha de pastilhas que fazia questão de chacoalhá-la antes de abri-la.  Portanto, evitem sentar-se muito próximo a estas senhoras.

         Indivíduos muito afeiçoados a seus celulares também devem ser evitados. Fique atento àqueles que antes de começar o concerto estão muito concentrados em seus brinquedinhos ao invés de estarem lendo o programa do concerto, por exemplo. Isto pode significar que eles não estão emocionalmente preparados para se separar de seus aparelhos por algum momento durante a sessão, e se a luz da tela o incomodar cada vez que o celular é verificado na angústia da espera por aquela mensagem muito importante, ou para saber se alguém telefonou, é melhor sentar-se bem longe destes cidadãos, pois é aporrinhação na certa!

         Crianças são geralmente pequenos seres chatos e inquietos por natureza, e que deveriam ficar em casa toda vez que vou ao concerto. Entretanto, há pais que entendem que elas devem ter um pouco de cultura e por isso as arrastam para um concerto de música clássica cuja programação tem duração de mais de duas horas, pobre coitadinhos. Ora, se para um adulto já não é tarefa fácil ficar duas horas sentados comportadamente, quem dirá para uma criança agitada. Alie-se a isto, o fato de a mãe ser uma neurótica e mandona que quer dominar a fera durante o espetáculo. Deu para ter uma ideia, né? Evito sentar próximo a pequerruchos, só de minhas lindas sobrinhas, quando as levo, pois estas são uns anjinhos. Neste concerto em particular, eu havia escolhido um assento no primeiro setor a poucas filas do palco, mas fui expulso de lá por um enxame de crianças que chegou inesperadamente não se sabe de onde. Eram alunos de uma escolinha indo ao seu primeiro concerto, que maravilha, meu coração palpitou.

         Se houver uma moça bonita e desacompanhada, certamente sentarei ao seu lado para lhe impressionar com a minha erudição – ou com a falta dela – durante os breves intervalos. E foi justamente isto que fiz, depois de sentar em quatro lugares diferentes, seguindo aquela minha técnica, antes de começar o espetáculo. Sentei-me finalmente na ponta de uma fila ao lado de uma bela e jovem morena.

         Cumprimentei-a com um largo sorriso ao sentar-me ao seu lado, ao que ela me correspondeu mostrando-me os seus perfeitos dentes. “O programa de hoje está ótimo.”, disse-lhe mostrando-lhe o programa daquela noite, percebi que ela não possuía um. “Nunca vim num concerto antes, é a minha primeira vez.”, disse ela humildemente, o que só a fez parecer mais bela. “Você vai gostar, é só entregar-se à musica.”, tranquilizei-a. “O concerto já começa.”, disse-lhe. Em seguida, os músicos estraram no palco ocupando os seus lugares e todos aplaudimos, como é de costume. Logo depois, veio o maestro, empertigado, novos aplausos e teve início o concerto, quando ele agitou a batuta no ar.

         Mal o concerto começara e a bela mocinha transformou-se numa bruxa, ao sacar de sua bolsa o seu Samsung Galaxy, cuja tela brilhava feito um farol de caminhão. Enviou um texto de mensagem que não demorou a ser respondido. Mais um instante, e lá se foi ela novamente enviando outra mensagem e recebendo a replica. Olhei em volta, a casa estava lotada e eu preso naquela armadilha. As trocas de mensagens não paravam, a conversa deveria estar mais interessante que o concerto. Lá pelas tantas, ela aproximou-se e perguntou sussurrando em meu ouvido se o concerto ainda demoraria muito, ao que respondi que não havia hora certa para acabar e que a palavra concerto derivava da expressão latina que queria dizer “não acaba nunca”, e que se ela tinha algum compromisso, melhor que se apresasse ou, do contrário, chegaria atrasada. Jamais se sente ao lado de uma mulher com cara de anjinho, nunca se sabe que modelo de aparelho celular ela carrega na bolsa!

Rio Vermelho, 8 de novembro de 2012.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Preguiça


Ao aposentar-se depois de 35 anos de serviço público, prestados no Departamento de Assuntos Fiscais do Município, Josué jogou fora o terno cansado com o qual costumava ir todos os dias para a repartição e meteu-se numa bermuda surrada, camisa de meia e um par de chinelos velhos e confortáveis.  “Pronto, este vai ser o meu uniforme de agora em diante.”, disse com júbilo. Finalmente ele realizava o seu grande sonho de não trabalhar nunca mais.
            Quem não ficou muito satisfeita com aquela novidade foi dona Etelvina, sua severa e trabalhadora esposa, dona de casa exemplar, que não estava acostumada a ter o marido em casa o dia inteiro, exceto nos finais-de-semana e feriados. Ela se perguntava com o que o marido ia se ocupar de agora em diante. Tudo o que ela menos desejava no mundo era ter um homem desocupado pela casa lhe aporrinhando a paciência. “Meu Pai, o que é que esse homem vai ficar fazendo dentro de casa o dia inteiro, de agora em diante?”, ela se perguntava aflita e benzendo-se.
            Mas Josué já tinha muito bem em mente como pretendia preencher o seu precioso e ocioso tempo pelo resto da vida. Alugou um serviço de TV a cabo com o qual planejava passar o dia deitado no sofá da sala vendo filmes e seriados, acompanhado de uma garrafa após outra de cerveja geladinha. A vida não podia ser mais perfeita!
            Tão logo a TV foi instalada, ele começou pondo em prática o seu brilhante plano. Entretanto, ele parecia determinado a levá-lo muito a sério, pois o mundo bem poderia acabar à sua volta, que ele não moveria um único dedo sequer para salvá-lo, a menos que lhe levassem junto a TV e a cerveja ou o sofá. Sua rotina diária era um verdadeiro martírio, ele acordava cedo com o único objetivo de ter mais tempo para ficar sem fazer nada. Depois do café, ele lia a sessão inteira de esportes do jornal enquanto tomava o banho de sol sentado na cadeira da varanda, em seguida, pulava para o sofá para começar a sua maratona em frente à TV. E quando o sino da igreja do bairro dava a badalada das dez horas, ele abria religiosamente a sua primeira cerveja do dia e só fazia um intervalo para almoçar, seguido do cochilo em sua própria cama até as quatro da tarde. Depois do merecido descanso, ele voltava para frente da TV, para assistir a sessão da tarde e depois enveredava pela noite a dentro. Felizmente ele também cultivava o mesmo gosto de dona Etelvina pelas novelas, de modo que ele não se incomodava com que ela as assistisse sentada no sofá ao seu lado.
            Dona Etelvina dava um duro dentro de casa, varrendo, limpando, lavando, passando e cozinhando e ainda por cima fazendo a feira da semana e o supermercado, mas o Josué olhava aquilo tudo com um olhar de paisagem sem ao menos se oferecer para ir ali no armazém comprar tempero, que é o que se espera de um marido aposentado. Ele não se oferecia para ajudar em coisa alguma na casa, era como se ele houvesse jogado o seu senso de solidariedade no lixo juntamente com o seu velho terno de ir para o trabalho. Mesmo quando ela se aventurava a pedir-lhe um favor, ele sempre dava a mesma resposta “Depois eu faço.” O que inequivocamente significava o mesmo que dizer “não conte comigo.” Claro que dona Etelvina ficava furiosa com a falta de cooperação de Josué, “mas que homem inútil”, ela dizia para si mesma benzendo-se. “Meu filho, você deve ter alguma doença, pois eu nunca vi ninguém tão preguiçoso como você.”, ela sempre repetia todos os dias, ao que ele fazia uma expressão de desdém sem contestá-la.
Certo dia, não tolerando mais a preguiça do marido, dona Etelvina mandou-o ir se consultar com um médico para que este descobrisse o que havia de errado com o ele. Sob protestos, Josué acatou à ordem e foi ver o médico, embora tivesse certeza de que nada de errado havia com ele. Então, depois que o médico o examinou minuciosamente, ele concluiu o seu diagnóstico.
— Bem, Sr. Josué, acho que já descobrir qual o seu problema. – disse o médico com uma expressão grave.
— Pode dizer, doutor. – disse Josué, não demonstrando qualquer preocupação.
— O senhor tem preguiça! – informou o médico.
— Ah, sim! Mas o doutor poderia me dizer qual o nome científico para eu informar à minha esposa?

Rio Vermelho, 22 de outubro de 2012.
           

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Revelação de Um Sedutor Barato


Era o tipo de homem desejado pela maioria das mulheres. E a maioria das mulheres era o tipo desejado por ele, cuja disposição para conquistá-las era quase uma obsessão.  Entretanto, elas não lhe passavam de simples diversão e de uma forma de satisfação de seu próprio ego. Seduzia uma após outra com a mesma facilidade com que se colhem frutas no pomar, que depois de chupadas, descarta-se o bagaço.

            João dos Prazeres tomou o nome de batismo como um estilo de vida. João, o mais elementar dos nomes, de fácil assimilação e aceitação, muito popular. Prazer(es), um bem supremo ao qual dedicava a vida à sua satisfação pessoal. Era como se sua existência tivesse na diversão o seu único propósito, e se divertir, em seu limitado vocabulário, significava seduzir belas mulheres, todas elas, se possível. Não havia noite em que ele não pusesse os pés fora de casa para “se divertir”, era como ele se referia à sua prática conquistadora.

            Suas táticas de sedução eram conhecidas de qualquer conquistador barato, e de muitas desafortunadas mulheres, infelizmente. Depois de aproximar-se da vítima escolhida, ele a envolvia com uma manjada conversa fiada, os mesmos elogios fáceis à sua beleza e ao seu sorriso. Não há coração feminino que não se renda à lisonja de um homem atraente e conquistador e, por tanto, não demorava muito até que ela, imprudentemente, cedesse ao seu encanto, tornando-se mais uma em sua longa e bem sucedida lista.

No decorrer da noite, então, ele não se dava por satisfeito enquanto não desfrutasse dos favores da moça, porque ele era muito insistente neste aspecto, e usava de todas as suas artimanhas para alcançar este que era o seu objetivo principal. A noitada, então, tornava-se num jogo sensual de lobo perseguindo a lebre, até que esta se desse por vencida e capitulasse. Entretanto, não havia dúvidas de que fosse exatamente este o plano dela, também, desde o início, apesar de ela seguir fielmente os conselhos de sua querida mãe, que julgava ser o mais apropriado para uma moça de família resistir às investidas do homem, nem que fosse só um pouquinho, para que ele não tivesse uma ideia errada a seu respeito.

João dos Prazeres surpreendia as mulheres como amante, pois não apenas ele era muito habilidoso no assunto, como as deixava apaixonadas. Entretanto, ele considerava tedioso sair com a mesma mulher mais de uma vez, se enjoava dela com a mesma rapidez com que se interessava. Depois da noitada, ele simplesmente sumia do mapa, não atendia os insistentes telefonemas da moça, ignorava-a e ponto final. Como era de se presumir, ela sofria por ser abandonada, mergulhando num mar de mágoa, amargura e arrependimento. Será que, agindo assim, ele realmente gostava das mulheres, ou apenas as punia por serem mulheres?

Entretanto, certa vez o destino lhe pregou uma peça, confrontando-o com a sua dura realidade, fazendo com que sua máscara caísse, revelando a si mesmo o seu verdadeiro ser. João dos Prazeres chegou ao mesmo bar o qual dava início as suas noitadas e ocupou o seu lugar favorito ao balcão. Ao seu lado, logo em seguida sentou-se José, um desconhecido, que o saldou com um brinde de cerveja. Aquele gesto amigável foi o suficiente para que os dois estranhos se pusessem a conversar como velhos amigos, pois não há nada como uma garrafa de cerveja e dois copos para celebrar a amizade entre dois homens que acabaram de se conhecer. José estava naquele bar pela primeira vez e tinha o mesmo propósito de João, conquistar uma mulher para se divertir. E não demorou muito para o álcool fazê-lo soltar a língua, contando a João inconfidências sobre a sua mais recente aventura amorosa. João ficou fascinando ao ouvir aquele relato, parecia ele mesmo agindo em uma de suas conquistas. Pediram mais uma cerveja e brindaram às mulheres, mas, desta vez, foi João quem contou ao novo amigo uma de suas aventuras. E assim os dois companheiros de divertiram preenchendo o vazio da noite com cervejas e histórias picantes.

A noite se passou sem João, entretanto, ter posto os olhos em uma única mulher se quer e, certamente, havia muitas delas para serem admiradas naquele lugar. No entanto, sua atenção foi arrebatada por aquele rapaz com quem acabara de fazer camaradagem, como se ele possuísse um magnetismo que João não pudesse resistir. João sentia-se estranhamente naquela situação, um desejo forte e inexplicável de atração por um homem que ele jamais experimentara algo semelhante antes em toda a sua vida. Ao ouvir José contar com prazer e riqueza de detalhes as suas aventuras sexuais, era como se ele estivesse ouvindo a si mesmo ou admirando-se ao espelho. Os dois homens riram juntos do modo como ambos se divertiam com as mulheres e depois as desprezavam feito algo sem mais utilidade.

Na despedida, ao final da noite, um aperto firme de mão selou de vez a nova amizade, seguido de um forte e longo abraço que João deu em José, fazendo este se sentir incomodado. E, sem conseguir conter o impulso, João tentou beijar os lábios de José, ao que foi repelido por este com firmeza e repulsa. João, também, chocou-se, entretanto, consigo mesmo, porque aquele gesto foi impróprio de sua natureza, inédito de sua pessoa. Atordoado com o que acabara de acontecer, ele deixou o bar envergonhado, logo em seguida. No caminho para casa, João recriminava-se e, ao mesmo tempo, não conseguia fazer desaparecer José de seus mais íntimos pensamentos e fantasias. Desejos conflituosos lhe afluíam à cabeça como uma tempestade, confundindo-lhe os sentimentos. Para seu assombro, ele se descobriu desejando estar com aquele homem a noite inteira, ouvir mais uma vez a sua grave voz, sentir a rigidez de seu corpo, tão diferente da maciez feminina, e beijá-lo a noite inteira. João, então, desmoronou chocado com aquela descoberta a seu próprio respeito, sentiu-se no inferno. Deu meia volta e retornou ao bar onde estava antes, aproximou-se de José, que continuava ao balcão, e o atacou de assalto com os punhos cerrados e chutes enquanto gritava tomado de cólera “eu sou é macho!, eu sou é macho!, eu sou é macho!”

Rio Vermelho, 9 de outubro de 2012.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Feia de dar gosto.


Era feia como a necessidade. Mas ninguém jamais teve a ousadia de dizer-lhe pessoalmente, ou anonimamente por carta. E nem mesmo ela dispunha daquela qualidade invejável que as pessoas de bom senso costumam chamar de autocrítica, não pelo menos em quantidade o suficiente para ela se dar conta de sua inominável feiura. Entretanto, ela tinha coragem de sair de casa à luz do dia, e ia para o emprego num salão de beleza.

         Elindinalva não era nem um tiquinho bonita e nem mesmo o seu ridículo nome ajudava a melhorar as coisas, parecia também uma incoerência que uma pessoa tão desprovida de tais atributos físicos trabalhasse num lugar onde era um templo de veneração à beleza física. Mas tal concessão se explicava por sua inequívoca habilidade: ela tingia cabelos como ninguém. Não havia outra pessoa que soubesse tingi-los igual a ela e ainda assim fazê-los parecer tão naturais, não era por menos que ela era considerada o Michelangelo das tinturas, um verdadeiro gênio no assunto. A morena que entrasse pela porta do salão e sentasse em sua cadeira era transformada numa loura tão autêntica quanto a verdadeira, sendo uma façanha fazer uma distinção entre a de verdade e a sua criação.

         Mas por causa de seu infortúnio, Elindinalva nunca teve um único namorado, jamais foi beijada, nunca houve um homem, nem mesmo um desses que proclamam com ares de superioridade que beleza não é tudo, capaz de cortejá-la. No caso de Elindinalva, nem mesmo o mais benevolente dos corações masculinos era capaz de um ato de heroísmo. Ela era feia mesmo e ponto final. Sendo assim, o único amor que ela conhecia era o de pai e de mãe, e até estes se perguntavam como puderam ter trazido ao mundo uma criatura tão feia. Diante desses fatos, não era surpresa alguma que ao completar trinta anos Elindinalva ainda fosse moça.

         No entanto, contrariamente aos fatos, Elindinalva era uma mulher alegre e cheia de si, bem humorada e capaz de fazer piada de sua condição. O que lhe faltava de atributos físicos sobrava-lhe em simpatia e modos cativantes. Ela era capaz de encantar as pessoas e fazê-las gostar dela, em termo de amizade, para ser específico.

         Certo dia, um fato inesperado transformou a vida de Elindinalva para sempre. Ao atravessar a rua indo para o trabalho, teve o infortúnio de cruzar em seu caminho uma dessas dondocas cuja vida não poderia ser menos vazia se não houvesse os celulares e uma conversa frívola que lhe ocupasse o tempo enquanto dirigisse. O carro ia a alta velocidade e distraída não percebeu o sinal vermelho e nem a mulher que atravessava solitária à sua frente. Do encontrão, resultou em dor e sofrimento para a pobre Elindinalva que foi arremessada longe enquanto a outra, sem querer interromper o seu bate-papo e se atrasar para o horário no salão, seguiu em frente sem se dar ao trabalho de olhar para trás.

Mas por um milagre, Elindinalva sobreviveu ao trágico acidente, apesar dos machucados. Além das costumeiras fraturas e pele lacerada, seu rosto foi desfigurado, pelo mesmo foi isto que concluiu o paramédico ao deparar-se com aquela feiura, aquilo só podia ter sido causado pelo acidente. Para concertar aquele estrago, foi chamado um brilhante e vaidoso cirurgião plástico, ele mesmo tão belo como uma criação divina, que resolveu exibir-se recriando o rosto de Elindinalva à perfeição.

Quando ao cabo de uns dias tiraram-lhe as ataduras e colocam à sua frente um espelho, Elindinalva deu um grito de pavor ao deparar-se com aquela criatura cujas feições eram iguais à da boneca Barbie, ela não se reconhecia, estava totalmente desfigurada, quem era aquela coisa horrorosa no espelho? Depois de chorar convulsivamente e deixar-se sedar pelas enfermeiras condoídas com o seu sofrimento, ela dormiu feito um anjo. Quando despertou daquele sono induzido, descobriu que não fora tudo um pesadelo como imaginara. Mandou vir o exímio cirurgião e exigiu de volta o seu antigo rosto.

O habilidoso cirurgião aceitou o desafio e depois de uma demorada e delicada operação, protagonizou o milagre de devolver Elindinalva à sua feiura habitual. Entretanto, o tirar as ataduras, dias depois, o médico, acostumado a ter sob a mira de seu bisturi as mais belas e vaidosas mulheres, impressionou-se com a feiura natural de Elindinalva. Considerou-a algo sublime, mas que aos olhos do leigo e do acostumado ao gosto popular era invisível, uma beleza extraordinária, uma verdadeira Vênus da modernidade ao contrário. Elindinalva foi-se embora para casa satisfeita, levando consigo a sua feiura e deixando o cirurgião plástico com o seu rosto guardado na memória e sinceramente encantado.

Semanas depois, já completamente curada e de volta ao seu posto no salão de beleza, não sem tempo, pois a sua presença se fazia mister, uma vez que o prazo de validade de muitas louras, ruivas e acajus havia se expirado transformando a vida daquelas madames numa polvorosa crise de identidade. Em meio às tinturas e apliques, Elindinalva teve o seu serviço interrompido para receber um lindo buquê de rosas vermelhas com um convite do apaixonado cirurgião para um encontro.

Rio Vermelho, 10 de setembro de 2012.

         

domingo, 2 de setembro de 2012

NÃO FOI AINDA A SUA VEZ OU A ESTÓRIA DO MÉDICO QUE FICOU ALIVIADO.


Ao apalpar-se certa manhã durante o banho, sentiu um caroço. Podia ser apenas um fibroma sem importância, contemporizou; ou coisa bem pior... Teve um calafrio. Médico experiente que sempre foi, um caroço naquela região do corpo não devia ser negligenciado. Ficou angustiado ruminando aquela insensatez ao longo do dia e resolveu procurar a ajuda de um especialista imediatamente.

O seu colega só cobrou metade da consulta, ainda assim o outro achou caro, fazer o quê. Depois de algumas apalpadelas, o caríssimo especialista fez uma expressão grave, pediu um exame de imagem igualmente caro como a sua consulta, coisa de última geração. Aconselhou o paciente a não dirigir automóvel, operar máquinas perigosas, não praticar esportes e abster-se de luxúria até terem o resultado do exame.

O médico largou o carro no estacionamento e voltou de taxi para casa, no caminho, teve vontade de espirrar e, desesperado, temeu por consequências trágicas, não lembrava de o especialista ter restrito esternutações. Chegou ao lar sorumbático, todo borocoxô. Pensou com sigo mesmo, “tô fudido”.

De sua casa, marcou o tal exame. Só daqui a três dias, lhe disseram, não dava para ser nem em um ou em dois dias antes, e o pagamento era feito em espécie e sem conversa mole, que médico pagava o mesmo que os outros pacientes, ninguém tinha privilégios naquele lugar, fazer o quê.

Aquela semana foi a mais longa de toda sua vida, três dias pareceram trinta. Preocupado, o médico não foi trabalhar. Precisava organizar a sua vida antes que fosse tarde demais. Fez as contas de tudo quanto devia e separou o dinheiro, passou algumas procurações para a esposa e escreveu um sucinto testamento de próprio punho. E tanto ainda por fazer, lamentou-se. Sentiu-se impotente e injustiçado ante a grave moléstia; logo ele, um brilhante médico, considerado por todos um gênio, um médico desses de ressuscitar defunto de três dias. Como a sua vida lhe pareceu frágil, o homem que se achava um Deus agora se sentia como um reles mortal. Percebeu como era difícil e doloroso ser o paciente, agora que o seu destino estava nas mãos de outro jaleco branco, um homem insensível e de olhar duro.

Naqueles três longos dias que se sucederam, e que lhe pareceram uma eternidade, lembrou que já era tarde demais para ir ao Nepal como sempre sonhara. E nem nunca lera além do prefácio de “A Montanha Mágica” ou escrevera o seu próprio livro policial usando aquela ideia genial que certo dia teve. E a sua longa lista de mulheres com quem sonhava transar algum dia, estava cancelada. Suspirou. Lamentou pelos poemas de Drummond e Pessoa que nunca leu para a amada esposa, mãe de seus filhos pequenos, os mesmos filhos que não veria crescer, embora ele raramente os visse, pois ele vivia para o trabalho, para dar a sua família uma vida confortável sem que lhe faltasse nada.

Na véspera do exame, ele foi ver a amante e despediu-se com uma tarde de pecados inconfessáveis, deu-lhe de presente uma linda e cara joia que ela poderia vender, numa hora de aperto. Na manhã seguinte, no dia fatídico, amou a esposa antes do café da manhã como há muito não o fazia, fazendo-a até apaixonar-se de novo pelo marido e ponderar livrar-se do jovem amante. Beijou os pequeninos e foi enfrentar a ressonância magnética.

Ele que prescreveu tantas vezes a seus pacientes aquele exame, nunca imaginou como o mesmo fosse tão incômodo. Foi entupido de contraste pelas atendentes e esperou tantas horas quanto foi preciso até ser metido numa fina túnica e daí seguiu para dentro de um tubo que temeu ser o prelúdio de sua tumba. Enquanto era mantido imóvel dentro daquela terrível cápsula que examinava cada uma de suas células, apelou para a salvação divina ensaiando um mal engendrado “Pai Nosso que estás no céu”, mas terminava sempre se enrolando em algum lugar entre o “vem a nós o vosso reino” e o “pão nosso de cada dia”. Terminou por rezar o Hino do Bahia, cuja lembrança era mais vívida em sua memória por ser um devoto fervoroso e, com o qual esperava obter, de qualquer jeito, a mesma graça divina.

Quando o exame ficou pronto, o doutor correu levando-o para o seu caríssimo especialista cujo documento leu com uma expressão de constipação crônica. E sem dizer mais nada, o especialista colocou 16 gotas de uma mágica porção em meio copo de água que serviu ao seu paciente que o bebeu feito um cordeirinho, dando por encerrada a consulta. O famoso médico deixou o consultório com um sorriso de felicidade e, caminhando lépido em direção ao automóvel, já no pátio do estacionamento, soltou um sonoro e vigoroso peido que o fez sentir-se aliviado. Foi o efeito da porção mágica, tudo não passou de gases. Estava curado!

Rio Vermelho, 2 de setembro de 2012.