sábado, 9 de janeiro de 2016

Uma Indireta

Era a hora do almoço. E a moça, pedindo licença educadamente, sentou-se à mesa trazendo uma bandeja. O restaurante comercial ainda estava vazio, por isso ela bem poderia ter escolhido qualquer uma das mesas desocupadas disponíveis, mas ela preferiu justamente aquela em que também sentava-se um belo rapaz. Este estava tão entretido com a sua comida que mal percebeu quando ela sentou-se na cadeira à sua frente.

Com uma mão, ela brincava com a comida com a ajuda do garfo e com a outra conversava ao aparelho celular. “Acho que não vou a lugar algum, – ela dizia com uma expressão de desapontamento. – não tenho companhia para ir, eu simplesmente não tenho com quem ir. Eu queria tanto ir ao show na Praça Cairú, mas não consigo encontrar nenhuma companhia. ...Nãooo, não querida, eu não consegui encontrar um homem para ir comigo, todos viajaram este final de ano.”

Conversas ao celular em locais públicos são como se confessar ao padre em transmissão em cadeia nacional, deveria ser um momento privado, mas todo mundo participa quer queira ou não. E pelo tom de voz da moça, ela parecia não ter a menor intenção de fazer daquele seu infortúnio um segredo guardado a sete chaves. O rapaz não pôde deixar de ouvir aquela história e deu uma olhada na moça pelo canto do olho, rápida o bastante para não ser percebida. A moça repetiu mais uma vez que não tinha companhia masculina para a virada do ano e lamentava ter de ficar em casa sozinha.

— Mas que coisa, – disse o rapaz ao perceber que a conversa terminou. — uma mulher tão bonita como você, da sua qualidade, deveria era estar esnobando convites.

— Pois, é. – ela disse fazendo ares de vítima.

— Se eu não fosse um homem casado e fiel à minha mulher, eu ia passar esta virada do ano com você e a gente ia se divertir muito!

— Nossa, fiquei até curiosa. – ela disse com um brilho de esperança nos olhos.

Mas o rapaz se levantou da mesa, pois já tinha terminado de comer. Desejou boa sorte à moça com um sorriso encorajador que a fez se derreter e foi embora. Ela, entretanto, não esmoreceu, estava decidida a virar o ano nos braços de um homem, qualquer um que valesse a pena. A sorte parecia que estava ao seu lado, entretanto. Mal o rapaz foi embora, outro ocupou o seu lugar cumprimentando-a educadamente.

A moça, que não desgrudava do aparelho celular, conversava novamente. “Acho que não vou a lugar algum, – ela dizia com uma expressão de desapontamento. – não tenho companhia para ir, eu simplesmente não tenho com quem ir. Eu queria tanto ir ao show na Praça Cairú, mas não consigo encontrar nenhuma companhia. ...Nãooo, não querida, eu não consegui encontrar um homem para ir comigo, todos viajaram este final de ano.”

O rapaz à sua frente tirou os olhos de seu prato e observou atentamente aquela bela moça que parecia largada no mundo. Ouviu cada palavra daquela conversa e, ao final, ele se dirigiu a ela:

— Sabe, eu trabalho na assistência técnica da marca deste seu celular e nunca tinha visto antes alguém conseguir conversar com o aparelho desligado. – ele disse com um sorriso maroto que pegou a moça de surpresa. – Mas eu aceito o seu convite para passarmos a virada de ano juntos!


Rio Vermelho, 6 de janeiro de 2016.




sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O Desejo de Ano Novo

Carmela tinha um importante compromisso no final daquela tarde e isto explicava a sua inquietação à medida que a hora se aproximava. Depois do trabalho, ela tinha uma hora marcada com mãe Joelma, cujas habilidades para ler os búzios, as cartas e o tarô, tirar mau-olhado, trazer a pessoa amada, trazer fortuna, resolver brigas de família ou no trabalho e muitas outras maravilhas eram anunciadas pelos postes e muros do bairro. Como fazia sempre às vésperas do ano novo, a caixa da Farmácia Pague-Bem queria ouvir da mãe-de-santo o que o futuro lhe reservava.

Mãe Joelma, que tinha uma memória de elefante, não apenas lembrava-se de Carmela, como também do futuro que lhe enxergara no ano anterior. Por isso, ela tinha sempre o cuidado de não repetir a mesma “visão” ao mesmo cliente. Assim sendo, quando a caixa sentou-se à sua frente com ares de quem aguardava boas notícias, apesar das manchetes dos jornais pintarem uma visão sombria do novo ano que batia à porta, ela já tinha uma ideia do que lhe diria.

No ano anterior, Joelma previu que Carmela ia ter muita saúde e que ela ia conhecer o homem de seus sonhos. De fato, tirando a dengue que pegou e a bursite que apareceu no braço esquerdo, no item saúde, tudo foi perfeito em 2015. Quanto ao homem de seus sonhos, há três anos que ela sonhava com ele, mas este nunca se materializava em carne e osso. O único espécimen do sexo oposto que lhe causou – e ainda lhe causava – alguma emoção naquele ano foi um assaltante que, ao  lhe apontar a arma, levou-lhe o caríssimo smartphone. Todo santo mês, quando pagava mais uma prestação do aparelho que nem mais era seu, não tinha jeito, lembrava-se do miserável com fúria no coração.

Naquele dia, Joelma foi mais cautelosa, disse à moça que ela continuaria trabalhando na farmácia, apesar do crescente aumento do desemprego no país e que ela dedicaria aquele ano para o seu crescimento interior. Não falou de homem dos sonhos algum desta vez, no entanto. Carmela ficou desapontada com aquela predição, ficaria mais contente em conhecer o homem de seus sonhos e dispensava de bom grado o crescimento interior. Pagou pela consulta e foi-se embora.

Antes de ir para casa, Carmela foi ao Shopping comprar um pijama, não que ela realmente precisasse de um. O motivo daquela despesa desnecessária era por uma razão maior: iria tentar uma simpatia que uma amiga lhe ensinara. Se dormisse todas as noites, a partir do primeiro dia do ano, com um pijama masculino, era garantido que arranjasse logo um homem.

Talvez o destino quisesse pregar uma pequena peça em Carmela ao conduzi-la para a única loja onde havia pijamas masculinos, mas que, para sua surpresa, só havia uma única peça disponível na prateleira. No instante em que ela pôs a mão no artigo, uma outra fez o mesmo rapidamente. Eu vi primeiro, o belo rapaz protestou. Eu só vou querer a parte de cima, ela disse. E eu só a de baixo, ele falou num tom de quem fechava um acordo pacificador. Bem, quem já viu filme assim, é capaz de imaginar o desfecho desta história.

Mal o ano começara e o sonho de Carmela se realizava graças a um pijama com o qual dividia com o homem de sua vida. E aquela história de crescimento interior que lhe disse mãe Joelma, foi uma “visão” mal interpretada pela mãe de santo ao ler os búzios, o que aconteceu realmente foi que o rapaz faturou Carmela logo de primeira e lhe fez um filho na virada do ano novo, foi este o seu crescimento interior!

Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2016.




quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Filhote

Numa certa ensolarada manhã de dezembro em que todos ainda dormiam aqui em casa, ao passear distraidamente pelo jardim, fui surpreendido com a presença de um pequeno pássaro pousado no chão próximo ao pé de framboesa. Habituado a vê-los empoleirados em galhos inatingíveis ou voando ligeiramente pelo espaço, achei aquela situação curiosa. Devo admitir que a única ave cujo conhecimento possuo algum domínio é a galinha e, assim mesmo, em seu estado assado ou ao molho pardo, que são as minhas especialidades. Por isso, eu não soube identificar se aquela seria um pardal ou um bem-te-vi. Observei aquele bichinho que se mantinha imóvel, apesar de minha presença ameaçadora, como se me ignorasse ou se fingisse de pedra ou toco de pau para não ser percebido pelo predador, pois é esta artimanha que lhe providencia a natureza para garantir-lhe a sobrevivência. Sua penugem era da cor de palha seca quando misturada ao pó da terra quando chove e estava eriçada, dando-lhe o aspecto de um novelo de pequenos e finos gravetos. Pobre criatura, deve estar doente, pensei sem saber como agir.

Alguém mais bem ilustrado aqui de casa deu uma olhada e descreveu-o como um filhote de sabiá que despencara do ninho e que provavelmente este ainda não dominava a arte de voar. Que situação daquele indefeso filhote, fiquei imaginando como eu poderia fazer por ele. Numa pequena vasilha coloquei água fresca que pus ao seu lado juntamente com um pedaço de banana, aquilo deveria ser de alguma ajuda.

Talvez a mãe daquele pequeno pássaro tivesse lhe orientado a não falar ou a aceitar coisas de estranhos e, por isso, ele ignorou a comida que lhe deixei. Vez por outra, ela própria, presumindo que fosse a mãe e não o pai ou qualquer outro parente mais próximo, vinha trazer-lhe alimento que colocava diretamente em seu bico. Até nisto a natureza é prodigiosa, ao prover os animais de amor por aqueles que ainda não são capazes de tomar conta de si mesmos. Fiquei maravilhado com a aula de ciências naturais.

Nós aqui de casa, que somos afeiçoados por animais, logo nos compadecemos por aquela pequena ave indefesa e vez por outra chegávamos até a janela para dar uma olhada, torcendo para que ela tivesse voltado para a segurança de seu ninho, escapado das garras de algum predador. Alguém viu um gavião rondando a vizinhança e se pôs de guarda com uma vassoura para afugentá-lo. E quando a escuridão da noite chegou escondendo-a de nossa guarda, temi por sua fragilidade ante as criaturas noturnas.

E bem cedo na manhã seguinte, quando o procurei no lugar onde esteve o dia todo, para minha tristeza, não o vi. E num ato contínuo, escrutinei com um pingo de esperança até o mais recôndito recanto do nosso jardim e me alegrei ao revê-la a poucos metros de onde estivera todo o tempo no dia anterior, na mesma posição de estátua, na mesma solidão, desta vez, ao lado do pé de lima. E o dia repetiu-se tal como no anterior, com as vindas e idas de sua mãe para lhe trazer alimento e a nossa constante vigia.

Foram cinco dias de aflição e expectativa e, em cada manhã, a mesma emoção de vê-lo firme resistindo ao tempo e à solidão. Quanto mais aguentaria aquela criaturinha, era uma dúvida que me intrigava. Estava claro que a sua volta ao ninho dependia da capacidade de voar que ela ainda não dominava, apesar de já possuir o equipamento necessário, asas e penas. Talvez fosse questão de poucos dias até que fizesse o seu primeiro voo solo até o ninho.

Finalmente, numa certa manhã, encontrei-a no mesmo lugar do dia anterior, inerte como uma pedra, pobrezinha. Foi poupada pelos predadores, mas não resistiu à espera para aprender a dar o seu primeiro voo da esperança. Foi enterrada junto com as folhas secas de nosso jardim.


Rio Vermelho, 24 de dezembro de 2015.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A Fruta-Pão

Das distantes reminiscências de minha infância, eu ainda me recordo de um frondoso pé de fruta-pão que existia no quintal da casa de um coleguinha da escola, meu vizinho. Eu não devia ter nem cinco anos e fiquei fascinado ao ver pela primeira vez na vida o fruto daquela árvore bonita que era redondo, verde e grande como uma bola de futebol, pendendo da árvore aos montes feito decoração natalina. Mais abismado ainda, eu fiquei quando a mamãe me contou que aquela coisa se chamava fruta-pão. Na pueril imaginação da criança que ainda estava descobrindo as coisas básicas do mundo, eu logo imaginei que o pão que vinha da padaria do Manolo saía de dentro daquela fruta. O encanto pela fruta, no entanto, se desvaneceu quando a mamãe colocou um pedaço cozido em minha boca. Fiz uma careta de nojo e nunca mais quis comer aquela coisa insipida e sem graça.

A caminho da padaria onde costumo fazer compras, vejo um pé de fruta-pão no quintal de um vizinho do bairro. Este tipo árvore, como os sapotizeiros, pés de cajá, ingá, graviola e fruta-do-conde, cederam a paisagem urbana aos tediosos prédios de apartamento. Observo com curiosidade aquela árvore carregada e me pergunto se o meu paladar teria amadurecido com o passar dos anos e que, se agora, eu colocasse um pedaço na boca, eu iria gostar e achar que aquilo era a maravilha que muitos diziam.

O vizinho vai dentro de casa e de lá traz uma bela fruta-pão no ponto. Agradeço a sua generosidade e penso em retribuir-lhe com as graúdas e adocicadas limas do meu jardim, cuja árvore já está carregada e promete uma safra recorde lá pelo mês de março. Já estamos em inicio de dezembro e como nos dias de hoje o tempo corre à velocidade 3G, não tardarei a retribuir-lhe a gentileza. Ponho alegremente a minha fruta-pão debaixo do braço e sigo para a padaria.

A sorridente senhora que me atende sempre ao balcão, ao notar a minha fruta-pão comenta enquanto os olhos buscam uma doce recordação em sua memória que nunca mais tinha comido uma e que elas eram tão gostosas. Minha boca se encheu de esperanças.

E quando voltei em casa, dividi a fruta ao meio com a ajuda de uma faca e retornei à padaria o mais rápido que pude. E a melhor parte desta história toda, foi a sincera expressão de surpresa e contentamento que fez a balconista ao receber o pedaço de fruta-pão de minhas mãos. Como gestos tão simples são capazes de tornar feliz o dia de uma pessoa e, também, em algo memorável. Eu também ganhei o meu dia.

Quando voltei para casa, a fruta-pão já estava cozida e fumegante à minha espera na mesa do café, que aqui em casa é servido às cinco horas da tarde e já é o nosso jantar. Minha boca se encheu de água só de imaginar como seria comê-la com o café fresco e quente. Pus na boca um pedaço besuntado com manteiga que se derreteu e foi como se eu tivesse voltado à minha tenra infância. Descobri que o meu paladar em nada tinha mudado, nunca mais voltarei a comer uma fruta-pão em minha vida, mas que frutinha mais em graça!


Rio Vermelho, 1 de dezembro de 2015.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Duro Dia de Trabalho de Uma Funcionária Pú-blica

Mal se passou meia hora desde que pôs na cadeira o traseiro e os olhos já procuravam o grande relógio de parede à sua frente. Ao verificar que o dia estava apenas começando, contraiu os lábios com uma expressão de desânimo, só de imaginar as longas horas que ainda lhe restavam. Num sinal de desespero, fez uma prece para que o dia passasse logo, ao olhar indignada para os dois ponteiros que pareciam estar congelados.

Ana Rita orgulhava-se de ser uma funcionária pública e de trabalhar num obsoleto departamento onde nada acontecia, ou melhor, onde não havia quase nada o que fazer. Era o emprego dos sonhos, um salário que não era de se jogar fora, estabilidade no emprego, aposentadoria integral garantida e quase nenhum serviço. Naquela repartição de nome comprido e pomposo, abundava de funcionários que mal davam conta do escasso trabalho. Então, só lhe restava bater o ponto na hora certa ao chegar e arrumar-se meia hora antes de ir embora. Aquelas eram tarefas que ela fazia a satisfação de dever cumprido e ao mesmo tempo com uma expressão de martírio.

Para ajudar a passar o tempo, a cada meia hora, ela levantava-se de sua mesa e ia até o final do corredor, onde um bebedouro lhe aguardava. Servia-se com um copo como se estivesse morrendo de sede enquanto comentava com outro colega que beber bastante água fazia muito bem aos rins, embora aquela valiosa informação científica tivesse sido obtida da sessão de curiosidades de uma revistinha de palavras cruzadas.

Enquanto o tempo se arrastava, ela pensava no noivo, organizava mentalmente a festa do casamento e fazia uma lista do enxoval e de tudo que precisariam comprar para montar o lar. Queria que tudo fosse novo em folha, dava azar começar um casamento com um fogão ou uma geladeira já usados, imagine pôr na sala um sofá que já tivesse um passado. Segundo as suas palavras, o noivo é que possuía um emprego de verdade, era auditor fiscal e com o que ganhava dava para comprar tudo novinho à prestação. Ele lhe daria a segurança que sempre sonhara e uma família feliz.

Em frente à sua mesa e de costas para ela, sentava-se outra funcionária. A posição das duas mesas costumava ser de frente para a outra, até o dia em que as duas colegas se desentenderam. Por causa de que mesmo? Elas nem mais se lembravam. Entretanto, o orgulho ferido de cada uma fez com que parassem de se falar e o assunto foi resolvido de maneira prática: a outra virou a sua mesa de frente para a parede e ficou de costas para ela.

No final da manhã, Ana Rita olhou para a sua mesa como se não a reconhecesse e viu com surpresa sobre esta uma pequena pilha de papéis. Era algum serviço que aguardava a sua atenção. Esta sua surpresa não foi causada pelo fato de não ter notado antes aqueles papéis, mas por estes ainda estarem ali desde a semana passada. Então, numa atitude diligente, aproximou a pilha para perto. Procurou pela caneta na gaveta da mesa e antes de começar a dar andamento ao trabalho, lembrou que precisava tomar um pouco de água para manter os rins saudáveis. Pôs a pilha de papéis de volta em seu antigo lugar. Era interessante como sempre que se punha a iniciar uma tarefa, sentia um pouco de sede ou vontade de ir ao banheiro para se desfazer daquela água toda que ingerira ao longo do dia.

Quando chegava a hora de ir embora ao final da tarde, ela já estava pronta há muito tempo. Registrava pontualmente a sua saída e ia encontrar o noivo que a aguardava no lugar de sempre. E quando ele lhe abraçava afetuosamente e lhe perguntava como fora o seu dia, ela, então, lhe lançava um olhar martirizado e respondia com a voz quase falhando que estava com dor de cabeça de tanto trabalhar e revirava os olhos quase desfalecendo.

Rio Vermelho, 4 de novembro de 2015.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Barato Orgânico

A feirinha orgânica onde ocasionalmente compro frutas e verduras possui uma atmosfera agradável, meio zen e meio coisa de comércio mesmo. Para uns, aquilo é um prolongamento de um estilo saudável de vida que acreditam, mas, para outros, é apenas um meio de sustento. Seus frequentadores são pessoas afáveis de fala mansa, pele bonita proporcionada pelo hábito de comer alimentos saudáveis e estilo de se vestir que não segue nenhuma tendência de moda ou grife famosa, a não ser o prazer de se vestir do jeito que se sente bem.

A feira tem início aos primeiros raios de sol e cococoricar de galos e vai até o meio da manhã, quando a xepa, um tomate amassado ou alface murcha, é disputada por fregueses desejosos de um bônus extra que lhe proporcionará o prolongamento da vida por só consumirem alimentos saudáveis e por também acreditarem realmente que podem sucumbir ao ingerirem comidas feitas com ingredientes produzidos pela agroindústria. Eu, que me considero um eclético na hora de comer, não tenho ambições de morrer saudável ou de viver mais que o prazo de validade que o meu corpo poder me oferecer sem sacrifícios.

A meia dúzia de feirantes que trabalha ali recorda de mim, apesar deu não ser um freguês frequente e eu lembro de seus rostos, mas não recordo de seus nomes com a mesma facilidade com que sei o do senhor Cláudio, o rapaz que varre a minha rua. No entanto, naquele dia, havia uma feirante novata e que destoava do grupo. Ela era bem mais jovem e franzina, possuía o olhar inocente de uma garotinha. Não tinha pinta de produtora agrícola.

Aproximei-me de sua banca e vi que em lugar de frutas ou legumes, ela expunha pequenos frascos de plásticos de tamanhos variados com rótulos estrangeiros. Esta pequena ruptura do padrão da feirinha acontece com frequência e, por isso, há semanas que está lá um vendedor de sabonetes orgânicos ou de utensílios de cozinha feitos de bambu, este igualmente feito de material orgânico.

— Para quê serve isto? – perguntei examinado um dos frascos já na minha mão.

— Este é um adubo líquido orgânico importado da Holanda.

— Ah! – respondi.

Coloquei o frasco de volta e peguei outro com a mesma curiosidade.

— Este é um fertilizante. – ela disse com a agilidade de uma vendedora solícita e experiente.

Examinei um cubinho que parecia feito de lã e nem precisei perguntar o que era.

— Isso serve para fixar as raízes de uma muda. – ela explicou de forma didática.

— Hum.

Mas é só isto, pensei olhando ao redor. Ela não planta nem uma salsinha ou manjericão utilizando estas maravilhas importadas para demonstrar a sua eficácia?

— E você, o que cultiva? – perguntei. Ela mais parecia uma estudante universitária fazendo um bico.

— Eu planto maconha. – respondeu à queima roupa.

E com a mesma naturalidade com que ela me respondeu, perguntei:

— E você tem aí o fruto de seu cultivo para a venda?

— Não, a sua venda é ilegal e ainda não foi liberada. – disse com um sorriso otimista. Talvez ela só aguardasse o comércio da erva ser liberado num futuro bem próximo para poder desovar as suas safras estocadas.

— Não tem nem aí nem uma amostra grátis, não? – insisti malicioso.

— Infelizmente, só planto para o meu consumo. – ela sorriu mais uma vez.

Seguiu-se um silêncio de minha parte por falta do que dizer e ela mantinha-se olhando para mim aguardando até que me veio uma inspiração.

— Hum... E o seu produto é de qualidade?

— ô, de excelente qualidade! – ela respondeu orgulhosa.


Rio Vermelho, 19 de outubro de 2015.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Rainha do Lar

        Rai é a primeira a estar de pé, embora tenha dormido mal na noite passada. Ainda assim, ela coloca na cara um sorriso e vai para cozinha aprontar o café da família enquanto pensa no cardápio do almoço. A rotina de mais um dia começa pela cozinha. Depois vai para a área de serviço onde limpa a sujeira do cachorro e coloca em cada vasilha água e ração. Olha para cima e ao ver o céu azul límpido prometendo mais um belo dia, uma sensação de otimismo invade o seu coração. O que fará para o almoço, pergunta-se angustiada lembrando-se dos pedaços de frango congelados no freezer. Este é apenas um dos seus grandes problemas do seu pequeno mundo.

        Já é quase sete horas e Marquinho ainda não levantou. Ela vai e bate na porta do menino para que não se atrase para a escola. Em poucos instantes, o silêncio da casa é quebrado pela movimentação de seus habitantes preparando-se para repetirem a rotina do dia anterior. Sentam-se à mesa para comer a primeira refeição do dia. Enquanto isto, Rai serve a um e a outro como num restaurante, vai buscar um remédio que alguém deixou no quarto ou o óculos que ficou no gabinete. Alguém quer ovos mexidos ou que esquente o leite. Um lhe pede que coloque café na xícara. As pessoas estão sempre lhe pedindo alguma coisa que não lhes cairia pedaço algum se elas mesmas o fizessem. Ela só terá tempo para tomar sossegada o seu café da manhã depois que todos forem embora.

        Se você alguma vez ouviu a expressão “chupa cana e assobia”, pode imaginar o que é começar a preparar o almoço ao mesmo tempo em que arruma camas, varre o chão, limpa banheiros, coloca a roupa suja na máquina, passeia com o cachorro, tira a poeira dos móveis da sala, prega um botão em uma camisa, água as plantas do jardim, estende a roupa no varal, conversa muito ao telefone, termina de fazer o almoço para servi-lo à família que já está de volta em casa tirando o seu muito improvável sossego.

        E enquanto comem à mesa, não param de chamar seu nome e aí o inferno começa. Alguém pede água gelada, outro quer o remédio. Ela atende a um e ao outro prontamente enquanto escuta fragmentos da conversa. Ela gostaria de dar sua opinião, mas acha melhor não passar por abelhuda, mesmo sendo considerada como membro da família. Depois que todos comem ela recolhe os pratos e traz a sobremesa antes que lhe peçam.

        Serviço para fazer é o que não falta e quando faz, mais aprece. Mas o que lhe deixa magoada é ninguém reconhece o seu trabalho, nunca ninguém repara quando a casa está limpa e arrumada, só observam a poerinha num canto que a vassoura não passou direito ou quando uma manga da camisa não ficou bem passada. Ela escuta com atenção quando alguém vem choramingar nos seus ouvidos os seus problemas, até arrisca a dar conselhos. Mas quem se importa em ouvir os seus?

        Rai trabalha como um animal achando que é quase como um membro da família e ao custo de um salário mínimo por mês.

Rio Vermelho, 20 de setembro de 2015.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Filho Caçula

Por trás do largo sorriso desenhado na boca desdentada, seu Aurelino anuncia o seu produto nos dias mais quentes. Ele, que tem a importante função social de abrandar os rigores do calor, vende picolés para quem dispuser no bolso de alguns trocados. É claro que há aqueles incautos que saem à rua desprovidos do vil-metal, mas nem por isso deixam de ficar sem levar a guloseima, compram-na fiado. Apesar dos setenta e tantos anos, seu Aurelino registra aquelas dívidas na memória que continua afiada como a de um garoto de dezoito anos.

Seu Aurelino orgulha-se de sua profissão e de vender o melhor picolé da cidade que é produzido na vizinha Irecê. O mais gostoso é o de coco, mas têm também de manga, goiaba, umbu, limão e seriguela. Quem prefere sabores mais sofisticados como chocolate, creme holandês ou amendoim, não morre de calor porque tem sempre alguns no fundo do carrinho.  Seus picolés são cremosos e refrescantes, de dar água na boca, perfeitos para abrandar os dias abafados da pequena Lençóis, apesar de que estes são igualmente muito consumidos tanto no verão como no inverno.

Seu Aurelino, que está sempre de bom humor, gosta de empurrar o seu carinho de picolé pelas estreitas e tortuosas ruas da cidade, por seus bairros mais longínquos e de oferecê-los à freguesia que, quando não está com pressa, aproveita para ter com ele um instante de prosa enquanto chupa o picolé. Uma metade do tempo do picoleteiro é gasto com as vendas do gostoso gelado e a outra com colóquios animados. Alguns lhe trazem notícias de longe, outros reclamam da política, uns se queixam da vida, outros reclamam de doenças, alguns preferem falar da vida alheia. Seu Aurelino mais escuta que fala e da boca banguela tem-se a impressão de que esteja sempre sorrindo, embora às vezes o assunto fosse sério.

O vendedor de picolé é o filho caçula que ainda vive com os pais e que já beiram os cem anos de idade. O menino nunca casou ou arrumou companhia, apesar de ter tanta moça boa na cidade. Isto faz com que os pais se preocupem com Aurelino, pois quando morrerem, quem é que vai tomar conta dele?

Seu Aurelino conta à moça branquela de São Paulo, que chupa um picolé enquanto aguarda pelo ônibus sentada na escadaria da rodoviária, que recebeu uma proposta para ir trabalhar em Salvador. Isso foi na semana passada. Ele queria muito aceitar aquele emprego, nunca esteve numa cidade tão grande, mas papai e mamãe não deixaram que ele fosse porque Salvador está uma cidade muito violenta, lamenta.


Rio Vermelho, 4 de setembro de 2015