Salvador tem uma característica em comum com muitas cidades antigas, o fato de ter em suas tradições e seus lugares pitorescos o orgulho de seus cidadãos. Quem nunca foi pelo menos uma vez à Sorveteria da Ribeira ou tomar água de côco em Itapoã? E quem nunca ouviu falar ou provou do acarajé da Dinha ou da Cira, ou deliciou-se com o sorvete da Cubana? Temos orgulho destes lugares e apesar de muito raramente freqüentá-los é para lá que levamos um visitante de fora. São estas pequenas tradições que nos fazem amar o lugar onde moramos e chamar de lar a nossa cidade.
Estava eu, certo final de tarde nas proximidades da Praça Municipal, quando resolvi fazer um programa de turista. Fui sentar numa daquelas cadeiras de aço cromado da Sorveteria Cubana. Caso você não tenha ainda incluído Salvador em sua próxima viagem de férias, a Cubana é uma daqueles lugares tradicionais que mencionei e que você não deve deixar de ir, mas fique longe dos bolinhos!
Para ilustrar esta estória, perguntei a meu amigo Bartolo, fotógrafo documentador dos recantos, monumentos e riquezas de Salvador, (veja o Blog do Sarnelli na lista de favoritos ao lado) se teria alguma foto da Cubana. Não tinha foto alguma 'nem por acaso e nem de propósito', segundo suas próprias palavras. Falou com saudades do tempo em que namorava uma jovem moça imigrante recém chegada da Itália, quando, nas tardes de domingo, ele vestia o seu terno branco de linho e ia até o Largo da Mariquita no Rio Vermelho para pegar o bonde que o levaria ao final de linha na Praça Municipal, onde ficava a Sorveteria da Cubana 51, local muito freqüentado da época, onde as famílias iam tomar sorvetes e os namorados se encontrarem. Durante a viagem pelas entranhas da cidade, seu coração ia palpitando de ansiedade e só se acalmava depois de encontrar Paola, já sentada na Cubana com seu vestido rendado. Depois de tomarem o delicioso sorvete de tapioca com calda de chocolate, iam passear de mãos dadas, verem as novidades das vitrines da Rua Chile, local onde ficavam as lojas mais chiques da cidade, naquela época. Bons tempos aquele. Casaram-se e ainda são felizes juntos.
Não quis sorvete. Preferi dois bolinhos, adoro bolo. Os famosos bolinhos da Cubana são tão antigos quanto o estabelecimento. Trata-se de um bolinho de massa de arroz com cobertura de chocolate e castanhas picadas por cima. Supimpa! Obedecendo a tradição local, passaram-se quase dez minutos até que um garçom me atendesse e mais outros dez até que ele voltasse com o meu pedido, fiquei aliviado do local estar quase vazio! Aqui em Salvador, cardíacos e hipertensos tem vida curta, se forem impacientes. Saber esperar demoradamente para ser a tendido e servido, é uma arte que o freguês baiano é um mestre!
Comi o primeiro bolinho com prazer e em seguida o segundo, acompanhado de Guaraná Antarctica, ou Guaraná Champagne, já que estou nessa onda saudosista. Fiquei ali sentado admirando a paisagem, assistindo o sol mergulhar vermelho na Baía de Todos os Santos e desfazer-se num tapete de ouro. Os pombos da praça levantaram em revoada para dar uma volta sobre o modernoso prédio da Prefeitura e a velha Câmara Municipal. Adiante, um senhor de bermudas tirava fotos da paisagem lá em baixo. Uma gringa loira e branca feito uma salamandra era assediada por um vendedor de correntinhas de prata. Tudo parecia bem pitoresco, me senti um visitante. Paguei a conta e fui embora. Em mais de 40 anos vivendo em Salvador, aquela foi a primeira vez que fiz o programinha.
No meio da noite fui acordado com as minhas entranhas se revirando de cólicas. Algo terrível estava para acontecer. Lembrei dos bolinhos. Diabo! O que se sucedeu adiante, foi aquilo que pessoas vaidosas pagam caro num spa, e a mim só custou dois bolinhos de R$3,00 cada. Corri desesperado para o banheiro uma vez após outra. Mal deitava na cama e já lá estava de volta ao trono mais uma vez. Nestas idas e vindas devo ter posto para fora duas vezes o meu peso. Lembro que, deitado em meu catre, debilitado e suando frio, fechei os olhos e vi uma luz clara, e lá no fundo estava a minha avó, uma voz suave sussurrava a meus ouvidos "Jesus te chama! Jesus te chama!" Estive a um passo da eternidade. Quem já assistiu aquele curta-metragem brasileiro, "O homem que virou suco", pode ter uma idéia no que me transformei, e quem não o viu, pode deduzir pelo o título da fita, que é bem explicativo. Passei uma noite de agonia.
Ao amanhecer, telefonamos para o Dr. Walter, nosso grande amigo e santo protetor nessas situações de emergência. Ligamos cedo, pois ele já está habituado com a nossa inconveniência. Receitou-me um comprimido, cuja caixa guardo até hoje, no caso de outro arrebatamento, e beber muita Pepsi-cola. Imagine, a bendita afinal serve para alguma coisa! Procurei no site informações sobre suas qualidades medicinais, mas não encontrei nada a respeito. Isto devia estar num anúncio de TV, é de utilidade pública. Segui à risca as instruções médicas. Fiquei prostrado o resto do dia, indo com menos freqüência ao banheiro, até porque já tinha posto fora até a alma! No almoço, comi uma canja hospitalar feita com carinho materno e uma pêra. As peras são sempre servidas aos doentes aqui em casa. No dia seguinte, eu já estava novo em folha e mais esbelto. Pagar spa, pra que?
Duas semanas depois, eu estava numa festa conversando animado com uma querida amiga. Contei-lhe o episódio. Não imagino o porquê, era um assunto que não combinava com festa. Minha amiga ouviu meu relato silenciosamente e, no final, acrescentou.
- Quando eu trabalhava com o Pierre Verger* o ouvia sempre se queixar de constipações. Quando a coisa ficava feia, ele ia até a Cubana e comia uns bolinhos!
*Famoso fotografo e antroplogo francês que viveu nessas paragens.
PS: Ilustrei a estória com um sorvete porque tomei fobia aos bolinhos!
Salvador, 27 de novembro de 2008.