domingo, 23 de novembro de 2008

O diabo mora ao lado.


A casa vizinha foi finalmente posta para aluguel depois de mais de duas décadas trancada. E foi assim que começou o nosso calvário, o de minha família e o da vizinhança.

A primeira inquilina era uma senhora alta e magra com nariz de papagaio e pernas de seriema. Apresentou-se como advogada ao lhe dar as boas vindas. Que bom, uma vizinha advogada. Temos um famoso psiquiatra há três casas a diante e que trata dos loucos da vizinhança, incluído os daqui de casa. Um padeiro italiano de quem compramos pão integral feito na hora e baratinho. Um jardineiro plantador de hortaliças e verduras que nos presenteia com um sacolão semanalmente. Se precisarmos tomar uma injeção, a enfermeira da esquina nos aplica de graça, também é formada em teologia, portanto, uma enfermeira teologa. Tem, também, uma libanesa amante das artes culinárias árabes e que nos mima com pratinhos de quitutes que comemos até lamber os dedos. O dono do boteco da pracinha também é morador e faz o melhor caldo de camarão já provado, e onde podemos pendurar a conta para o final do mês. Estamos bem servidos, não há do que reclamar. Procuro ser sempre um vizinho cordial e prestativo. A nova vizinha foi muito simpática comigo e o prazer daquela visita morreu ali em nosso primeiro e ultimo encontro.

Uma bela manhã cedo dias após a sua chegada, naquele horário em que a preguiça insiste em nos manter colados na cama, tivemos o nosso sono perturbado por latidos vindos da casa ao lado. Ora, cachorros latem mesmo, vivem para comer muita ração e fazer sujeira. É da natureza canina. Fazer o que. Com o passar dos dias e semanas, os latidos foram se multiplicando e passaram a ocorrer a qualquer hora do dia ou da noite tirando o sossego da gente. Parecia-nos que havia mais de um cão naquela casa ao lado. O pessoal daqui de casa começou a ficar mal humorado. Os vizinhos, também. Todos moradores das redondezas que eu encontrava nas esquinas do Rio Vermelho, passaram a se queixar da cachorrada. Ninguém mais falava do assustador mensalão, das viagens do Lula ou da vilã da novela das oito. O assunto principal era os latidos dos cães da vizinha. Era um tal de chegar e sair cachorros daquela casa que ela transportava furtivamente. Evitava ser interpelada por um de nós. Era a hora que os cães ladravam mais. Certa vez eu mesmo a vi chegar carregando nos braços um cão grande desmaiado. Achei estranho. Concluímos afinal que ela não morava lá, não gostava de latidos de cachorro! Um casal de empregados cuidava deles. Ficamos especulando o que se passaria naquela casa ao lado, se era um canil, hotel de cachorros ou alguma nova forma abominação. Todos se queixavam, uns eram mais incomodados que outros, mas ninguém fazia nada a respeito. Ou melhor, uns ficavam à espera que alguém fizesse algo a respeito! Enquanto isso, eu me divertia imaginando formas de exterminar os bichinhos!

Todos os dias o tratador saia para passear com grupos de 4 cães. Voltava e saia com mais quatro. Eram todos bonitos e bem cuidados, de raça, coisa fina mesmo. Para meu espanto, informou-me que havia mais de 30 cães na casa! A advogada seriema tinha mais alguns outros imóveis alugados espalhados pela cidade, num total de mais de 300 bichos, segundo o nosso FBI. Os latidos continuavam nos aborrecendo. Alguma coisa tinha de ser feito e eu fiz. Fiz aquilo que todos esperavam que alguém fizesse. Corri um abaixo-assinado prontamente assinado por todos. Fui até a secretaria da saúde e protocolei a nossa queixa. Para minha surpresa, imediatamente a carrocinha batia na porta da vizinha para fazer uma inspeção. Ninguém respondeu, até os barulhentos cachorros se fingiram de mortos! A carrocinha foi embora prometendo voltar em breve e de fato retornou, mas voltou de redes vazias, pois mais uma vez não foram recebidos. Viriam mais uma vez, informaram, e na quarta vez, entrariam com a polícia e um mandato judicial. Achei esplêndido. Nossa vizinha não era advogada à toa, se é que algum dia o fora mesmo. Antes na quarta batida da carrocinha, ela desmontou o circo e sumiu. Um mês depois, assistindo televisão, vi sua cara indignada estampada no noticiário policial. Em outro bairro habitado por pessoas menos cordiais que as do Rio Vermelho, os vizinhos deixaram de lado a burocracia e jogaram água fervendo nos animais!

Nossa segunda nova vizinha era uma senhora com apenas uma filhinha de 12 anos de idade. Também advogada! Não ouvimos um só ruído da casa ao lado durante um mês. Ficamos felizes, a nova vizinha era silenciosa. Mas esta paz durou pouco, como verão adiante. Numa certa tarde de um quente domingo, no meio daquele cochilo preguiçoso que se segue após a ingestão descontrolada da feijoada domingueira regada na cerveja e caipirinha, tivemos o merecido sossego perturbado por uma estranha ladainha. Eram vozes e cânticos agitados e inflamados rogando por salvação divida, invocando a punição de Deus sobre os pecadores, exigindo a nossa redenção e banindo satanás da face da terra. Aquele culto barulhento entrou pela noite adentro até o último demônio ser finalmente expurgado. Não gostamos dessa nova novidade, até porque ela se repetiu no domingo seguinte e nos outros que se seguiram. Um templo evangélico mudara-se para a casa ao lado da minha! Não sou religioso e nem por isso desconsidero quem tem a sua crença. Se crianças podem ter amigos imaginários, porque não, também, os adultos?

Imaginem, quinze a vinte almas entre homens e mulheres se reuniam ruidosamente aos domingos ao lado de minha casa. Tocavam músicas evangélicas às alturas antes do culto, ministrado por um homem da voz grossa e irritada que esbravejava a plenos pulmões como se estivesse pregando em praça pública. Só conheço alguns cultos evangélicos de assisti-los pela TV, na calada da noite, no desespero para afugentar uma eventual insônia. Achei aquela cerimônia fora dos padrões. Além das falas estridentes de um enfurecido pastor, num momento do culto, todos os irmãos começavam um alarido alto e desencontrado. Depois ouvíamos pancadas que pareciam ser cabeças batendo contra a parede ou no chão. Em seguida, faziam estranhos sons com a língua, como se fossem gargarejos agudos. Enfim, a coisa enchia o recipiente, como diria meu pai e se repetia feito um disco arranhado (para aqueles que conheceram o vinil). Vizinhos faziam cara feia e queixas a mim, como se fosse eu o dono da festa. O mesmo acomodamento do episódio dos cachorros se repetia. Todos se queixavam, mas ninguém fazia nada a respeito.

Certo domingo, acordei disposto e fui à vizinha advogada evangélica. Ela estava ocupada na tarefa de lavar a garagem da casa para a cerimônia daquela tarde. Procurei usar de muito tato, cordialidade e diplomacia para tratar do espinhoso assunto. Falei-lhe que o domingo era um dia religioso e também de descanso para os que trabalham a semana toda. Informei-lhe, caso não soubesse, que o encontro que acontecia em sua casa nas tardes de domingo apesar de ser uma coisa saudável, estava incomodando o descanso da vizinhança que esta já estava descontente. Falei-lhe que ninguém esperava que ela deixasse de fazer os cultos, o que era uma mentira deslavada, mas que o fizesse com moderação. A música alta, o entusiasmo do pastor e dos irmãos e a longa duração do evento estavam além do tolerável. Se a intenção era atrair novos adeptos, ninguém aqui estava interessado. No final, disse-lhe que Deus, apesar da longeva idade, provavelmente não teria problemas auditivos e que poderia escutá-los perfeitamente num tom mais moderado de voz. Ela ouviu tudo calada. Mostrou-se surpresa, pois, segundo dissera, incluía toda a vizinhança em suas orações, etc. No final, prometeu pedir ao pastor para conter-se e terminariam mais cedo. Despedi-me e fui embora. Almocei e fui deitar na rede do jardim. O culto começou no horário e, desta vez, sem que tocassem as músicas evangélicas. O pastor, porém, falou mais alto que o de costume, provavelmente para que eu o ouvisse:

- Irmãos, o demônio esteve aqui esta manhã! (pausa dramática) Queria tomar satisfações porque estamos conversando com o Senhor!

Senti-me honrado pela deferência. Em seguida, baixou o tom de voz. Nunca mais nos incomodaram. O culto foi parar em outra vizinhança, provavelmente ao lado de sua casa!

Rio Vermelho, 22 de novembro de 2008.

3 comentários:

Sarnelli disse...

Taí, Cristiano , como de coisa nasce coisa !... Eu me pergunto se teria tido a idéia brilhante que você teve em transformar aqueles casos corriqueiros numa crônica agradável e, ainda , por que não o fiz !... Aplausos para a sua crônica e recomedação para que fique de olhos bem abertos porque andam acontecendo coisas no nosso bairro que, certamente, lhe darão a oportunidade de escrever, escrever e escrever mais crônicas e comentários para enriquecer o seu blog. Por falar nisso , não se esqueça de visitar o meu. Ah,... mais uma coisa: é claro que identifiquei todos os personagens da estória...- Bartolo

Becky disse...

Nunca achei o meu amigo muito politico nem muito religioso, mas lendo essa comentario sobre a Rua Ilheus descubri o lado do super-cidadao e o lado do demonio do meu amigo Cristiano.

Ana Martha Falzoni disse...

Quer dizer que a tal cachorrada morava sozinha? Lembro-me de sua queixa, alguns anos atrás... e você que pensava que eram só dois... Seus textos são deliciosos,sou sua fã de carteirinha. Continue neste caminho que esta é a sua praia.