Ao escrever sobre a 'Sereia de Copacabana', recordei de outro fato merecedor de ser contado. Todos os anos a colônia de pescadores do Rio Vermelho põe à venda a camisa oficial dos festejos do 2 de fevereiro, que é o dia de Iemanjá. Uma bonita festa na qual os saveiros vão ao alto mar em procissão, abarrotados de cestos de palha contendo oferendas à rainha das águas. São perfumes, espelhos, bijuterias, sabonetes e flores, que serão lançados na linha do horizonte, longe da praia. Naquele ano, um morador e ilustre personagem do bairro, um querido amigo de anos cuja imensa sorte já o presenteou com duas megasenas, estava participando da comissão organizadora. Não falarei seu nome, para proteger a identidade do milionário. Por sua sugestão, escolheram o nome do papai para fazer a ilustração que seria estampada na camisa. Meu pai recebeu a encomenda com muita satisfação, pois nos quase trinta e cinco anos morando no Rio Vermelho, era a primeira vez que era lembrado. Sentiu-se honrado com a escolha. Pra quem não sabe, a Iemanjá é um orixá africano, uma divindade mitológica, metade mulher e metade peixe, muito semelhante a uma sereia.
Papai pôs mãos à obra imediatamente. Muniu-se de papel e lápis, fez esboços enquanto acompanhava a novela das oito em frente à TV. No final, surgiu uma linda Iemanjá sorridente flutuando no fundo do mar, cercada de peixinhos. A aprovação aqui em casa foi geral. Os amigos e admiradores também gostaram. O desenho da sereia foi entregue e o pagamento feito de imediato. Não foi barato. É surpreendente como para fazer festa, o dinheiro sobra aqui em Salvador.
Dois dias se passaram quando, numa quente tarde de uma quinta-feira a campainha da porta toca discretamente e eu atendo. Era um grupo de três senhores sisudos. A julgar pela simplicidade de suas roupas, do rosto queimado e cortado pelo sol sob velhos chapéus de palha, concluí que eram da colônia de pescadores. O mais baixo de todos e o mais parrudo foi quem falou pelo grupo. Chamou por 'seu Floriano, o pintor'. Convidei-os a entrar gentilmente e esperar enquanto ia chamar papai. Entraram em fila indiana e ficaram de pé no meio da sala com ares de quem estava perdido, talvez fosse falta de hábito de entrar em casa tão grande, pensei. Ofereci-lhes o sofá para sentar. Sentaram, mas ainda assim não aparentavam estar à vontade. Percebi que um deles segurava um grande envelope, o mesmo onde papai colocara a Iemanjá. Quando papai era um jovem artista, andou visitando uma colônia de pescadores no Ceará. Queria documentar tudo sobre a vida dos pescadores com desenhos. Desconfiados, as pessoas o recebiam e lhe mostravam de tudo, contavam-lhe suas estórias e em troca papai desenhava seus retratos na areia. Até sair com eles numa jangada para pescar no alto mar, foi. Era jangada mesmo, cinco troncos amarrados, enorme vela de pano e a água batendo no meio das canelas.
Papai deixou os pincéis de lado e veio do atelier falar com o grupo. Achei que alguma coisa interessante estava para acontecer, fiquei por perto. Tinham vindo devolver a Iemanjá, disse constrangido e se desculpando o baixo parrudo. Os outros ficavam calados escutando. O desenho estava bonito, mas não era a Iemanjá deles. Do jeito que estava não servia. O velho Floriano cometera um sacrilégio. Queriam satisfação. A Iemanjá dos pescadores, o Orixá africano, não era negro como papai fizera com tanto gosto, até lhe colocara o nariz achatado da Margareth Menezes, em homenagem! A rainha das águas tal como era imaginada pelos pescadores era loira como a Xuxa e Carla Perez. Uma verdadeira sereia escandinava! Onde já se viu uma Iemanjá africana loura? Papai era intransigente, tive a quem puxar. Foi muito educado com os pescadores, mas não recebeu o desenho de volta, como também se recusou a fazer outro. Foi categórico, em sua recusa, jamais refaz trabalhos para agradar a cliente. O caso virou uma celeuma e foi parar no noticiário. Todo mundo falavam no assunto que acontecia às vésperas dos festejos. A curiosidade foi grande, todos queriam a camiseta da Iemanjá da discórdia, mas que nunca foi estampada. Os pescadores não desistiram ao seu direito a uma Iemanjá loura e conseguiram quem a fizesse de seu jeito. Algumas semanas depois aconteceu a festa de 2 de fevereiro, que é de longe a mais linda do calendário baiano mas ninguém mais tocou no assunto da Iemanjá negra.
Rio Vermelho, 14 de novembro de 2008.
2 comentários:
Com licença do trocadilho, isso mais parece história de pescador
Conheci teu blog através do Bartolo. Estava aqui apreciando teus escritos. A história da Iemanjá mexeu bastante comigo.
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