Eu deveria ter entre 16 ou 17 quando numa manhã, fui ao atelier de meu pai pedir-lhe ajuda com uma tarefa escolar. Era um daqueles trabalhos chatos de equipe no qual deveríamos montar uma pequena encenação com diálogos, não me recordo sobre o que. Como era o presidente da equipe, eu teria de apresentar ao grupo algumas idéias, mas nada vinha à minha cabeça. Faltava justamente a idéia para a estória, o principal. Papai pintava concentrado uma tela enquanto uma música clássica suave tocava ao fundo, no aparelho 3 em 1. Ele fez uma pausa para me ouvir. Ele sempre fora atencioso com os filhos e nunca demonstrava má vontade, mesmo que interrompêssemos o seu trabalho. Depois que lhe expliquei o meu dilema, refletiu por um momento. Voltou-se para a tela em sua frente, e enquanto pintava foi me contando uma estória. Papai era um ótimo contador de estórias. Todos, amigos e nós da família, gostávamos de ouvi-las, mesmo que se tornassem repetitivas de vez por outra. Quando ele se foi, a contadora de estória da família tornou-se minha mãe. Ele falava flexionando a voz nos momentos bonitos e nos dramáticos, e para cada personagem dava uma voz diferente. Fazia isto sentado em sua banqueta em frente ao quadro que pintava, empunhando um pincel sujo de tinta. Nesta época, seu atelier era na garagem de casa, onde hoje funciona a minha estamparia de camisas.
Um pastor de cabras na região de Provença na França, o certo senhor Seguin, possuía uma cabrinha nova e linda que ele gostava muito. Preocupado com os lobos que apareciam na região, ao cair da noite, ele costumava prender sua bichinha a uma corda para que ela não fugisse e fosse devorada. A cabrinha era jovem e inexperiente e queria conhecer o mundo, por isso sempre se queixava quando seu dono a prendia. Por mais que o velho Seguin lhe explicasse os perigos que existiam lá fora, ela queria ir lá fora sozinha ver como era a noite e ter suas próprias experiências, o que era muito normal. Certa feita, quando a noite caiu como um imenso manto negro sobre a Provença, o pastor amarrou sua cria e foi para casa. Era uma noite linda e a cabrinha queria sair para dar uma volta. Forçou tanto a corda que lhe prendia que terminou por rompê-la. Ela saiu de onde estava confinada saltitando de felicidade e correu para o campo aberto. As estrelas brilhavam intensamente no céu de lua cheia. A brisa fresca da noite soprava suavemente pelos campos convidando-a para um longo passeio. A relva úmida exalava um irresistível e delicado cheiro adocicado que se misturava com o cheiro da terra. Era uma noite perfeita. A cabrinha saiu curiosa indo de um lugar ao outro, maravilhando-se com os sons da noite e com o firmamento do céu. Era tudo tão lindo e o que poderia dar errado? Mais adiante, provou o capim fresco e tenro de uma moita onde também tinham flores que dormiam. Em sua caminhada, parou em frente à margem de um pequeno riacho para beber água e enquanto saciava sua sede, podia admirar a lua refletida no espelho d'água. De trás de um arbusto surgiu um enorme lobo negro que avançou feroz sobre a cabrinha, mas esta muito ágil conseguiu se safar. Porém o predador de dentes afiados não estava disposto a desistir de sua presa e avançou novamente com mais ímpeto, no que foi atingido pelas chifradas da cabrinha que lutava para defender sua vida. Mas o lobo era maior em tamanho e mais forte, e avançou outra vez sobre ela e terminou sendo impelido com os mesmo chifres. O encanto da noite se quebrara, tornando-se numa sangrenta batalha entre a vida e a morte. A cada investida do lobo com suas poderosas e afiadas presas, a cabrinha defendia-se como podia com suas chifradas inexperientes. A lua ofuscou-se e as estrelas perderam o seu brilho e a graça. A luta continuava sem trégua. Vez por outra o lobo ficava estático rosnado para a cabrinha que também ficava paralisada aguardando o próximo passo. Em seguida, ele atacava-a de novo. Exausta e ensangüentada a cabrinha resistia bravamente há horas já sem forças. Quando os primeiros raios de sol avermelhados despontaram no horizonte da planície a cabrinha já exausta se lembrou das palavras do senhor Seguin com tristeza. O passeio valeu a pena, foi seu último pensamento antes de ficar imóvel e sem reação, e deixar-se abater por seu canino algoz.
A estória que meu pai me contara era um conto que fazia parte de um livro em formato de cartas contendo estórias provençais, escritas pelo escritor francês Alphonse Daudet, quando este se refugiou para descanso num moinho de vento que alugara na região de Provença. Li o 'Cartas do meu moinho' até o fim, uma cópia que me foi dada por meu pai. Ironicamente, a única estória que me recordo, foi justamente aquela que meu pai me contara entusiasmado, numa manhã em que pintava em seu ateliê.
Rio Vermelho, 6 de novembro de 2008.
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