sábado, 17 de dezembro de 2011
Na vida como na arte.
Ontem fui num cinema cuja sala só vende assentos marcados, e como a plateia era apenas de meia dúzia de gatos pingados, me rebelei, sentei em qualquer lugar. Os primeiros quarenta e cinco minutos do filme descreviam a rotina de um jovem e feliz casal, e lá pelas tantas, quando aquilo já estava ficando tedioso, a mulher conhece outro homem e, não satisfeita em ir apenas uma vez para a cama com ele, fez disso um hábito, transformando-o num tórrido romance. O marido, por sua vez, não fez diferente, desconhecendo os malfeitos da esposa, começa também a ter um caso extraconjugal, no entanto, como ele andava meio confuso, foi parar nos braços de outro de seu gênero, porque ele queria experimentar esta coisa diferente de que tanto falam. A partir daquele ponto do filme, a estória, que parecia um daqueles patéticos casos de duplo adultério, adquire contornos bizarros, quando a esposa descobre que seu querido marido a estava traindo justamente com o seu amante. Para complicar mais ainda o imbróglio, a mulher aparece grávida e como se isto não fosse o bastante, era de gêmeos e, neste momento, a trama insinua que talvez cada criança pertencesse a um pai diferente, o que dificilmente saberemos por que este era um daqueles filmes europeus que não tem fim. Para quem ficou curioso por saber em que pé ficou o triangulo amoroso, digo que o amante ficou prestando assistência à esposa e ao marido concomitantemente, seguindo ao pé da letra aquele preceito bíblico que diz que marido e mulher devem compartilhar de tudo na alegria e na tristeza. E esta é uma das desventuras de se ir num filme sem ler a sinopse previamente.
Esta inverossímil estória me fez lembrar de outra que certa vez me contaram. Uma jovem moça tinha a satisfação de “sair” com dois belos rapazes sem que um soubesse da existência do outro. Tudo ia muito bem até que certo dia ela engravidou. E como naqueles áureos tempos paternidade era mais uma presunção que uma informação científica confiável, a moça resolveu comunicar o fato aos dois rapazes, dando-lhes a palavra que um deles era o pai embora não soubesse precisar qual dos dois. Foi nesta oportunidade, também, que ambos foram apresentados, e como eles eram dois homens de boa índole e bom senso, não faltaram com solidariedade à moça e se comprometeram a dar toda a assistência a ela e à criança, inclusive até a sua idade adulta
De fato eles cumpriram o prometido. Durante toda a gravidez, não deixaram que nada faltasse à gestante. No mês previsto para a criança desembarcar no mundo, um deles precisou viajar a trabalho ficando fora algumas poucas semanas, até que certo dia este recebeu um telegrama que informava suscintamente: “Lívia deu a luz. Nasceram gêmeos. O meu, infelizmente, morreu. Parabéns!
Rio Vermelho, 15 de dezembro de 2011.
domingo, 11 de dezembro de 2011
Que azar danado.
Já escrevi aqui sobre minhas caminhadas na orla do Rio Vermelho nos finais de tarde, mas não devo ter contado que, na verdade, estou treinando para as olimpíadas, pois vou competir na modalidade “devagar se vai ao longe”. Este exercício tem me feito muito bem, embora eu não saiba precisar exatamente em quê. Mas depois que o verão começou para valer derretendo-nos feito picolé, tenho saído de casa só depois que o sol se põe por completo porque uma brisa suave e fresca começa a soprar na orla tornando a atividade de caminhar num exercício agradável e revigorante.
No domingo passado, fui dar minha caminhada no início da noite, mesmo sabendo que as ruas estavam desertas àquela hora, o que não deixava de ser uma imprudência minha, pois Salvador, nesta época do ano, está entregue aos bandidos, movidos pelo espírito natalino. Estas festas de fim de ano realmente movimentam a economia em todos os setores e por isso não é de surpreender o aumento da ação dos criminosos que não querem ficar à margem dos acontecimentos. Pois lá ia eu, tranquilamente em minha caminhada, gozando da brisa do mar e absorto em meus pensamentos quando um negão surgiu armado à minha frente e me mandou passar tudo que eu tinha e que não era quase nada, pois não carrego coisa alguma comigo além das chaves de casa. Insatisfeito com a minha penúria, levou-me o único bem de valor que achou, um velho relógio de pulso comprado num camelô no centro da cidade e que me custou, depois de barganhar o preço, exatos oito Reais. Não estivesse ele visivelmente apressado, pois tinha em mente outras vítimas mais abonadas, poderia ter levado meu par de tênis que era de grife e me custara os olhos da cara. Depois de ter praticado o “malfeito”, o bandido se foi correndo para os lados da praia e sumindo no breu dos rochedos que dá acesso para uma favela nas proximidades e onde provavelmente ele fixara residência. E eu segui o meu caminho, continuando o meu exercício mesmo assim, pois a probabilidade de eu ser assaltado aquela noite já se concretizara e só por muito azar mesmo isso aconteceria duas vezes seguidas em pouco espaço de tempo. Preferi esquecer aquele incidente desagradável e deixá-lo para trás, pois o que estava feito, já estava feito.
Quis o destino que naquela mesma noite, mais tarde, eu fosse ao Cinema do Museu, que se gaba de ter uma clientela diferenciada e educada. Educada uma ova, pois durante o filme alguns representantes dessa elite aproveitavam para conversar entre si, fazer ligações ou recebê-las como se todos na plateia fossem obrigados a aturar a sua completa falta de educação. Agora que desabafei, continuo minha narrativa dizendo que depois do filme voltei para casa e no caminho dei uma parada no Porto da Barra para tomar uma água de coco gelada porque o calor estava de matar. Enquanto me refrescava com a salutar bebia, encostei-me à balaustrada observando na praia lá embaixo um grupo animado que fazia um luau, alguns casais namorando deitados na areia e alguns gatos pingados aventurado-se a cair na água que estava serena e presumivelmente tépida. Enquanto eu me deleitava com aquele cenário, um rapaz se aproximou de mim para me abordar e como o seu rosto me fosse familiar, estendi-lhe a mão para cumprimentá-lo. Ele apertou minha mão e, para minha surpresa, pediu-me dinheiro e, como lhe neguei, pediu-me um cigarro e, como eu não tinha nenhum porque não fumo, ele foi-se embora. Enquanto ele se distanciava eu tentava puxar pela memória de onde eu o conhecia até que tive um sobressalto ao lembrar que ele era o cara que me assaltara algumas horas antes!
Rio Vermelho, 11 de dezembro de 2011.
domingo, 30 de outubro de 2011
Você é tão lindo!
Quando pequeno, JR acreditava que ao crescer iria se tornar num belo cisne de penas negras que iria ser admirado por todos por causa de sua inigualável beleza. Mas ao alcançar a idade adulta, logo percebeu que ele não fazia parte de nenhum conto de fadas e que, se ele era feio quando criança, ao crescer, ficou mais feio ainda. Enfim, ele era feio como o pecado, mas estranhamente a sua feiura era mais de fascinar que de repelir. E além de ser destituído de predicativos de beleza física, ele era um duro, outro agravante que só tornava as coisas difíceis para o seu lado.
Fala-se muito da nobreza da beleza interior, principalmente quando a exterior deixa muito a desejar e, no caso de JR, as mulheres pareciam não ter os esperados olhos de raios-X que tanto enxergam o âmago do ser de uma pessoa, porque esta poderia ser uma dessas inspiradoras estórias de superação na qual o nosso herói passa por uma provação, no caso a sua falta de beleza, até ser reconhecido e admirado pelo seu conteúdo humano, mas, no caso de JR ele era um sujeito superficial e sem muitas qualidades pessoais que o distinguissem dos outros seres da espécie, então ele não apenas carecia de beleza exterior, mas de interior também, no entanto, ser má pessoa ou mau caráter, isso ele não era.
Mas apesar de seu percalço, ele era um ser humano como outro qualquer que se levantava todas as manhãs motivado por sonhos e desejos. E um desses desejos atendia pelo nome de Ritinha, uma deliciosa e mal afamada mocinha que era balconista da loja de ferragens do bairro que ficava no seu caminho diário para o trabalho, uma mulher muito bonita, mesmo. Os olhos do pobre rapaz brilhavam de desejo cada vez que ele punha os olhos sobre ela ao passar em frente da loja e provavelmente outras partes de seu corpo se manifestavam com igual grau de paixão. Mas a moça tinha horror a homem feio e o nosso pobre JR se encaixava exatamente naquela categoria. Vez por outra ele entrava na loja nem que fosse para só comprar um prego, ou dois, apenas pelo prazer de ser atendido por Ritinha, mas apesar de toda sua delicadeza e educação ao tratá-la, ela retribuía com um olhar duro de desprezo porque para ela, ele era mais um daqueles homens feios que enchiam a sua paciência com olhares e palavras melosas. Vez por outra JR a encontrava no mercado e tinha a petulância de se aproximar para conversar na intenção de convidá-la pra sair ao que ela lhe respondia gentilmente: “Você não se enxerga? Vai te catar!” O rapaz interpretava isto como um “talvez” e repetia o pedido em outras oportunidades, ouvindo sempre a mesma promessa encorajadora.
Mas a vida não foi totalmente injusta com JR, pois que, certo dia, teve o sofrimento de perder um tio querido e a compensação de herdar toda a sua pequena fortuna. A notícia logo se espalhou pelo bairro e virou assunto de conversa de esquina, balcão de farmácia, mesa de botequim até chegar à loja de ferragens na qual a indiferente Ritinha trabalhava e pôs-se ouvir aquela conversa toda com disfarçado desinteresse. A estória que corria era que ele queria achar uma boa moça para casar e que com todo aquele dinheiro que herdou, candidatas é o que não faltavam e quem quisesse tentar, melhor que se apressasse porque a fila estava começando a dobrar o quarteirão. Não demorou muito, Ritinha percebeu que subitamente estava perdidamente apaixonada pelo homem mais feio que já vira em toda a sua vida e dono de uma fortuna de encher os olhos de qualquer moça que sonhava encontrar seu príncipe encantado e ela encontrara o seu.
A partir de então, ela passou a ir ao mercado diariamente com o intuito de esbarrar acidentalmente com JR, o que de fato aconteceu e daquela vez foi ela quem teve a iniciativa de puxar conversa. E como era de se esperar, JR insistiu mais uma vez no convite para saírem juntos ao que foi aceito de pronto e com demonstrações de alegria e entusiasmo que faria qualquer cego de bengala desconfiar, menos JR que estava cego de amor pela moça. Ao se despedirem reafirmando o encontro já para aquela noite – para que esperar tanto... – Ritinha deu um beijo melado no rosto de JR e disse-lhe languidamente ao pé de seu ouvido “Você é tão lindo!” Bem, o resto da estória é previsível de imaginar. Eles viveram felizes para sempre, ele por ter uma esposa que era muito bela e ela por ter se tornado proprietária de uma bela conta bancária.
Rio Vermelho, 30 de outubro de 2011.
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Il sole é mio!
Se o luar é dos amantes então, o pôr do sol a quem pertence? Todos os fins de tarde, nas três últimas semanas, Bartolo, o meu amigo italiano, calça o seu sempre bem cuidado par de tênis de futebol de salão e, munido da câmera digital novíssima em folha, vai até a Praia de Santana registrar mais um crepúsculo. Outro dia ele não compareceu como esperado, preferiu ficar em casa fazendo espaguete, porém, imaginando que se tratava apenas de um mero atraso, o sol retardou o seu momento de sair de cena como se estivesse à sua espera para mais uma vez exibir-se para a fotografia, mas como o italiano não deu as caras, a noite, então, começou um pouco mais tarde aquele dia.
Todos os fins de tarde, eu saio para caminhar na orla do Rio Vermelho, naquele trecho entre o Teatro do SESI e a segunda escada da Praia da Paciência cujo comprimento deve ter pouco mais que mil metros, e repito o mesmo percurso cerca de oito vezes, considerando-se a ida e a volta. Tudo de caloria e gordura que eu perco neste exercício inútil, eu candidamente reponho, às sextas-feiras, comendo churrasco ou espetos de camarão pistola e sardinha na brasa, regados a fartas rodadas de cerveja estupidamente gelada no refrigerador de última geração da casa de meu amigo e vizinho Habib. O caminho do meu “Cooper” é sinuoso porque ele obedece ao movimento do mar, começando reto até a igreja e depois fazendo uma barriga acompanhando a enseada da Praia de Santana e depois segue reto novamente e mais adiante faz outra barriga na Praia da Paciência. É uma caminhada privilegiada por poder se admirar toda a beleza do mar quebrando nas pedras jogando espuma para o alto. Até bem recentemente, o pôr do sol só era visto acontecer por detrás de prédios e, por isso, não era um espetáculo lá muito interessante, mas como ele tem se movido no sentido leste como parte de seu ciclo natural, não faz muitos dias, ele já é visto desaparecer no oceano, onde pode ser melhor contemplado por quem quer que esteja andando ou passando de automóvel ao longo da avenida que corre lado a lado com o mar.
Um fato que tem merecido a minha atenção é o encantamento das pessoas pelo pôr do sol e o seu impulso de fotografá-lo como única forma de congelar para sempre aquele momento singular, porque o sol se põe diferentemente todos os dias para nunca repetir o mesmo espetáculo. Então eu vejo pessoas como o meu amigo Bartolo chegar até a orla trazendo suas câmeras com a vívida intenção de gravar aquele momento sublime. Ou outras que, de dentro de seus carros ou do ônibus ou encima da motocicleta, no congestionamento da avenida naquele final de tarde, não desperdiçam o momento e fazem uso até de câmeras embutidas em aparelhos celulares. Tudo está valendo, de máquinas baratinhas até as profissionais com suas teleobjetivas espetaculares, desde que ninguém deixe de compartilhar aquele efêmero instante. De onde vem tal magnetismo pelo pôr do sol? Como ele consegue esta façanha de se reinventar a cada dia e agregar tantos admiradores? Eu mesmo fico divido entre fazer o meu exercício ou apenas sair de casa levando a minha Canon para juntar-me aos outros para celebrá-lo. Talvez por preciosismo, no entanto, eu penso que o pôr do sol deveria ser livre e sempre único e guardado na memória, por isso me privo de fotografá-lo porque nada substitui a emoção de vê-lo ao vivo.
Rio Vermelho, 18 de outubro de 2011.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
O traje faz o homem.
Não há sensação banal mais agradável que a de sentir-se asseado depois de um bom banho e depois vestir-se com roupas limpas e macias. Embora seja questionável que o modo como uma pessoa se vista diga realmente algo sobre ela, uma roupa pode, no entanto, alterar o seu ânimo e ajudá-la a adquirir autoestima.
Aqui no Rio Vermelho havia um “maluco”, assim como é comum a cada bairro possuir o seu, personagem quase invisível à nossa percepção e que ninguém sabe a sua origem ou a sua história. E para que este não fique totalmente no anonimato, colocam-lhe um apelido ou batizam-no com um nome qualquer. Certa vez ouvi chamar o nosso pela alcunha de “Coronel” e foi assim também que passei a denominá-lo desde então. Ele caminhava a esmo pelas ruas do bairro com passos arrastados e vagarosos como os de um ancião embora não devesse ter mais que cinquenta. O olhar era triste e perdido e a postura curva e cabisbaixa como se carregasse toda a vergonha do mundo. Ouviam-no resmungando o tempo todo estórias incompreensíveis de seu universo e que provavelmente só a ele faziam sentido. Mas a coisa que mais nos incomodava era vê-lo de roupas imundas e com o aspecto de quem carecia de um banho com muita água, sabão e uma esfrega, não só por medidas profiláticas, mas para também livrá-lo do terrível mal cheiro que para nós era motivo de desprezo.
Eis que certo dia, o meu vizinho JR teve uma luminosa ideia que a nenhum de nós jamais ocorrera. O “Coronel” bateu à sua porta pedindo-lhe água, como era costumeiro, e este o convidou a entrar conduzindo-o até os fundos da casa onde havia uma ducha, sabão perfumado, bucha e toalha à sua espera. Com um gesto elegante, JR convido-o a entrar no recinto e banhar-se à vontade, ao que ele, depois de um olhar desconfiado e de um instante de hesitação, deu um largo sorriso aceitando a oferta.
Enquanto o “Coronel” tomava o seu merecido banho, JR foi até ao armário procurar por uma roupa para doá-la ao visitante e de lá tirou seu antigo uniforme de gala do Tiro de Guerra, o qual não lhe valia mais de nada a não ser pelo valor sentimental. Depois de asseado, o “Coronel” vestiu o uniforme e quando se olhou no espelho de banho tomado, cabelo e barbas penteados assustou-se ao deparar com aquele novo homem que parecia uma verdadeira autoridade e terminou por encantar-se com a sua nova imagem. Agora sim ele parecia um coronel de verdade! Estufou o peito, empertigou-se, levantou o queixo e, altivo, saiu caminhando a passos largos e firmes como nunca se vira antes. O homem curvo e cabisbaixo que andava arrastando-se dissolvera-se na água do banho e em seu lugar surgiu um outro totalmente diferente que víamos marchando pelas ruas do Rio Vermelho comandando exércitos invisíveis.
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Chega-se a Boipeba até de helicóptero, mas não é tão divertido assim.
Nada como um programinha alternativo bem longe de casa para variar a rotina e fazer-nos desejar voltar ao conforto e segurança do lar, para a nossa vidinha de sempre. Minha querida sobrinha entrou de férias e me convidou a passar uns dias em Boipeba em companhia de sua família, e como eu sempre quis mesmo conhecer o lugar, não pensei duas vezes antes de aceitar. O passeio também me ajudaria a curar feridas no coração, causadas involuntariamente por alguém que foi dançar o tango com um felizardo nas frias noites portenhas. Triste de mim que mal sei só dançar o twist.
Para quem nunca esteve ou ouviu falar de Boipeba, apenas digo que é uma paradisíaca ilha localizada na Costa do Dendê no litoral sul da Bahia, plantada no que ainda restou da Mata Atlântica, região de extensos manguezais e recifes de corais que a tornaram reserva ecológica. O lugar ainda não descobriu o débito em conta ou o cartão de crédito, mas já tem banda larga e luz elétrica. Suas ruas são estreitas e muitas delas já pavimentadas com pedras de cantaria, destinadas ao trânsito exclusivos de pedestres porque em Boipeba não existem automóveis, mas para se chegar aos vilarejos e praias vizinhas recorre-se ao transporte de tratores que rebocam jardineiras ou ao lombo de burro ou de cavalo ou, para quem tem disposição, vai de pé mesmo.
Mas chegar até a ilha de Boipeba é que é o grande barato da viagem, porque o lugar fica bem lá no fim do mundo onde o vento faz a curva, e o modo mais em conta de se chegar lá acontece que é também o mais divertido e que faz o passeio valer a pena, depois que pensamos sobre o assunto, já de volta ao conforto do lar. Então, no dia e hora combinados eu já estava pronto às seis da manhã; não vou dizer aqui que minha sobrinha me deixou esperando e só apareceu com a cara mais limpa do mundo depois das sete e meia. Mas mesmo assim chegamos ao Terminal da França a tempo de pegar a lancha seguinte para Mar Grande, na ilha de Itaparica. O que as pessoas chamam de lancha é, na verdade, uma sólida embarcação de madeira semelhante a um saveiro, movida por um potente motor capaz de carregar em uma só viagem umas duas centenas de almas. O gostoso da travessia é a rara chance de admirar Salvador vista pelo mar que é uma paisagem de encher os olhos. Como o mar estava agitado por causa das marés de agosto, a lancha jogava para os lados e, volta e meia, respingos da água salgada da Baía de Todos os Santos nos abençoava.
Em 35 minutos estávamos em Mar Grande e sem pegar congestionamentos! Uma agitação de “vans” disputava os passageiros que desembarcavam para levá-los a outras praias mais distantes da ilha de Itaparica, mas, para nossa surpresa, nenhuma delas tinha intenção alguma de ir até a cidade de Valença, que era o nosso destino seguinte neste périplo. A ‘baixa estação’, justificaram. A única opção que nos restava era ir de taxi, ou, melhor dizendo, um carro particular que clandestinamente faz o serviço, como nos explicou a autoridade local responsável por coibir tal prática e quem nos sugeriu fechar com um seu sobrinho que tinha um Fiat novinho em folha logo ali esperando na esquina. Ah, o que seria de nós se as leis fossem cumpridas neste justo e belo país... Aceitamos a oferta, mas como nem tudo é garapa, havia mais um perrengue que o dito ‘taxi’ só nos levaria até o terminal do ferry boat em Bom Despacho e de lá teríamos de seguir em outro para Valença a ser providenciado pelo nosso motorista, coisa da mais absoluta confiança, garantiu.
Então, devidamente instalados pegamos a estrada com destino a Bom Despacho que era ali perto, segundo nos informou o motorista, embora me pareceu ser bem mais adiante, mas não nos importamos pois, tudo era novidade, porque estávamos passeando e o tempo era nosso amigo.
Quando finalmente chegamos a Bom Despacho o nosso ‘taxi’ fez um sinal para outro colega à espreita, igualmente clandestino e que por isso foi nos encontrar mais adiante num posto de gasolina, longe dos olhos da fiscalização que esta não era tia de ninguém. Trocamos de ‘taxi’ e não me escapou aos olhos quando o nosso novo motorista deu furtivamente uma graninha para o colega que nos levou, alimentando a cadeia de comissões e propinas na qual havíamos nos metido. E lá fomos nós finalmente para Valença num segundo ‘taxi’, soprados por um vento gostoso que invadia o carro através da janela e foi quando aproveitamos todos para tirar um cochilo, excetuando o motorista, por razões óbvias. Hora e meia depois, chegamos na rodoviária de Valença onde teríamos que aguardar por um ônibus que nos levaria a um lugar chamado Turrinhas. Senti fome e saí investigando pelo pequeno terminal um lugar para comer e achei a única lanchonete disponível que tinha em sua vitrine uma variedade de salgados cuja aparência prometia fazer de nosso passeio um pesadelo, preferi arriscar num pacote de biscoitos. Deus é mais!
E não tardou muito o nosso ônibus chegou. Não me admirei ao ver que era um carro velho de aparência surrada e enlameado por uma terra vermelha que este era batizado com o pomposo nome de ‘Expresso Boipeba’. Pulamos para dentro e logo em seguida ele partiu valentemente transportando-nos ora pela estrada de rodagem e ora cortando pequenas cidades de prédios históricos até cair numa estrada de barro estreita e rica em buracos, mas formidavelmente ladeada pela mata fechada até parar em Turrinhas, que acontece de ser um pequeno e rústico terminal portuário. Todos saltaram do ônibus e me apressaram para andar mais rápido que o barco para Boipeba estava na eminência de partir, mas da distância onde eu estava eu não via embarcação alguma atracada e só quando cheguei ao deck e olhei para baixo vi que uma canoa de madeira com um motor de poupa na qual os passageiros tomavam cada um o seu lugar. Pulei para dentro bravamente lembrando que eu não sabia nadar e em seguida ela partiu conduzindo-nos pelo leito do Rio Grande para dentro da mata virgem com o seu motor tossindo fumaça e quebrando o silêncio da paisagem com o seu barulho renitente enquanto admirávamos os manguezais, crocodilos e hipopótamos – só para enriquecer a narrativa. Depois de quase uma hora ele virou no Rio do Inferno e logo avistamos Boipeba plantada na boca da barra nos aguardando finalmente. Chegamos!
Levamos cerca de seis horas de viagem, mas pode-se chegar à ilha de lancha rápida em menos de duas horas ou de helicóptero em apenas 45 minutos, mas te garanto que o passeio não é tão divertido.
Rio Vermelho, 15 de setembro de 2011.
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Sobre caçadas a javalis e a nobreza do cotidiano.
Numa recente ensolarada manhã, cá estava eu pensando sobre alguma estória para uma nova crônica, como sempre faço semanalmente porque escrever é um exercício contínuo e, embora eu já tenha escrito mais de 80 delas, eu as considero como um texto único no qual vou revelando o meu cotidiano tal qual um alfaiate desenrola lentamente a peça de tecido sentindo a maciez de sua trama ao afagá-lo com a palma da mão e imaginado se dali surgirá um blazer ou uma calça. Fiquei refletindo se escreveria desta vez sobre minha triunfal caçada aos sanguinários javalis selvagens no vale da Cananéia com um potente rifle de derrubar leão, ou da vez que pulei do Machu Picchu de asa delta, ou fiz rapel na cachoeira da Garganta do Diabo ou amor com uma belíssima norueguesa sobre as mornas areias do mar Egeu, tendo a lua como testemunha. Meus devaneios foram subitamente interrompidos com o apitar na máquina de lavar roupa avisando-me que o serviço já tinha terminado e que eu já podia pendurar a roupa limpa no varal, e isto foi quando retornei ao planeta terra.
Uma querida amiga ficou encantada ao saber que lavo minhas próprias roupas e achou isso “bonitinho”, depois completou dizendo que era uma atitude nobre de minha parte. E eu que sempre pensei que atitude nobre fosse algo como reconhecer a paternidade de um filho bastardo ou renunciar ao cargo de Ministro de Estado depois uma intensa saraivada de denuncias de corrupção e gatunagem de dinheiro público. “O Excelentíssimo Senhor Ministro teve o nobre gesto de renunciar ao cargo depois de uma campanha difamatória e infundada sobre a sua ilibada conduta frente ao cofre da viúva.” Mas ela tem razão ao dizer que o homem que lava a própria roupa demonstra um gesto de humildade. Não há nada de errado em um homem lavar as suas roupas, ou pratos ou cozinhar, até porque agora chamam a isto de homem moderno. Então eu sou moderno, mas não moderninho. Se eu fosse casar com uma mulher para ter quem lavasse e cozinhasse para mim, eu certamente daria preferência à nossa atual empregada doméstica, pois assim me pouparia de lhe pagar salário e encargos sociais.
Não é raro idealizarmos pessoas que admiramos. Mais comum ainda é as imaginarmos fazendo sempre coisas divertidas, como se a vida delas fosse uma festa e dificilmente a concebemos, por exemplo, lavando o banheiro de sua casa ou enfrentando a fila do banco para pagar contas. Certa vez eu tive uma amiga muito bela e a quem não lhe faltavam convites para baladas incríveis, altas festinhas particulares, jantares nos lugares da moda, passeios maravilhosos e noitadas extenuantes nos motéis mais requintados. Eu ficava imaginando como deveria bom ser ela com tanta farra e admiradores, até um certo dia em que a flagrei em sua casa, de touca de meia na cabeça, metida num shortinho apertado com a vassoura na mão varrendo o piso da cozinha enquanto ouvia pelo rádio e cantava a plenos pulmões o Reginaldo Rossi tão feliz quanto pinto na lixeira. Desde então, passei a olhá-la de modo mais mundano.
No meu caso, eu lavo a minha própria roupa na máquina e interrompo o meu trabalho de escrever para estendê-la. Tive amigo adulto que não fazia ideia onde se encontrava um garfo na cozinha de sua própria casa ou que a mãe, quando ainda solteiro, lhe fazia o prato à mesa e seguia atrás dele arrumado a bagunça que ele ia deixando no caminho pela casa. Fico imaginando como ele estará agora e se a esposa conseguiu reeducá-lo ou se ela teve o mesmo triste fim de sua sogra. Sim eu lavo as minhas próprias roupas, é a nobreza do cotidiano, apesar de que um dia já as joguei no cesto imundas e elas, inexplicavelmente, voltaram milagrosamente para a minha gaveta lavadas, dobradas e cheirosas. Fala-se tanto em igualdade entre os sexos como igualdades de oportunidades de emprego, salários iguais para as mesmas funções e coisas assim. É muito bonito tudo isto, mas acho que tais práticas devem começar dentro de casa.
Rio Vermelho, 18 de agosto de 2011.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
De como fotografar um pica-pau
É gratificante conseguir provocar emoções positivas no leitor, levá-lo a recordar momentos de sua vida através do texto literário ou apresentá-lo a uma realidade diferente da qual ele conhece, ou apenas diverti-lo. Uma assídua leitora enviou-me um simpático e-mail agradecendo-me pela crônica “Sobre pedaços de mamão, banana... e a natureza” – infelizmente ainda não foi a aquela bonita para quem dediquei carinhosamente a estória, mas rogo a Deus pelo dia em que ela alegrará com algumas gentis palavras este seu humilde admirador – pois esta a fez recordar das férias de sua infância passadas no sítio dos avós, da casa simples rodeada por uma enorme varanda com redes balançando ao vento e de onde podia-se contemplar mangueiras, cajueiros, pés de jambo, pitangueiras e sapotizeiros que atraiam a visita de passarinhos, cutias e outros bichinhos.
Ela também quis saber se realmente pica-paus chegavam à minha janela e, embora o único que eu tenho absoluta certeza de já ter visto na vida foi aquele do desenho animado, respondi-lhe garantindo que este agia tal qual, usando o bico para dar marteladas, embora eu fosse incapaz de distinguir se este era um genuíno pica-pau ou apenas uma ave qualquer fazendo-se passar por um. Fiquei intrigado com aquela dúvida e resolvi tirá-la a limpo pesquisando na internet, mas depois de exaustiva procura não encontrei nenhuma imagem que se assemelhasse ao meu ilustre visitante, uma ave de porte maior que um passarinho, coberta por uma plumagem amarelo canário e o feliz possuidor de um bico longo e robusto. Mesmo assim não esmoreci em meu intento e resolvi tentar identificar o meu pica-pau com alguém que entendesse do assunto através de uma foto. Munido de minha câmera fui à cata da ave pelas redondezas da casa, mas na minha primeira tentativa não encontrei nenhuma. Fui ingênuo ao supor que os pica-paus fossem como as rolinhas ou os pardais que existem aos montes e nos visitam a toda hora por causa das frutas que lhes oferecemos.
Tentei a seguinte estratégia, deixei a câmera à mão para o caso do pica-pau aparecer enquanto eu trabalhava em minha sala, próximo a uma janela. Devo confessar que foi uma tarefa difícil escrever e ficar vigilante ao que se passava do lado fora, mas finalmente um pica-pau deu o ar da graça e antes de eu mirar no alvo ele se foi tão rápido quanto tinha chegado. As tentativas seguintes foram igualmente sem sucesso, o que me fez concluir que os pica-paus são seres inquietos ou que não gostam de serem fotografados, razão pela qual nunca esquentam o lugar onde pousam. Por mais que eu fosse mais ágil, este era sempre mais rápido que eu.
As tentativas frustradas me fizeram sentir fome e, como um passarinho, fui atrás de uma banana voando pela casa... Enquanto descascava a fruta ocorreu-me uma ideia brilhante e tão obvia. Por que não usar um pedaço da banana para atrair o pica-pau e quando este se detivesse bicando-a eu teria mais tempo para fotografá-lo? Foi o que eu fiz, da banana que eu comia parti um generoso pedaço que joguei sobre o telhado que cobre a área de serviço que fica em frente à minha janela e voltei aos teclados. Realmente é muito difícil trabalhar em casa, pois volta e sou distraído com assuntos domésticos ou qualquer outra coisa. Cerca de uma hora depois, um pica-pau pousou de olho grande na isca e caiu feito um pato em minha cilada. Posou para uma bela foto que enviei por e-mail para o meu amigo Rogério, um grande apreciador de aves tanto voando como pousadas em seu prato. Respondeu-me desconcertado que o meu pica-pau mais parecia um bem-te-vi, mas que se eu fazia tanta questão de uma identificação positiva, este poderia ser também o famoso pica-pau-amarelo!
Rio Vermelho, 30 de julho de 2011.
quarta-feira, 20 de julho de 2011
Cenas de um casamento.
Já vi casamento transformar-se em relação impossível de suportar convívio sob o mesmo teto, mas que para não jogar pá de cal sobre o matrimônio ameaçado, o casal apelou para soluções curiosas. Meu irmão caçula foi um deles, cansado de aturar as idiossincrasias da esposa, fez uma trouxa e foi morar longe em outro quarteirão. Resultado, o seu casamento nunca esteve tão bem desde então, contanto que cada um fique em seu canto. É verdade que ele faz visitinhas diárias à sensível esposa, mas depois volta para o sossego de sua própria casa para fazer aquilo que mais gosta que é ser ele mesmo. Eu particularmente acho um abuso esperar que uma pessoa seja obrigada a aturar outra pelo resto da vida, porque casamento deveria ter prazo de validade igual a de desodorante, quando começa a cheirar mal é porque já está na hora de colocar outro.
Com o meu amigo JR, sucedeu-se algo semelhante. Que a sua Odete quase não falava mais com ele e por causa disso ele resolveu por fim ao matrimônio de quase vinte e cinco anos de casados. Me procurou pedindo uns conselhos, como se logo eu fosse uma autoridade no assunto. Eu, que nem nunca cheguei perto de um altar, não por fobia, mas por falta de merecimento mesmo, que as moças escolhidas para a ocasião solene não me quiseram por causa da minha falta de liquidez bancária, triste de moi.
— Vou largar a Odete, pedir o divórcio. – falou sério.
— É mesmo? Mas por que isso agora? – perguntei surpreso, desconhecia que o casamento não ia bem das pernas.
— Odete quase não fala mais comigo.
— Humm... pense bem no que vai fazer, rapaz, pois uma mulher assim é difícil de se encontrar! – zombei preferindo perder um amigo, a perder uma boa piada.
Mas como quem pede conselho só quer mesmo ouvir aquilo que deseja, e no caso de JR ele esperava que eu aplaudisse a sua iniciativa, e foi o que eu fiz pois nunca fui de contrariar ninguém e mesmo que eu o desencorajasse, a sua decisão já estava tomada antes mesmo de ele vir falar comigo. Então, certo dia, ele se vestiu todo e depois foi até a sala e disse à Odete, casualmente: “Vou ali comprar cigarros e não volto mais.” JR saiu de casa e foi morar num balança-mas-não-cai ali no Politeama, enquanto Odete ficou no apartamento da Ladeira da Barra com vista para a baía, novinho em folha.
Os meses passaram, JR se sentiu sozinho no mundo. Certo dia, ele passou em frente ao antigo prédio onde morava. Ficou parado olhando lá para cima e viu a luz do apartamento acesa. Subiu e bateu na porta, Odete que atendeu surpresa.
— Como cê tá?
— Eu tô boa.
— Tá precisando de alguma coisa?
— Até qui tô, viu. A torneira da cozinha tá com aquele pinga-pinga de novo.
JR entrou no seu ex-apartamento e foi lá no quarto dos fundos, onde pegou a caixa de ferramentas e foi dar um jeito na torneira. Enquanto isso, Odete foi dar uma de boa anfitriã, pegou uma long-neck geladinha e foi fritar umas rodelas de linguiça com farofa para aperitivo, como nos velhos e bons tempos. Depois do conserto feito, JR bebeu a cerveja satisfeito, comeu da linguiça e pôs um olhar de fome para cima de Odete e fudeu-lá alí mesmo no pé da mesa. JR gostou da novidade e Odete ficou agradecida que ela estava mesmo precisando daquela assistência. Na semana seguinte, ele lá apareceu de novo e fez outro concerto doméstico pelo qual Odete mostrou-se igualmente agradecida e satisfeita. E na outra semana, mais um concerto. De uma hora para outra, um apartamento tão novo como aquele começou a ter todo tipo de problema e JR parece até que adivinhava, pois ele sempre chegava na hora certa de ferramenta em riste. A vizinha de Odete que era uma amiga apreciadora de uma boa fofoca, vendo aquele entra e sai de JR – desculpa a figura de linguagem – bateu na sua porta para se inteirar dos fatos a fim de anunciá-lo na “Voz do Brasil”.
— Cês voltaram? – quis saber.
— Qui... menina, tu acredita que o traste é melhor como amante do que como marido?
Nessa vida nada é perfeito, mesmo. Cada qual, com seu cada qual... seja lá o que for que isso signifique. Não há mais casamento tradicional, cada um casa como quer e como pode, o importante é não ficar sozinho.
Rio Vermelho, 19 de julho de 2011.
terça-feira, 12 de julho de 2011
Crônica de um escândalo ou como nunca há provas suficientes.
Os jornais da semana denunciaram mais um escândalo. Felizmente eles são apenas um por semana, e não dois, três ou mais, pois, do contrário, eu não daria conta de acompanhá-los com o interesse devido. Abri o jornal ansioso por me inteirar dos detalhes, assim como faz uma dona de casa para saber as novidades dos capítulos seguintes de sua novela preferida. E lá estava estampado na primeira página, em letras garrafais, que uma alta autoridade do governo havia roubado umas pontes e estradas. Vejam a que ponto chegaram, não estão poupando nem as vias públicas! E toda vez que algo assim acontece, tenho a estranha sensação de que algo foi tirado indevidamente de meu bolso.
Embora escândalos envolvendo o governo sejam fatos abomináveis, uma vez que pessoas escolhidas por nós, através do voto obrigatório, para tratar da coisa pública não se ocupam de nada mais além do que cuidar das coisas delas, eles vão se tornando parte de nossa paisagem, assim como anúncios de outdoors ou os flanelinhas nos semáforos. Acompanhar os escândalos no noticiário virou uma distração, ainda que indigesta, igual a seguir os capítulos da novela do horário nobre – que tanto condenamos mas que não somos capazes de perder um só capítulo – e cuja trama é igualmente absurda e a maioria de seus personagens são seres igualmente desprezíveis. Eu não consigo mais passar sem acompanhar um bom escândalo e tenho crises de abstinência quando os jornais ficam mais de uma semana sem nenhuma novidade. Graças a Deus o pessoal de Brasília trabalha duro noite e dia para nos proporcionar entretenimento de qualidade milionária.
Eu só fico intrigado que todos estes escândalos só chegam ao nosso conhecimento por jornais e revistas que se dão ao trabalho de ir desencavá-los, e não porque os agentes públicos fiscalizadores, numa atitude de prestar contas à opinião pública, chamou a imprensa para botar a boca no trombone. Há claramente uma inversão de papéis, é a imprensa que está informando ao governo o que se passa no quintal deles e não o contrário. É como se eu ou você resolvêssemos, de uma hora para outra, dar uma de Sherlock Holmes investigando crimes ou prendendo bandidos porque a polícia está muito ocupada com outras atividades mais nobres para se ocupar disso. Em resumo, escândalos só existem por que há uma imprensa em nosso país para denunciá-los, do contrário tudo ficaria entre quatro paredes como a vida íntima de mamãe e papai, e a comidilha correria solta longe do nosso conhecimento.
E como nunca na história desse país nem um só agente fiscalizador veio a público, em primeira mão, revelar um mal feito pelo governo antes que a imprensa o fizesse, é porque talvez ele tenha procurado, mas nunca encontrou nada porque tudo não passa de pura invenção dessa imprensa golpista. Os escândalos não passariam de uma fabricação maquiavélica da própria mídia com o intuito de vender mais jornais e revistas e de aumentar o IBOPE do “Jornal Nacional” – alguém aí já ouviu o locutor dizer “Este escândalo é um patrocínio de OMO Total, o sabão em pó que limpa toda a sujeira”? – Mas como o tal agente público fiscalizador é impelido a tomar alguma atitude para salvar as aparências, geralmente ele faz lá umas investigações e termina engavetando o processo por faltas de provas... Deveria haver uma lei obrigando a todo político ladrão a passar recibo ou nota fiscal toda vez que recebesse a grana de um esquema, e só assim haveria provas contundentes. Mas o inquérito foi uma tremenda de uma encenação, o funcionário corrupto não é mesmo afastado de sua função, só saiu de férias usando o cartão corporativo do governo, o outro não foi preso de verdade e já no dia seguinte um zeloso juiz lhe concedeu um habeas corpus e aquelas algemas eram de mentirinha. Tudo terminou na santa paz para eles.
Uma das coisas mais divertidas de um escândalo é a expressão de surpresa e de desaprovação com que o governante ou o político enfrenta as câmeras quando o caso estoura. Ficam todos indignados como se fossem umas virgens e prometem tomar providências enérgicas doa a quem doer. Mas jamais um político ou governante foi parar atrás das grades – cumprir pena mesmo, sabe – por algum mal feito, isto porque, eu gostaria de lembrar ao caro leitor, foi ele mesmo quem criou as leis para fiscalizá-lo e que ao invés de puni-lo o livra de ir ser hóspede do Estado por uma longa temporada. Agente fica pasmo assistindo a tudo isso e com uma estranha sensação de o que estamos vendo é um clichê, pois já temos uma ideia do que vai acontecer depois e que é, indubitavelmente, coisa nenhuma, que no Brasil não é crime ficar milionário da noite para o dia sem ganhar na Megasena e o felizardo não é obrigado a comprovar de onde veio toda aquela grana. Não há provas suficientes, e o assunto está encerrado, agimos com rigor. Minha mãezinha, do alto dos seus quase noventa anos de sabedoria, me disse outro dia enquanto assistia muda pela TV mais um noticiário sobre o escândalo, “viu, você prefere ficar aí desconhecido escrevendo essas coisas, porque não vai ser político em Brasília, ficar famoso e milionário?”
Rio Vermelho, 10 de julho de 2011.
segunda-feira, 4 de julho de 2011
Fogueira e animação na Chapada.
No Nordeste, o São João, como nos referimos aos festejos juninos, é a mais importante de todas as comemorações, superando de longe o tradicional Natal. É um longo feriado em que as pessoas aproveitam para viajar para o interior, transformando as capitais em cidades fantasmas. Fui para a Chapada Diamantina passar o São João em Lençóis, onde lá estive pela ultima vez há quatro anos, num verão quente como o inferno. Aluguei, então, uma charmosa casinha ao pé de um morro e dei início à minha aventura literária escrevendo estórias e crônicas para este blog. Desta vez, no entanto, fui me hospedar na casa de meu irmão caçula, Pedro, no Alto do Tomba, o bairro mais alto da cidade e que acontece de também abrigar o cemitério cujos portões estão sempre abertos, embora raramente acolha novos moradores. Cheguei numa tarde de sol brilhante depois de ter deixado para trás nuvens carregadas de chuva que ameaçavam o feriado do soteropolitano, mas a temperatura estava tão agradável quanto um delicioso copo de cerveja servido bem gelado.
Meu sobrinho de 15 anos foi me aguardar na rodoviária, cujo prédio não passa de um pequeno quiosque com um balcão de passagens e outro que vende bebidas e lanches para a viagem e uma escadaria onde os viajantes aguardam pacientemente sentados nos degraus até a chegada do único ônibus que serve à cidade. O menino foi me guiar até a nova casa de meu irmão que eu não sabia para que lado ficava, e como Lençóis é uma cidade minúscula, costuma-se ir à pé aos lugares, o que, em parte, já faz parte da experiência ecológica e saudável de se ir à Chapada. Para quem nunca esteve em Lençóis, descrevo-a como uma cidade histórica de rareado número de habitantes, com ruelas apertadas e pavimentadas com pedras de cantaria e de casas geminadas construídas nos tempos do ciclo do diamante que deu origem à cidade que fica incrustrada há quase 200 anos num esplendido vale, cercada de exuberantes florestas que nos convidam a explorá-las em longas caminhadas e abundante manancial de água que deleita seus visitantes e moradores com deliciosos e revigorantes banhos de cachoeira ou em caldeirões cavados pela natureza na rocha.
Minha sacola estava meio pesada, em parte por causa dos presentes que eu levava em seu interior, sim, sempre eles, aonde quer que eu vá, estou sempre carregando presentes como se fosse eu um Papai Noel fora de época. O sobrinho resolveu pegar alguns atalhos para encurtar caminho até o nosso destino, o que já foi para mim uma aventura e, no meio da jornada, desejei voltar para a rodoviária para pegar o ônibus seguinte de volta para casa! Isto porque o tal atalho mais parecia uma maratona de resistência física. Começamos passando por vielas sinistras, subimos escadarias de pedras irregulares intermináveis, pegamos atalhos pelo meio do mato e atravessando barrancos entre córregos, subindo, sempre subidas íngremes e sem fim que me faziam bufar de exaustão carregando no lombo aquela sacola pesada, mas, ao contrário de isto ser um sofrimento, até me deu um certo alívio pois, se eu tinha alguma suspeita de que eu talvez padecesse de uma deficiência cardíaca, aquela dúvida se dissipou naquele momento. Meu coração nunca esteve tão sadio, batia forte querendo sair pela boca que tive de manter fechada durante todo o trajeto.
Pelo caminho até em casa, percebi como o São João é tão levado a sério por estas bandas, ao ver as ruas enfeitadas com bandeirolas coloridas e, em frente de cada residência, havia uma fogueira já montada à espera de ser queimada logo mais à noite. Cada qual era feita com toras de árvores serradas novinhas em folha, o que me fez dar uma olhada suspeita na floresta em volta da cidade, para me certificar que ainda sobraram árvores para o São João dos anos seguintes. Algumas senhoras varriam a frente de casa ou colocavam o último galho que faltava para completar a sua fogueira. Chegando à casa de Pedrinho, desmaiei na cama e só despertei ao anoitecer quando ele me acordou para informar que fomos convidados para uma festa junina na casa de um amigo.
E na hora marcada, lá eu estava pronto para a farra, revigorado pela soneca e pelo ar puro da Chapada. Fazia uma noite geladamente agradável e, por isso, joguei por cima um agasalho e fomos os três, eu, Pedrinho e a namorada, para a casa do senhor Taurino, nosso ilustre anfitrião. – Este homem faz uma proeza danada, com o seu único braço que possue, desenha paisagens da Chapada com areias coloridas dentro de garrafinhas que são vendidas nas lojas de suvenires em Lençóis, umas relíquias. – Pelo meio do caminho, ouvimos músicas juninas tocando por todos os lados, pulamos muitas fogueiras que ardiam em homenagem a São João, assistimos as faíscas coloridas dos fogos queimados por crianças e marmanjos alegremente, ouvimos estouros de bombas, testemunhamos um casamento na roça com a noiva chegando montada num jegue ornado com flores e crianças e adultos tentando subir no pau de sebo onde um monte de brindes e guloseimas os aguardavam lá no topo, mais típico que isso, só em documentário da Globo numa enfadonha sexta feira à noite.
Pegamos uma estradinha de barro que começava ao lado do antigo mercado e fomos caminhando deixando a cidade para traz e entrando no breu da noite tendo só o brilho das estrelas e as sombras das grandes árvores como nossos guias. A casa de Taurino ficava escondida por trás de uma enorme mangueira numa curva e não foi difícil avistá-la por causa de uma grande fogueira que queimava em sua porta. Era uma casa simples e de acolhedor calor humano, e o nosso anfitrião é conhecido por seu espirito festeiro e pela fartura de sua mesa. Logo na chegada, a sua patroa veio sorridente ao nosso encontro e pôs na minha mão um copo de quentão, que lá por aquelas bandas, é feito de cachaça, gengibre, cravo da índia e outros ingredientes, e me apresentou a uma farta mesa onde bolos de milho, aipim, carimã e tapioca, queijadas, pamonhas, arroz doce, beijus, amendoim cozido, milho cozido e assado quentinhos, mugunzá, mingaus, licores, doces, laranjas descascadas e cortadas em banda para serem chupadas e talhas de melancias estavam à nossa espera para serem devorados com apetite. No quintal da casa, para onde fui atraído pelo som animado de uma sanfona, triangulo, tambor e pandeiro tocando o autentico estilo pé-de-serra, o forró corria solto. Uma moça moreninha ali da região usando um vestidinho de chita florido e tranças no cabelo lançou-me um olhar tímido e sonso, chamei-a para dançar um forró agarradinho, de rosto coladinho no melhor estilo mela cueca.
Depois de duas danças, fui recobrar o fôlego – e a compostura – bebendo uma cervejinha gelada e me aproximando de uma roda onde só havia homens contando anedotas cabeludas que eu enriqueci com duas do meu repertório. Um dos homens era um conhecido garimpeiro das antigas e meu amigo, o João Valente, um velho forte e dos modos rudes, mas uma pessoa da melhor qualidade. Havia outro, um sujeito que eu conhecia apenas de encontrar e conversar em saraus culturais em Salvador, mas que eu sabia que era de uma família tradicional da região, um sujeito meio besta cheio de credenciais acadêmicas e da fala rebuscada e que era professor de história na universidade. Ele veio me cumprimentar calorosamente e começou a falar difícil sobre alguma coisa enfadonha que eu não dei importância, pois minha atenção estava voltada para uma assadeira contendo um leitão à pururuca que estava sendo posta à mesa juntamente com uma travessa de farofa de manteiga de garrafa com miúdos fritos na banha e outra de feijão tropeiro.
— E o que tem feito? – perguntei com água na boca sem tirar os olhos da mesa.
— Candidatei-me ao legislativo e fui eleito vereador de Lençóis. – respondeu orgulhoso.
— E a docência? – quis também falar difícil.
— Perdi a minha cátedra. – respondeu com expressão triste.
— Eu lamento muito. – disse depois de fazer uma pausa com um olhar sério sabendo o quando ele se orgulhava de ser professor universitário.
João Valente, que assuntava toda aquela estranha conversa com olhar desconfiado, aproximou-se do homem e deu-lhe uns tapinhas no ombro e falando por detrás dos seus grossos bigodes brancos e boca meio desdentada, disse solidário:
— Olhe... isto que aconteceu com a sua cátedra não foi culpa sua, viu. Você é homem e agente sabe disso. Você é macho! E foi por uma boa causa...
Aproveitei a deixa e fui com apetite ao leitão à pururuca.
Salvador, 3 de julho de 2011.
domingo, 19 de junho de 2011
Sobre pedaços de mamão e banana... e a natureza.
Para D.G.M.C. com carinho.
Fui subitamente retirado de meu sono certa manhã, antes da hora de eu habitualmente me por de pé. Justamente neste que é o mais gostoso dos sonos, por que este é o intervalo entre a vigília e a consciência, o que nos faz sentir uma agradável sensação de preguiça e de desejo de prolongar aquele momento de bem estar até o infinito. Acordei porque alguém ousava dar batidas em algum lugar lá fora pelas cercanias. Eram como suaves marteladas sobre a madeira verde, mas ainda assim irritavam. Batia duas vezes e parava, e depois reiniciava com uma só batida de cada vez entre breves intervalos. Eram batidas irregulares que começavam e se interrompiam, para depois de alguns instantes reiniciarem novamente, alguém lá fora não sabia cravar um prego. Praguejei contra aquele miserável que resolvera trabalhar naquela preciosa hora da manhã. E como o renitente barulho parecia não ter fim, levantei-me, a contragosto, para ver o que se passava e me arrastei até a janela do meu quarto, que naquela noite tinha dormido fechada, o que contrariava o meu hábito de deixa-la escancarada. Eis que me surpreendi ao ver a figura do meu inconveniente martelador pousado no parapeito bicando o vidro da janela, um pica-pau. Sem saber o que fazer, uma vez que qualquer reclamação verbal seria inútil dada à falta de compreensão que um pica-pau tem da linguagem humana, mesmo que este fosse um poliglota, resolvi apenas abrir a janela para que ele não bicasse mais o vidro. Dei o assunto por resolvido e voltei para onde eu estava e tentei voltar ao sono merecido.
Acordo todas as manhãs com o gorjeio dos pássaros anunciado o início de um novo dia, apesar de eu morar no coração da cidade e não no meio do mato. Pássaros e outros pequenos seres do mundo animal visitam livremente a nossa casa e vem e se vão a toda hora e por isso me sinto um bem afortunado por tais visitas. Nunca lhes faltam pedaços de mamão ou banana espalhados pelo jardim para saudar tão ilustres visitantes, graças aos cuidados de minha mãe que faz assim desde que me entendo por gente. Meu pai, quando andava nesta terra, tinha o mesmo hábito e não me recordo se isto foi invenção dele ou dela, coisa de gente que nasceu e se criou em fazenda. Os passarinhos são os primeiros que chegam, fazem o seu banquete até se fartarem e depois alçam voo para outras vizinhanças, em seguida, aparecem bandos de saguins que vem trepando pelos fios elétricos e depois pulam para as árvores aqui de casa e vão descendo de galho em galho até alcançar os pedaços das frutas bicadas que depois de comer bastante vão se embora para que lagartixas e calangos tenham a sua vez, sim porque do homem até as diminutas formigas comem daquelas frutas. À noite, no silêncio e no breu entre os galhos das árvores e plantas, surgem silenciosamente morcegos frugívoros que põem fim ao que sobrou, nada é desperdiçado nesta cadeia alimentar formidável.
Eu nem bem pregara os olhos de novo e senti sobre o rosto algo caído do teto e ao olhar procurando pelo o que se passava lá em cima me surpreendi com o mesmo pica-pau da janela fazendo seu ninho entre as ferragens da luminária logo acima de minha cama. Não quis entrar numa polêmica com a ave e achei mais sensato apenas empurrar minha cama para o outro lado e tentar continuar o meu sono. Os bichos circulam livremente por fora e dentro de casa, no meu quarto entrou este e fez um ninho mas não foi o único. Na ausência de gente na cozinha, pela porta que dá para o quintal, entram pássaros e lagartixas procurando por migalhas; os saguins arriscam-se até o peitoril da janela onde alguém esqueceu um pedaço de fruta ou biscoito. Até os morcegos erram o caminho no meio da noite e voam janela a dentro sobre nossas cabeças na sala procurando pela porta de saída. Certa noite, vi maravilhado uma imensa coruja branca empoleirada num galho da árvore em frente à minha janela, que alçou voo com suas compridas asas ao me olhar olho no olho. Acho que isto é o mais bucólico que se pode conseguir ao se viver num centro urbano onde, aqui em casa, gente e bichos convivem harmoniosamente, desfrutando da presença do outro, nós humanos por termos o privilégio da companhia de criaturinhas de Deus e elas por terem quem as alimente com frutas frescas.
Aquela noite, dormi de janela aberta para não ser acordado para abri-la de madrugada pelo pica-pau. Mas quando me levantei, percebi que ele não aparecera. Não veio também no dia seguinte, o que me deixou preocupado com a sua súbita ausência, será que ele se ofendeu com alguma coisa ou foi o meu ronco que o afugentou? Ou será que ele mudou seu horário de trabalho? De uma coisa eu estava certo, ele não voltara mais, apesar de minha janela estar sempre aberta para ele e ele ser bem-vindo. Percebi que a construção de seu ninho tinha sido deixada para trás inacabada. Lamentei e fiquei matutando o que teria acontecido ao bichinho.
Quando eu venho do banho de mar, tenho por hábito de tirar o sal do corpo no quartinho lá dos fundos por que a água de lá cai deliciosamente forte e fria como uma bica e completa toda a experiência de uma agradável manhã na praia. Ao abrir a torneira, a água bateu forte sobre o piso fazendo um estardalhaço e provocando uma agitação sobre a minha cabeça. Olhei para cima e vi no buraco da fiação elétrica onde fica o bocal da luz um ninho habitado e em volta dele voava o famoso pica-pau. Imediatamente fechei a água e saí de lá para não assustar aquela pequena família. O mistério do sumiço do pica-pau estava desvendado, que foi construir o seu ninho onde houvesse mais privacidade. Enquanto escrevo estas mal traçadas linhas, no final de uma tarde de domingo depois da chuva, ouço um trinado ao longe... bem-te-vi, bem-te-vi!
Rio Vermelho, 19 de junho de 2011.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
Sobre germes e colheres de pau.
Assisti a uma cena curiosa. Um senhor lavava as mãos. Mas ele o fazia de forma tão diligente e cuidadosa que não pude deixar de prestar atenção naquele gesto que era mais que um corriqueiro cuidado com a higiene pessoal. Primeiro, ele tirou do pulso o pesado relógio de metal que pousou cuidadosamente sobre a bancada da pia e, em seguida, encheu com sabonete líquido as mãos que se uniram em concha debaixo da torneira que jorrava água em abundância. Esfregou uma mão contra a outra demoradamente e depois cada dedo vigorosamente para, em seguida, ensaboar os braços até a altura dos cotovelos e depois enxaguá-los. Ao final, exibiu uma expressão de satisfação ao se secar num daqueles secadores barulhentos de ar quente. Eu diria que aquele senhor seria um neurocirurgião prestes a entrar na sala de cirurgia para realizar o milagre de salvar mais uma vida, se aquela patética cena não tivesse acontecido num banheiro de um shopping center.
Como comprovei em seguida, aquele senhor assistira uma recente reportagem de TV sobre germes e que ensinava como lavar as mãos corretamente. Ele não lava as mãos de outra maneira desde então, contou-me satisfeito. Acho engraçado como a televisão tem certa influência sobre a vida das pessoas e como elas acreditam em tudo o que assistem. Ora, a humanidade chegou até aqui sem precisar gastar tanta água e sabão para manter as mãos limpas e nem por isso sumiu da face da terra. O mundo nunca esteve tão asséptico, não desde que a indústria de material de higiene e limpeza descobriu as temíveis bactérias. Todos estão preocupados em acabar com elas onde quer que elas estejam, e haja bactericidas e água!
Existe, hoje em dia, uma infinidade de produtos de limpeza domésticos oferecidos nas prateleiras de supermercados que prometem nos livrar dos incômodos germes e bactérias, desde o tradicional sabão até gels perfumados em embalagens sofisticadas ou sprays que vão caçá-los flutuando no ar. Nunca o aparato foi tão grande e variado para combater estes invisíveis inimigos e as pessoas estiveram tão preocupadas em se livrar deles, como se estes fossem um incômodo que realmente perturbasse o nosso sossego e minasse a saúde. Faltou ainda inventarem um germicida para o beijo na boca, sim porque esta expressão amorosa de troca de salivas deve, indubitavelmente, conter germes e outro para o sexo buco-genital, por razões óbvias, é claro. Imagine a cena nada sensual, os amantes, pouco antes de se beijarem, gargarejam o produto que é cuspido e depois tascam o beijo! E quanto à outra forma... bem, dá pra imaginar, né? Eu, particularmente acho que essas coisas são como o sarapatel, se lavar demais, perde a graça...
Eu fico me perguntando o porquê de tanta preocupação com as pobres das bactérias e germes – elas são a mesma pessoa com nomes diferentes? – e se são elas mesmo que nos preocupam tanto. Não me refiro às boas práticas com a higiene mas ao zelo excessivo que afeta nossa rotina e nos deixa tão preocupados. Sem nos darmos conta, tais preocupações vem nos tornando indivíduos assépticos que evitam de se tocar para não se contaminar, começamos a desenvolver nojo por tudo. Aonde iremos parar com tanta limpeza? Do que temos tanto medo, mesmo?
E nesta febre contra os temíveis germes e bactérias, um restaurante abriu suas portas com uma novidade bizarra. Armou todos os garçons com colheres de pau que serviam como extensão de suas mãos ao servir a clientela, pareciam o Edward Mãos de Tesouras. Deste modo, suas mãos infectadas com o inimigo não tocariam em nada. Fui lá almoçar, o lugar estava estalando de novo. Pedi um ‘peixe delícia’, que é aquele que vem acompanhado de bananas fritas por que eu gosto muito dessa combinação. Ao provar o peixe, percebi pelo sabor que era um de água doce. E para confirmar minhas suspeitas, perguntei ao garçom que me servira e passava batido por minha mesa. “Pirarucu?” apontei para o prato, ao que ele respondeu sem parar: “Tiraram, sim, senhor!”
Ao final da deliciosa refeição, fiz um elogio.
— A comida estava uma delícia!
— Obrigado senhor, vou repassar esta informação ao nosso chef.
— Fiquei impressionado com a habilidade de vocês para manusear tudo com estas colheres de pau, vocês são muito higiênicos, nunca vi igual.
— O patrão é muito exigente quanto à limpeza. Imagine o senhor que até temos um cordãozinho amarrado no zíper da calça para não tocá-lo com a mão ao ir ao banheiro.
— É mesmo? Hum... E como é que vocês fazem para colocar o pau de volta dentro da calça? - perguntei educadamente.
—Ah! Para isto, usamos as colheres de pau! — respondeu orgulhoso o homem.
Rio Vermelho, 8 de junho de 2011.
sábado, 28 de maio de 2011
Um espécimen em extinção
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Adônis ao contrario
A minha feiura é extrema e a tal ponto de meus olhos se recusarem a acreditar no que estão vendo e, não é à toa que quase nunca me olho ao espelho, para não ter de encara-la todo santo dia. Ela chega a ser antiecológica e, por isso, vivo com o temor de ser multado pelo IBAMA por agressão ao meio ambiente. Entretanto, eu jamais moveria um único dedo para modificar este meu flagelo, sob pena de eu me transformar em outra pessoa ou num embuste. Ele faz parte da minha historia de vida e identidade, não tenho como reescreve-la. Seria como tentar apagar o meu passado, quando muito, eu conseguiria empurrá-lo para debaixo do tapete, mas como não sou nenhum presidente da republica ou político, deixo como está. Se a pessoa não consegue aceitar como ela é, engana-se ao pensar que algumas intervenções cosméticas irão realmente melhorá-la, não, pelo menos, como pessoa. A bondade, a humanidade, a correção de uma pessoa estão escondidos debaixo de sua epiderme e, poucos são aqueles privilegiados que têm o dom de enxergá-la.
Não tenho hábito de tomar o café da manhã assistindo TV, porque acho isso uma péssima maneira de se começar o dia, assistindo noticiários que primam pelo mau gosto ou enfadonhos programas que se propõem direcionados ao publico feminino, que ensinam a fazer pratos maravilhosos aproveitando as sobras do dia anterior ou dão dicas de economia domestica inúteis. Neste dia, porém, encontrei o aparelho ligado quando cheguei na sala e não me dei ao trabalho de desliga-lo enquanto comia o meu desjejum. Enquanto devorava meus ovos mexidos com crocantes torradas integrais, acompanhados de um delicioso e natural suco de laranja em caixa, ouvia a voz de um rapaz sendo entrevistado e, só depois de algum tempo fixei meu olhar no aparelho e minha atenção no programa, não tanto por ser um assunto de interesse, mas por sua bizarrice.
O entrevistado daquela gloriosa manhã era um desses ratos de academia, tão comuns nos dias de hoje. Seu corpo, muito atlético, era coberto por uma fina camisa regata para deixar à mostra a musculatura estufada e dura. O vocabulário era limitado, mas perfeitamente compreensível sem a ajuda de um interprete. Seu rosto tinha um olhar sereno e um sorriso que lhe conferia uma expressão meio parva. Na verdade, havia algo de muito perfeito e ao mesmo tempo pobre de expressão em seu rosto que me fazia lembrar as capas de revistas masculinas nas quais celebridades sofrem uma maquiagem virtual que nos faz ter duvidas de quem realmente sejam aquelas pessoas. Com redobrado orgulho ele contava sobre as intervenções que fez no corpo para transformar o raquítico e tímido jovem da foto que era exibida enquanto ele falava diante das câmeras, naquele monumento atlético no qual ele fora transformado.
Assim como muitas mulheres recorrem a implantes nos seios para ficarem mais exuberantes, ele fizera semelhante, poupando suor na academia, aumentou o tórax, disse sorridente. Parecia aquela sinistra e deliciosa ave “chester”, de peito avantajado e estufado que comemos na ceia natalina e que não existe na natureza e sabe-se lá de que mundo é que veio. Mas, para que o resultado de sua intervenção do peito não ficasse desproporcional com o resto do corpo, aplicou, também, silicone nas coxas para engrossa-las, na batata da perna e na bunda – no lado exterior dela, me refiro - que esta era muito minguada e não chamava a devida atenção, explicou. Eu nunca havia reparado, antes, em bunda de homem, mas agora ao ver uma redonda e bem torneada vou suspeitar que seja de silicone. Quando o seu corpo adquiriu as formas de um Adônis da modernidade, ele partiu para dar um jeito no rosto que não era feio assim, mas apenas não combinava com a expressão de “bad-boy” que queria causar com a sua nova imagem. Diminuiu a testa, não compreendi exatamente como, mas, talvez isto seja uma operação simples quando se tem o crânio oco como o dele. Acrescentou mais um pouco de silicone ao redor do queixo e estava pronto! Ficou com cara de alguém que sofria de constipação intestinal.
Meus caros, muitas horas de academia foram poupadas com as manobras do mestre do bisturi. Tanto esforço assim ele explicava, era para ingressar no mundo do cinema como ator de filmes de ação que, como todos sabem, o Brasil é um dos maiores produtores do mundo. Passados três anos de sua metamorfose, ainda não pintou aquele convite para fazer o tal filme e também nenhum outro. Mas ele está muito satisfeito com o seu novo corpo e garante que sua vida mudou para melhor. Enquanto aguarda ser “descoberto”, exibe o seu corpinho todas as sextas e sábados à noite como “go go boy” numa boate no centro de São Paulo.
Eu, por outro lado, devo admitir que eu não fui totalmente honesto com vocês. Sou um ser humano todo cheio de defeitos e me deixei levar pela vaidade... Certa vez, li um artigo de uma psicóloga conclamando a mulherada a namorar os barrigudos e discorria em seu texto sobre todas as vantagens e utilidades desse peculiar gosto. Que homens de verdade são os barrigudos, estes são fofinhos, confortáveis de deitar em cima e, se sabem cozinhar, não deviam deixar escapa-los pois dariam prazer tanto na mesa como na cama! Não são exibicionistas, estão sempre bem humorados porque não fazem dieta alguma e são ótimos amantes. Eu me animei, já estava cansado de minha vida de atleta malhando em academia, da minha barriga modelo tanquinho e de todas aquelas dietas. Fui num especialista e paguei para que ele implantasse em mim uma bela barriga de silicone estilo barril de cerveja! Nunca fiquei tão feliz na vida. Agora, só estou esperando para ser descoberto pela mulherada, mas esta parte terá de esperar até a próxima encarnação, e que não está muito longe!
terça-feira, 10 de maio de 2011
O Don Juan de Laranjeiras
segunda-feira, 25 de abril de 2011
Mas como é ridículo o amor... alheio!
“Como é ridículo o amor... alheio!” versificou Quintana numa espirituosa poesia ao amor. Assim como o amor é cego, não raro, também, falta-lhe o devido juízo que nos poupe de fazer papel de tolos. Realmente, quando estamos apaixonados, somos capazes de proezas que desafiam a nossa autocritica e senso de ridículo. Mas, ainda assim, pouco importa se fazemos papel de tolo ou não, o que importa é que temos para quem faze-lo.
Nem bem a internet veio ao mundo e ela logo se tornou numa daquelas novidades que todos querem experimentar, eu mesmo embarquei logo nela. E como muita pouca gente sabia para que servia e as ofertas de entretenimento, também, ainda eram escassas, o povo, então, descobriu nas salas-de-bate-papo o modo de se divertir fazendo novos e virtuais amigos mundo afora. Pois, foi nesta época que JR, um pequeno empresário de Maceió, adquiriu o seu primeiro computador, para conectar-se logo à rede e descobrir aquela incomum forma de fazer amizades com o nariz colado na telinha, pelas madrugadas a fora. Foi numa dessas sessões noturnas que ele conheceu a “Gatinha_da_serra”, codinome para LRJ, uma agente de viagens numa pequena agencia de passagens em Petrópolis. Ele próprio tinha o seu apelido que era Gato_escaldado_baiano, apesar de ele viver um pouco mais ao norte, que codinomes agente inventa do jeito que quiser, não é lavrado em cartório e nem precisa ser batizado.
Não era que quase toda noite, lá estava ele, o Gato_escaldado_baiano, teclando animadamente nas salas-de-bate-papo e, quando a Gatinha_da_serra aparecia e vinha conversar com ele, era como se o mundo ganhasse novas cores bonitas. Era um sentimento de alegria juvenil que ele não sabia expressar, ficar assim tão feliz feito um colegial por uma mulher que ele sabia só existir em forma de letrinhas na tela de seu computador. E, como era de se esperar, tais encontros virtuais tornaram-se obrigatórios e não havia um dia que eles não conversassem noite adentro pela boca da madrugada. Feito menino, JR ficava ansioso ao longo do dia esperando a hora do relógio bater meia-noite para ligar o seu computador para encontrar a Gatinha_da_serra na sala-de-bate-papo, sentimento igualmente compartilhado por ela em igual grandeza. Assunto, era o que parecia que não lhes faltava e quando não havia um, se inventava. É bom lembrar que naquele tempo só existia a conexão discada, que ocupava a linha telefônica enquanto se estava conectado na internet e só depois da meia noite é que era quase de graça, uma inconveniência danada. E foi assim que começou uma estória de amor entre um homem e uma mulher, dois desconhecidos, que navegavam pela internet perdidos na noite. O amor tem dessas coisas que eu considero sobrenatural, como podem pessoas que nem nunca se viram cair de paixão uma pela outra?
A vontade de se conhecerem pessoalmente foi um sonho que se tornou realidade. A força do o amor é capaz de tudo, inclusive colocar um homem para viajar 36 horas de ônibus até o Rio, que JR se pelava de medo de entrar em avião. Pois foi isso que o nosso herói fez, mas como eles se reconheceriam sem nunca terem se visto antes? Para tanto, LRJ teve uma luminosa ideia, embora não muito ortodoxa, que ela era uma mulher muito romântica e brincalhona, por isso, queria que este primeiro encontro fosse o mais romântico que alguém pudesse ter e fora do comum. Embora relutante, JR aquiesceu ao pequeno capricho da amada, como testemunharão adiante.
Nosso rapaz se enfiou num ônibus e rumou na jornada ao encontro da amada pela estrada afora, contando cada minuto que se passava até chegar ao seu destino que parecia estar do outro lado do mundo, enquanto assistia, pouco interessado, a paisagem se revelar através da janela ao seu lado. Ela, por sua vez, nos dias que antecederam à sua chegada, não falava em outra coisa com as amigas e na loja de passagens onde trabalhava, até os clientes já estavam casados de ouvir a estória de como se conheceram pela internet e que ele estava a caminho para encontra-la finalmente. E só demorou um dia e meio para que ele chegasse na rodoviária do Rio e embarcasse em outro ônibus para Petrópolis na sequencia. Chovia muito naquela tarde, uma neblina espessa cobria as serras no caminho para a Cidade Imperial como um imenso manto de vapor frio transformando o dia numa noite fora de hora. O ônibus serpenteava a estrada abrindo caminho com os seus potentes faróis. JR não via mais a hora de chegar.
Ao desembarcar em Petrópolis, chovia aos cântaros, mas isto não intimidou JR que foi parar direto na agência de passagens onde LRJ ainda trabalhava àquela hora do final do dia e como era de se imaginar ele chegou lá feito um gato molhado carregando sua bagagem. Ao entrar na loja, ninguém prestou muita atenção nele que ficou lá parado de costas para a porta esperando ser recebido. E como ninguém lhe deu atenção, ele então soltou um tímido miado. Isto mesmo, um miau pouco convincente... mas nada aconteceu como esperado! Ainda assim, ninguém lhe prestou atenção, por isso miou novamente e um pouco mais alto soando como uma pergunta, miau? Foi então que algumas pessoas se voltaram para a porta de entrada e notaram aquela figura de um homem de meia idade, forte e alto, com roupas encharcadas da chuva, parado lá de pé carregando uma sacola pesada e miando! Ah, o namorado virtual chegou, pensaram, mas porque ele estaria miando? Neste instante, LJR viu seu homem pela primeira vez e finalmente percebeu como era ridícula aquela cena daquele homenzarrão ali de pé diante de todos miando feito um palerma. Ela mesmo quis se esconder de vergonha pois jamais imaginara que ele fosse pagar aquele mico ainda que fosse sua ideia. E como ela ficara muda, JR, então, largou a sacola no chão, encheu os pulmões e, em seguida, soltou um vigoroso e alto miauuuu! Estou aqui oras, cadê você, minha gata. E, detrás de uma tela de computador, de onde se escondia LJR, ouviu-se um tímido e agudo miau, ao que foi correspondido com outro miau de JR, miau! LJR soltou outro miau, desta vez mais animada ao que JR miou de novo feliz. Miiiau! Ambos caminharam até o meio da sala, um estudando a fisionomia do outro e gostando do que viam e ao parem um diante do outro, se abraçaram amorosamente sob os aplausos da plateia encantada!
Rua Paissandu, 24 de março de 2011.