Outro dia, comentava
satisfeito aqui em casa: este ano, a minha tosse não veio. Todo verão, tenho
uma tosse esquisita, horrível mesmo, que vem, quase acaba comigo e depois some,
só retornando no ano seguinte. Dois dias depois, não deu outra, comecei a
tossir. Veio de forma discreta, como faz sempre, e foi evoluindo e se instalando,
tomando a força de uma besta! Tossia o dia inteiro e, por vezes, era acometido
de acessos violentos, curvando-me sobre o corpo, quase cuspindo fora os pulmões.
Tudo, então, ficava escuro como num apagão e eu só enxergava flashes de luzes que
piscavam como num curto-circuito. A voz ficava cansada e sumia por horas. Entretanto,
nunca me ocorreu ir a um médico por causa dessa tosse besta.
Uma querida amiga de São Paulo, a passeio em Salvador,
veio me visitar. Ao testemunhar minha tosse, sugeriu-me um xarope fitoterápico milagroso,
cujo nome passou-me num pedaço de papel. Corri até a farmácia, depois que foi embora,
e comprei aquela maravilha curativa cuja fabricação era numa cidade da Bahia de
nome sugestivo: Santo Antônio de Jesus. Entretanto, passados dois dias e de ter
consumido todo o frasco, minha tosse continuava firme e forte.
Aquele
meu estado enfermo começava a despertar a atenção e preocupação de amigos. Um
amigo italiano, impressionado, veio trazer óleo de hortelã, que faria a tosse
sumir. Colocou duas gotas na palma de minha mão e mandou que eu as friccionasse
uma contra a outra e as levasse à minha boca em forma de concha, aspirando
fundo. A sensação mentolada foi muito agradável e refrescante, mas aquela tosse
dava demonstrações de que não desistiria de mim assim tão fácil. Um vizinho árabe,
de quase noventa e meio cego, trouxe-me um unguento para passar na garganta. A
sensação era agradavelmente gelada, muito interessante, mas, também, não
funcionou. Duas amigas vieram me trazer mel, uma delas trouxe um pote enorme do
produto colhido na Chapada Diamantina. Ajudaria a suavizar e limpar as vias
aéreas, ela disse. Muito delicioso aquele mel, inclusive com um pedaço de pão,
mas a tosse não foi embora. Mastigue uns pedaços de gengibre, sugeriu um.
Aspire álcool, disse outro. Já tentou um chá de cascas de limão com alho, cravo,
mel e canela? Não falha nunca! Pois é, comigo nada disso deu certo.
Certo dia,
acordei mal. Hoje vou juntar-me ao Criador, pensei. Lá pelas tantas da tarde,
me dei por vencido. Procurei na internet por um médico e, por ventura, encontrei
um não muito longe aqui de casa. Depois de uma conversa sofrida, entrecortada
por acessos de tosse e perda de voz, o atendente, do outro lado na linha, informou-me
que a médica só teria horário no dia seguinte. Tarde demais, implorei, melhor
chamar o padre agora. Impressionado, o rapaz disse: “se o senhor vier agora,
será o próximo a ser atendido.”
O
consultório ficava a apenas três quilômetros e meio de casa, fui a pé, andei
rápido. De carro, jamais chegaria a tempo, por causa do interminável congestionamento
das 15hs. O consultório ficava num prédio estalando de novo e muito chique,
lembrei que não tinha perguntado o preço da consulta, estava na cara que iria
doer no bolso. Subi até o quarto andar, ao entrar na sala de espera, me deparei
com uma multidão, havia gente sentada e de pé. Ao me apresentar, o rapaz tomou
os meus dados pessoais e me mandou direto ver a medica. Não me senti culpado de
estar furando a fila, um moribundo tem lá as suas regalias!
Ao
entrar no consultório, um lugar branco, asséptico e impessoal, uma jovem e bela
mulher com a mesma descrição da sala, levantou-se de sua cadeira por de trás de
uma mesa vazia, exceto por um monitor de computador e teclado, veio me
cumprimentar. Vestia um desses jalecos grossos, longos e brancos como a neve. A
pele não era menos branca e os cabelos longos, lisos e pretos contrastavam com
o resto do cenário. Não usava maquiagem, joias ou qualquer adereço, não havia
nela nenhum apelo sexual, ao contrário, parecia assexuada. Era muito formal e
parecia desconfortável na presença de estranhos.
— Como
tem passado, doutora? – estendi-lhe a mão.
—
Muito bem. E o senhor?
— Não
tão bem e é isto que me traz aqui. – respondi sentando-me na cadeira
disponível.
—
Conte-me o seu sofrimento. – ela pediu.
— Eu
estou sofrendo de amor, doutora. Mas o que me traz aqui é essa tosse.
Enquanto
eu descrevia a minha tosse, ela digitava e não tirava os olhos do monitor do
computador. Eu não poderia dizer se ela estava atualizando o seu “feed de
notícias” do Facebook, twintando sobre a minha consulta, ou pesquisando no Google
um diagnóstico sobre os sintomas eu lhe descrevia com riqueza de detalhes
literários. Talvez houvesse um médico de verdade do outro lado e ela fosse
apenas uma intermediária. Depois de ela me fazer várias perguntas e eu de respondê-las,
ela pediu-me que a acompanhasse na sala ao lado, para me examinar.
Sentei-me
numa maca e, para minha surpresa, ela dispensou o tradicional “coloque a língua
pra fora e diga A”. A medicina moderna deve ter banido este ultrapassado
procedimento, pensei. Ao contrário, ela me mandou levantar a camisa, que
preferi tirar, e foi auscultar meus pulmões pelas cotas, com a ajuda de um
estetoscópio. Mandou tossir, respirar fundo, tossir de novo seguidamente. Fez
isto minuciosamente e demoradamente que me preocupou. Examinado as costas, fez
o mesmo pela frente. Pude ver de perto a sua pele perfeita e branca. Os olhos
eram azuis e gélidos, quase sem expressão. Senti a maciez de sua pele quando me
tocou, desejei aquela boneca de plástico.
— Pode
vestir a camisa. – ela disse concluindo.
—
Doutora, não vai querer examinar a minha próstata? – lancei-lhe um olhar
languido.
— Isto
é desnecessário. – respondeu surpresa.
— Mas
eu faço questão! – insisti.
Ela
deu as costas e voltou para a primeira sala e eu a segui logo atrás. De volta à
minha cadeira, perguntei-lhe:
—
Quantos dias ainda tenho, doutora?
— O
senhor ainda vai viver até os cem! – sorriu pela primeira vez.
Em
seguida, ela tentou dar um diagnóstico. Indicava que havia alguma coisa
inflamada entre a minha cabeça e os meus ombros, mas não precisava ao certo do
que se tratava. Chamou isto de uma traqueíte e depois de outra ite, enfim,
voltou-se para o computador e foi digitando novamente e depois imprimiu. Era a
receita.
— Mas
que letra bela e legível. – eu brinquei, mas ela não achou graça.
Prescreveu-me
umas gotinhas maravilhosas para fazer o nariz parar de escorrer, um poderoso
antibiótico, também muito utilizado para curar dor de dente de elefante e outro
comprimidozinho que, se não fosse tomado na dose e tempo certo, poderia
trazer-me complicações no fígado, rins, visão ou me fazer andar de cadeira-de-roda
pelo resto da vida.
— Eu
lamento ter de lhe passar este remédio, mas para o seu caso, não tenho alternativa.
– disse a doutora solenemente.
Despedi-me.
“Obrigado, doutora. Espero não revê-la nunca mais.” Fui embora.
Voltei
para casa andando, no caminho, passei na farmácia e comprei os medicamentos. Lá
mesmo, já tomei o primeiro comprimido, seguindo ordens médicas. À noite, tomei
mais uma dose e já sentia os efeitos da medicação, podia tossir sem ter a
impressão de que a cabeça explodiria junto.
Em situações
como esta é que agente descobre os amigos que tem, eu melhorei da tosse dias
depois, graças ao carinho, zelo e solidariedade dos amigos que continuaram me
telefonando para saber de minha saúde e me sugerindo remédios caseiros
milagrosos e, provavelmente, também, por causa dos remédios prescritos pela
doutora.
Rio
Vermelho, 10 de março de 2013.