segunda-feira, 28 de março de 2016

Encontros ao Pôr do Sol

Há pessoas têm a sorte de ter amigos muito generosos e que são empreiteiros, mas eu, menos afortunado, tenho um amigo que é um misantropo. Eu explico: apesar desta intrigante palavra evocar em nossa imaginação algum ser mitológico cujo corpo é metade humano e metade animal, não é nada disso. O misantropo é bem parecido com este meu amigo, um cara que prefere a solidão ao convívio com outras pessoas, que não tem vida social e raramente demonstra alegria pela vida. Em resumo, uma alma solitária.

Este meu amigo mora aqui no Rio Vermelho simpática casinha rodeada de plantas como se vivesse na roça e todos os dias ele se levanta ao raiar do sol e vai para cama ao desaparecer dos últimos resquícios do dia, como se a sua vida fosse regrada pelas manifestações da natureza. Curiosamente, algo provocou uma ruptura neste seu modo de ser, desde que começaram as obras de reforma na orla de nosso bairro.

No início, ele foi indiferente àquelas obras, mas à medida que as ruas da praia foram ocupadas por máquinas pesadas que escavavam e revolviam a terra noite e dia, ele tornou-se um crítico daquele desperdício de dinheiro público e, de critico, passou a ser um fiscalizador rigoroso à medida que aqueles trabalhos iam tomando forma. Durante o dia, ele visitava o canteiro de obras; curioso, questionava operários. Sempre que julgava que alguma coisa que não estava sendo feita de maneira correta, ele se manifestava aos trabalhadores ou sugeria a estes pequenas modificações no projeto. Pode-se de dizer, sem fazer injustiça, que ao final, aquela transformação pela qual passou o bairro foi um trabalho em conjunto entre a empreiteira e o meu amigo, sendo que a primeira pegou no pesado e o outro participou apenas dando palpites.

Depois que a obra da prefeitura foi finalmente concluída ao cabo de longos meses, outra mudança nos hábitos do meu amigo misantropo ocorreu. Ele passou a ir até a nova orla no final do dia para assistir o pôr do sol, quando era de seu hábito já estar se recolhendo em casa. Sentava-se num banco de madeira novo em folha posto estrategicamente de frente para o mar e ficava pensativo contemplando o final de um longo dia. Ao invés de ir dormir com as galinhas como era de seu costume, ele passou a ir para cama um pouco mais tarde, aproveitando a agradável brisa noturna do mar para dar um passeio ao longo da nova orla. Sentava-se na balaustrada para assistir as pessoas que aproveitavam aquele novo espaço para passear de bicicleta, andar de patins, de skate, jogar bola ou namorar nos bancos novos ou no gramado da encosta. Aquele prazer pela vida que aquelas pessoas demonstravam começava a contagiá-lo silenciosamente sem que ele percebesse.

No banco ao lado daquele onde ele costumava assistir o pôr do sol, certo dia, ele percebeu que também sentava uma moça com a mesma disposição. Depois que o sol desaparecia, ela ainda continuava alguns momentos admirando o horizonte manchar-se de vermelho com suas variações mescladas pelas nuvens até tornar-se um breu.

Aqueles encontros não combinados aconteciam com a mesma frequência que o sol se punha, e o meu amigo acostumou-se àquela companhia acidental. Os dois estranhos, contudo, jamais se falaram, nem nunca se cumprimentaram e se alguma vez trocaram olhares foi algo quase imperceptível. Até o dia em que o banco em que costumava sentar a moça fosse ocupado por um casal em busca de assistir o mesmo pôr do sol. Contrafeita, ela sentou-se no banco ao lado onde estava o meu amigo e, por educação, cumprimentou-o de forma impessoal, ao que ele lhe respondeu com a mesma cordialidade. Depois ficaram mudos observando atentos ao que se passava no horizonte.

No dia seguinte, o banco em que a moça costumava sentar-se estava novamente ocupado e, como na vez anterior, ela cumprimentou o meu amigo e foi sentar-se ao seu lado. Ele sentiu um pingo de satisfação com aquela novidade. Ele, que costumava chegar um pouco antes que ela, passou então a informar educadamente àqueles que ameaçavam sentar-se ao seu lado que o lugar estava reservado e indicava-lhes o banco vizinho. Aquela inocente artimanha criou na moça o hábito de sentar-se ao lado dele, mesmo que o outro banco às vezes estivesse desocupado.  O tempo foi passando e talvez os dois não tivessem percebido que, embora o sol se pusesse a cada dia mais para o ocidente em decorrência da mudança de estação, deixando, portanto, de ser visível naquele ponto onde os dois estranhos se encontravam, eles continuassem a assistir um pôr do sol que não estava mais lá. Certo dia, foi a moça quem tomou a iniciativa ao pôr delicadamente a sua mão sobre a do meu amigo. E ele retribuiu aquele gesto inesperado apertando com felicidade a mão dela entre a sua e os dois, a partir de então, nunca mais se largaram.


Rio Vermelho, 22 de março de 2016.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Pedido a Iemanjá

Dolores saiu de casa mais cedo naquela bela manhã ensolarada. Vestia-se de branco da cabeça aos pés e ainda nem era dia de Oxalá.  Antes de seguir rumo ao trabalho, no entanto, ela foi cumprir uma pequena obrigação. No caminho, cruzou com centenas pessoas pelas as ruas do Rio Vermelho que seguiam na mesma direção, alegres, carregavam à mão ramalhetes de flores perfumadas. Dolores lembrou que precisava fazer o mesmo, parou num vendedor ambulante, havia centenas deles espalhados pelas vias, e comprou um ramo de rosas brancas. Era 2 de fevereiro, dia de Iemanjá.

Ao chegar ao seu destino, ela encontrou uma longa fila que se estendia desde o abrigo que foi erguido ao lado da igreja de Santana para receber as oferendas à Iemanjá. A fila se prolongava ao longo da balaustrada sem que ninguém demonstrasse pressa ou aborrecimento por estar sob o sol forte, afinal era dia de festa no mar. Para minorar os rigores calor, Iemanjá mandou soprar uma suave brisa sobre os seus admiradores. Dolores correu para pegar o final da fila temendo que esta duplicasse de tamanho em poucos instantes.

O seu pedido a Iemanjá era o mesmo do ano passado. Ela pedia para ser agraciada com um homem, um espécimen masculino só para ela. Queria que o moço lhe aplacasse a solidão, a carência afetiva, a falta de um abraço forte e de um beijo duradouro, e balançasse as suas noites com o seu ronco estridente ao seu lado. Ela considerava o seu pedido singelo e ansiava para que daquela vez fosse atendido.

A pessoa que estava logo à sua frente na fila era um homem gordinho como ela. Ele virou-se para cumprimentá-la e o fez efusivamente. Ele demonstrou reconhece-la, apesar de ela não se lembrar dele.

— Cá estamos nós novamente, na mesma fila e no mesmo lugar, já é om terceiro ano que nos encontramos! – ele disse com um largo sorriso.

— Sim, todos os anos eu venho prestar a minha homenagem. – ela disse por dizer.

— Eu sempre faço um pedido. – ele segredou.

— Eu também. – disse com um sorriso forçado.

— Este ano eu trouxe um perfume para variar. Vamos ver se ela vai me atender.

Dolores arrependeu-se de não ter feito o mesmo. Ela sempre ofereceu flores, talvez Iemanjá desejasse algo diferente dela. Subitamente e sem motivo algum, ela passou a sentir raiva daquele rapaz de ar ingênuo. A ideia de que alguém fora mais criativo que ela a desagradou. No entanto, o pobre rapaz se desdobrava para ser simpático, afinal ele pedia à Iemanjá uma namorada e aquela poderia ser a sua chance.

Quando chegou a vez dele deixar o seu presente no balaio de oferendas, ele o fez fazendo uma pequena prece para que Iemanjá trouxesse felicidade ao seu coração solitário e ao invés de ir embora logo em seguida, ele ainda esperou por Dolores, queria lhe falar. Ele precisou juntar coragem para fazer o que estava prestes a fazer.

— Eu gostaria de manter contato, poderia me dar o seu nome para que eu a adicionasse à minha lista de amigos no Facebook?

— Desculpa, mas eu só adiciono amigos muito próximos. – ela respondeu secamente.

Ele ficou desapontado e se foi embora.

Por mais que Iemanjá tentasse atender ao pedido de Dolores, ela cegamente o recusava. Talvez ela imaginasse algum tipo de milagre ou que o seu homem viesse trazido pela maré e jogado na praia.


Rio Vermelho, 11 de fevereiro de 2016









  


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Presente de Aniversário

A moça estava feliz porque era uma linda manhã e porque era bom estar naquele estado de contentamento. Ela sentia que era possível que as coisas dessem certo apenas com um sorriso sincero e pensamentos positivos, era como se todo o universo conspirasse a seu favor. No entanto, era mais provável que o real motivo de tanta felicidade fosse o fato de ela estar apaixonada e na noite anterior o namorado a ter levado para comemorarem juntos o dia do seu aniversário. Ele a levou para jantar num restaurante chique e a presenteou com um smartphone caro, seguido de uma noite maravilhosa num hotel cinco estrelas. Naquela manhã ensolarada, ela acordou mais tarde, como era de se esperar, e foi para a faculdade tentar assistir a última aula. Durante a viagem de ônibus, ela ainda enviou uma mensagem de texto para o namorado de seu novo smartphone para lhe agradecer pela noite inesquecível e pelo presente de aniversário.

Ao começar a aula, ela percebeu que tinha sido bobagem ter ido à faculdade, porque os seus pensamentos estavam longe, nos acontecimentos da noite anterior e o seu corpo ainda continuava embriagado pelo estado de languidez que o namorado tinha deixado e que a impedia de se concentrar na aula. Cada detalhe da noite anterior se repetia em sua mente como num filme, o jantar delicioso, o vinho excelente, o presente embrulhado num papel fino com um laço cor de rosa, acompanhado de um cartão no qual ele escreveu uma poesia para ela, o resto da noite fazendo amor. Ela estava convencida de que o seu namorado era um homem maravilhoso e ela estava a cada dia mais louca por ele.

Mesmo não conseguindo prestar atenção à aula, ela ficou até o fim, perdida em recordações e, em seguida, voltou para casa planejando dormir o resto da tarde. Caminhou até o ponto de ônibus debaixo do sol abrasador, mas nem se importou porque tudo estava maravilhoso para ela. Uma pequena aglomeração de pessoas que aguardava no ponto tentava se proteger dos raios solares buscando sombra debaixo do abrigo e ela tentou arranjar um cantinho entre elas. Ela sentiu vontade de dizer mais uma vez ao namorado que o amava e resolveu enviar-lhe outra mensagem. Enquanto digitava aquele texto, um rapaz aproximou-se e pediu as horas. Ela teve a impressão de reconhecê-lo, talvez da faculdade, e sorriu para ele amistosamente, depois buscou na tela do aparelho pelas horas. E antes de ela lhe responder, ele encostou um objeto contundente entre suas costelas que lhe provocou dor e ordenou que lhe entregasse o aparelho sem fazer alarde.

Ela teve um sobressalto e conteve o gemido. Apenas deixou que o rapaz tirasse de sua mão o aparelho, pois o seu estado de choque a tinha desprovido de reação. Em seguida, ele sumiu na multidão do mesmo modo inesperado com que surgiu, e ela ficou ali, de pé, com as pernas trêmulas.
Quando o ônibus veio finalmente, o que lhe pareceu durar uma eternidade, ela correu na frente de todos e foi a primeira a entrar na condução. Seu coração ainda palpitava e ela soluçava sufocando o choro. Um senhor que estava de pé logo atrás enquanto ela pagava a passagem, percebendo o seu mal-estar perguntou se ela estava passando bem. Ao que ela respondeu que tinha acabado de ser assaltada no ponto do ônibus – em plana luz do dia e em meio à multidão. Foi quando não contendo as lágrimas, ela desabou a chorar convulsivamente. Levaram o celular que meu namorado me deu, ela disse atraindo olhares de simpatia e consternação. Alguém se levantou e ofereceu-lhe o lugar e ela sentou ainda um pouco trêmula. Em seguida, cobriu o rosto com as mãos escondendo o sofrimento e abafando o choro. Passados alguns instantes, depois de se controlar, levantou a cabeça olhando para o vazio com um olhar de desilusão e derrota.


Rio Vermelho, 24 de janeiro de 2016

sábado, 9 de janeiro de 2016

Uma Indireta

Era a hora do almoço. E a moça, pedindo licença educadamente, sentou-se à mesa trazendo uma bandeja. O restaurante comercial ainda estava vazio, por isso ela bem poderia ter escolhido qualquer uma das mesas desocupadas disponíveis, mas ela preferiu justamente aquela em que também sentava-se um belo rapaz. Este estava tão entretido com a sua comida que mal percebeu quando ela sentou-se na cadeira à sua frente.

Com uma mão, ela brincava com a comida com a ajuda do garfo e com a outra conversava ao aparelho celular. “Acho que não vou a lugar algum, – ela dizia com uma expressão de desapontamento. – não tenho companhia para ir, eu simplesmente não tenho com quem ir. Eu queria tanto ir ao show na Praça Cairú, mas não consigo encontrar nenhuma companhia. ...Nãooo, não querida, eu não consegui encontrar um homem para ir comigo, todos viajaram este final de ano.”

Conversas ao celular em locais públicos são como se confessar ao padre em transmissão em cadeia nacional, deveria ser um momento privado, mas todo mundo participa quer queira ou não. E pelo tom de voz da moça, ela parecia não ter a menor intenção de fazer daquele seu infortúnio um segredo guardado a sete chaves. O rapaz não pôde deixar de ouvir aquela história e deu uma olhada na moça pelo canto do olho, rápida o bastante para não ser percebida. A moça repetiu mais uma vez que não tinha companhia masculina para a virada do ano e lamentava ter de ficar em casa sozinha.

— Mas que coisa, – disse o rapaz ao perceber que a conversa terminou. — uma mulher tão bonita como você, da sua qualidade, deveria era estar esnobando convites.

— Pois, é. – ela disse fazendo ares de vítima.

— Se eu não fosse um homem casado e fiel à minha mulher, eu ia passar esta virada do ano com você e a gente ia se divertir muito!

— Nossa, fiquei até curiosa. – ela disse com um brilho de esperança nos olhos.

Mas o rapaz se levantou da mesa, pois já tinha terminado de comer. Desejou boa sorte à moça com um sorriso encorajador que a fez se derreter e foi embora. Ela, entretanto, não esmoreceu, estava decidida a virar o ano nos braços de um homem, qualquer um que valesse a pena. A sorte parecia que estava ao seu lado, entretanto. Mal o rapaz foi embora, outro ocupou o seu lugar cumprimentando-a educadamente.

A moça, que não desgrudava do aparelho celular, conversava novamente. “Acho que não vou a lugar algum, – ela dizia com uma expressão de desapontamento. – não tenho companhia para ir, eu simplesmente não tenho com quem ir. Eu queria tanto ir ao show na Praça Cairú, mas não consigo encontrar nenhuma companhia. ...Nãooo, não querida, eu não consegui encontrar um homem para ir comigo, todos viajaram este final de ano.”

O rapaz à sua frente tirou os olhos de seu prato e observou atentamente aquela bela moça que parecia largada no mundo. Ouviu cada palavra daquela conversa e, ao final, ele se dirigiu a ela:

— Sabe, eu trabalho na assistência técnica da marca deste seu celular e nunca tinha visto antes alguém conseguir conversar com o aparelho desligado. – ele disse com um sorriso maroto que pegou a moça de surpresa. – Mas eu aceito o seu convite para passarmos a virada de ano juntos!


Rio Vermelho, 6 de janeiro de 2016.




sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O Desejo de Ano Novo

Carmela tinha um importante compromisso no final daquela tarde e isto explicava a sua inquietação à medida que a hora se aproximava. Depois do trabalho, ela tinha uma hora marcada com mãe Joelma, cujas habilidades para ler os búzios, as cartas e o tarô, tirar mau-olhado, trazer a pessoa amada, trazer fortuna, resolver brigas de família ou no trabalho e muitas outras maravilhas eram anunciadas pelos postes e muros do bairro. Como fazia sempre às vésperas do ano novo, a caixa da Farmácia Pague-Bem queria ouvir da mãe-de-santo o que o futuro lhe reservava.

Mãe Joelma, que tinha uma memória de elefante, não apenas lembrava-se de Carmela, como também do futuro que lhe enxergara no ano anterior. Por isso, ela tinha sempre o cuidado de não repetir a mesma “visão” ao mesmo cliente. Assim sendo, quando a caixa sentou-se à sua frente com ares de quem aguardava boas notícias, apesar das manchetes dos jornais pintarem uma visão sombria do novo ano que batia à porta, ela já tinha uma ideia do que lhe diria.

No ano anterior, Joelma previu que Carmela ia ter muita saúde e que ela ia conhecer o homem de seus sonhos. De fato, tirando a dengue que pegou e a bursite que apareceu no braço esquerdo, no item saúde, tudo foi perfeito em 2015. Quanto ao homem de seus sonhos, há três anos que ela sonhava com ele, mas este nunca se materializava em carne e osso. O único espécimen do sexo oposto que lhe causou – e ainda lhe causava – alguma emoção naquele ano foi um assaltante que, ao  lhe apontar a arma, levou-lhe o caríssimo smartphone. Todo santo mês, quando pagava mais uma prestação do aparelho que nem mais era seu, não tinha jeito, lembrava-se do miserável com fúria no coração.

Naquele dia, Joelma foi mais cautelosa, disse à moça que ela continuaria trabalhando na farmácia, apesar do crescente aumento do desemprego no país e que ela dedicaria aquele ano para o seu crescimento interior. Não falou de homem dos sonhos algum desta vez, no entanto. Carmela ficou desapontada com aquela predição, ficaria mais contente em conhecer o homem de seus sonhos e dispensava de bom grado o crescimento interior. Pagou pela consulta e foi-se embora.

Antes de ir para casa, Carmela foi ao Shopping comprar um pijama, não que ela realmente precisasse de um. O motivo daquela despesa desnecessária era por uma razão maior: iria tentar uma simpatia que uma amiga lhe ensinara. Se dormisse todas as noites, a partir do primeiro dia do ano, com um pijama masculino, era garantido que arranjasse logo um homem.

Talvez o destino quisesse pregar uma pequena peça em Carmela ao conduzi-la para a única loja onde havia pijamas masculinos, mas que, para sua surpresa, só havia uma única peça disponível na prateleira. No instante em que ela pôs a mão no artigo, uma outra fez o mesmo rapidamente. Eu vi primeiro, o belo rapaz protestou. Eu só vou querer a parte de cima, ela disse. E eu só a de baixo, ele falou num tom de quem fechava um acordo pacificador. Bem, quem já viu filme assim, é capaz de imaginar o desfecho desta história.

Mal o ano começara e o sonho de Carmela se realizava graças a um pijama com o qual dividia com o homem de sua vida. E aquela história de crescimento interior que lhe disse mãe Joelma, foi uma “visão” mal interpretada pela mãe de santo ao ler os búzios, o que aconteceu realmente foi que o rapaz faturou Carmela logo de primeira e lhe fez um filho na virada do ano novo, foi este o seu crescimento interior!

Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2016.




quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O Filhote

Numa certa ensolarada manhã de dezembro em que todos ainda dormiam aqui em casa, ao passear distraidamente pelo jardim, fui surpreendido com a presença de um pequeno pássaro pousado no chão próximo ao pé de framboesa. Habituado a vê-los empoleirados em galhos inatingíveis ou voando ligeiramente pelo espaço, achei aquela situação curiosa. Devo admitir que a única ave cujo conhecimento possuo algum domínio é a galinha e, assim mesmo, em seu estado assado ou ao molho pardo, que são as minhas especialidades. Por isso, eu não soube identificar se aquela seria um pardal ou um bem-te-vi. Observei aquele bichinho que se mantinha imóvel, apesar de minha presença ameaçadora, como se me ignorasse ou se fingisse de pedra ou toco de pau para não ser percebido pelo predador, pois é esta artimanha que lhe providencia a natureza para garantir-lhe a sobrevivência. Sua penugem era da cor de palha seca quando misturada ao pó da terra quando chove e estava eriçada, dando-lhe o aspecto de um novelo de pequenos e finos gravetos. Pobre criatura, deve estar doente, pensei sem saber como agir.

Alguém mais bem ilustrado aqui de casa deu uma olhada e descreveu-o como um filhote de sabiá que despencara do ninho e que provavelmente este ainda não dominava a arte de voar. Que situação daquele indefeso filhote, fiquei imaginando como eu poderia fazer por ele. Numa pequena vasilha coloquei água fresca que pus ao seu lado juntamente com um pedaço de banana, aquilo deveria ser de alguma ajuda.

Talvez a mãe daquele pequeno pássaro tivesse lhe orientado a não falar ou a aceitar coisas de estranhos e, por isso, ele ignorou a comida que lhe deixei. Vez por outra, ela própria, presumindo que fosse a mãe e não o pai ou qualquer outro parente mais próximo, vinha trazer-lhe alimento que colocava diretamente em seu bico. Até nisto a natureza é prodigiosa, ao prover os animais de amor por aqueles que ainda não são capazes de tomar conta de si mesmos. Fiquei maravilhado com a aula de ciências naturais.

Nós aqui de casa, que somos afeiçoados por animais, logo nos compadecemos por aquela pequena ave indefesa e vez por outra chegávamos até a janela para dar uma olhada, torcendo para que ela tivesse voltado para a segurança de seu ninho, escapado das garras de algum predador. Alguém viu um gavião rondando a vizinhança e se pôs de guarda com uma vassoura para afugentá-lo. E quando a escuridão da noite chegou escondendo-a de nossa guarda, temi por sua fragilidade ante as criaturas noturnas.

E bem cedo na manhã seguinte, quando o procurei no lugar onde esteve o dia todo, para minha tristeza, não o vi. E num ato contínuo, escrutinei com um pingo de esperança até o mais recôndito recanto do nosso jardim e me alegrei ao revê-la a poucos metros de onde estivera todo o tempo no dia anterior, na mesma posição de estátua, na mesma solidão, desta vez, ao lado do pé de lima. E o dia repetiu-se tal como no anterior, com as vindas e idas de sua mãe para lhe trazer alimento e a nossa constante vigia.

Foram cinco dias de aflição e expectativa e, em cada manhã, a mesma emoção de vê-lo firme resistindo ao tempo e à solidão. Quanto mais aguentaria aquela criaturinha, era uma dúvida que me intrigava. Estava claro que a sua volta ao ninho dependia da capacidade de voar que ela ainda não dominava, apesar de já possuir o equipamento necessário, asas e penas. Talvez fosse questão de poucos dias até que fizesse o seu primeiro voo solo até o ninho.

Finalmente, numa certa manhã, encontrei-a no mesmo lugar do dia anterior, inerte como uma pedra, pobrezinha. Foi poupada pelos predadores, mas não resistiu à espera para aprender a dar o seu primeiro voo da esperança. Foi enterrada junto com as folhas secas de nosso jardim.


Rio Vermelho, 24 de dezembro de 2015.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A Fruta-Pão

Das distantes reminiscências de minha infância, eu ainda me recordo de um frondoso pé de fruta-pão que existia no quintal da casa de um coleguinha da escola, meu vizinho. Eu não devia ter nem cinco anos e fiquei fascinado ao ver pela primeira vez na vida o fruto daquela árvore bonita que era redondo, verde e grande como uma bola de futebol, pendendo da árvore aos montes feito decoração natalina. Mais abismado ainda, eu fiquei quando a mamãe me contou que aquela coisa se chamava fruta-pão. Na pueril imaginação da criança que ainda estava descobrindo as coisas básicas do mundo, eu logo imaginei que o pão que vinha da padaria do Manolo saía de dentro daquela fruta. O encanto pela fruta, no entanto, se desvaneceu quando a mamãe colocou um pedaço cozido em minha boca. Fiz uma careta de nojo e nunca mais quis comer aquela coisa insipida e sem graça.

A caminho da padaria onde costumo fazer compras, vejo um pé de fruta-pão no quintal de um vizinho do bairro. Este tipo árvore, como os sapotizeiros, pés de cajá, ingá, graviola e fruta-do-conde, cederam a paisagem urbana aos tediosos prédios de apartamento. Observo com curiosidade aquela árvore carregada e me pergunto se o meu paladar teria amadurecido com o passar dos anos e que, se agora, eu colocasse um pedaço na boca, eu iria gostar e achar que aquilo era a maravilha que muitos diziam.

O vizinho vai dentro de casa e de lá traz uma bela fruta-pão no ponto. Agradeço a sua generosidade e penso em retribuir-lhe com as graúdas e adocicadas limas do meu jardim, cuja árvore já está carregada e promete uma safra recorde lá pelo mês de março. Já estamos em inicio de dezembro e como nos dias de hoje o tempo corre à velocidade 3G, não tardarei a retribuir-lhe a gentileza. Ponho alegremente a minha fruta-pão debaixo do braço e sigo para a padaria.

A sorridente senhora que me atende sempre ao balcão, ao notar a minha fruta-pão comenta enquanto os olhos buscam uma doce recordação em sua memória que nunca mais tinha comido uma e que elas eram tão gostosas. Minha boca se encheu de esperanças.

E quando voltei em casa, dividi a fruta ao meio com a ajuda de uma faca e retornei à padaria o mais rápido que pude. E a melhor parte desta história toda, foi a sincera expressão de surpresa e contentamento que fez a balconista ao receber o pedaço de fruta-pão de minhas mãos. Como gestos tão simples são capazes de tornar feliz o dia de uma pessoa e, também, em algo memorável. Eu também ganhei o meu dia.

Quando voltei para casa, a fruta-pão já estava cozida e fumegante à minha espera na mesa do café, que aqui em casa é servido às cinco horas da tarde e já é o nosso jantar. Minha boca se encheu de água só de imaginar como seria comê-la com o café fresco e quente. Pus na boca um pedaço besuntado com manteiga que se derreteu e foi como se eu tivesse voltado à minha tenra infância. Descobri que o meu paladar em nada tinha mudado, nunca mais voltarei a comer uma fruta-pão em minha vida, mas que frutinha mais em graça!


Rio Vermelho, 1 de dezembro de 2015.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Duro Dia de Trabalho de Uma Funcionária Pú-blica

Mal se passou meia hora desde que pôs na cadeira o traseiro e os olhos já procuravam o grande relógio de parede à sua frente. Ao verificar que o dia estava apenas começando, contraiu os lábios com uma expressão de desânimo, só de imaginar as longas horas que ainda lhe restavam. Num sinal de desespero, fez uma prece para que o dia passasse logo, ao olhar indignada para os dois ponteiros que pareciam estar congelados.

Ana Rita orgulhava-se de ser uma funcionária pública e de trabalhar num obsoleto departamento onde nada acontecia, ou melhor, onde não havia quase nada o que fazer. Era o emprego dos sonhos, um salário que não era de se jogar fora, estabilidade no emprego, aposentadoria integral garantida e quase nenhum serviço. Naquela repartição de nome comprido e pomposo, abundava de funcionários que mal davam conta do escasso trabalho. Então, só lhe restava bater o ponto na hora certa ao chegar e arrumar-se meia hora antes de ir embora. Aquelas eram tarefas que ela fazia a satisfação de dever cumprido e ao mesmo tempo com uma expressão de martírio.

Para ajudar a passar o tempo, a cada meia hora, ela levantava-se de sua mesa e ia até o final do corredor, onde um bebedouro lhe aguardava. Servia-se com um copo como se estivesse morrendo de sede enquanto comentava com outro colega que beber bastante água fazia muito bem aos rins, embora aquela valiosa informação científica tivesse sido obtida da sessão de curiosidades de uma revistinha de palavras cruzadas.

Enquanto o tempo se arrastava, ela pensava no noivo, organizava mentalmente a festa do casamento e fazia uma lista do enxoval e de tudo que precisariam comprar para montar o lar. Queria que tudo fosse novo em folha, dava azar começar um casamento com um fogão ou uma geladeira já usados, imagine pôr na sala um sofá que já tivesse um passado. Segundo as suas palavras, o noivo é que possuía um emprego de verdade, era auditor fiscal e com o que ganhava dava para comprar tudo novinho à prestação. Ele lhe daria a segurança que sempre sonhara e uma família feliz.

Em frente à sua mesa e de costas para ela, sentava-se outra funcionária. A posição das duas mesas costumava ser de frente para a outra, até o dia em que as duas colegas se desentenderam. Por causa de que mesmo? Elas nem mais se lembravam. Entretanto, o orgulho ferido de cada uma fez com que parassem de se falar e o assunto foi resolvido de maneira prática: a outra virou a sua mesa de frente para a parede e ficou de costas para ela.

No final da manhã, Ana Rita olhou para a sua mesa como se não a reconhecesse e viu com surpresa sobre esta uma pequena pilha de papéis. Era algum serviço que aguardava a sua atenção. Esta sua surpresa não foi causada pelo fato de não ter notado antes aqueles papéis, mas por estes ainda estarem ali desde a semana passada. Então, numa atitude diligente, aproximou a pilha para perto. Procurou pela caneta na gaveta da mesa e antes de começar a dar andamento ao trabalho, lembrou que precisava tomar um pouco de água para manter os rins saudáveis. Pôs a pilha de papéis de volta em seu antigo lugar. Era interessante como sempre que se punha a iniciar uma tarefa, sentia um pouco de sede ou vontade de ir ao banheiro para se desfazer daquela água toda que ingerira ao longo do dia.

Quando chegava a hora de ir embora ao final da tarde, ela já estava pronta há muito tempo. Registrava pontualmente a sua saída e ia encontrar o noivo que a aguardava no lugar de sempre. E quando ele lhe abraçava afetuosamente e lhe perguntava como fora o seu dia, ela, então, lhe lançava um olhar martirizado e respondia com a voz quase falhando que estava com dor de cabeça de tanto trabalhar e revirava os olhos quase desfalecendo.

Rio Vermelho, 4 de novembro de 2015.