quinta-feira, 21 de agosto de 2014

É no Que Dá, Namorado Frequentar a Casa de Judith.

E já se ia um ano e meio de namoro. Era daqueles das antigas, tipo namoro de porta. Arnaldo vinha toda noite ver Judith. Sentavam-se na mureta do portão de entrada em frente à casa. E ficavam lá namorando ao luar. O pai ficava de longe, lia o jornal na sala ao lado da janela. Para não ser indiscreto, vez por outra dava uma olhada para ver se os dois estavam se comportando. Só quando ele bebia uma cerveja no jantar, que Arnaldo, muito espertamente, fazia questão de ir comprar, é que ele baixava a guarda. Mal sentava para ler e caía num sono deslavado. Aí os dois pombinhos aproveitavam a oportunidade indo para um canto escuro ao lado da garagem. E entre beijos e abraços lascivos, se entregavam no maior esfrega.
Judith teria preferido que eles fossem se encontrar em outro lugar. Não gostava de envolver a família em seus namoros. Daria aos pais uma desculpa para sair todas as noites, como fizera de outras vezes. Mas Arnaldo foi taxativo, fazia questão de conhecer os pais e de informá-los de suas intenções. Ela achou aquilo um exagero. Pra quê isso, parece até pedido de casamento, ela argumentou desconfiada. Não, meu amor, eu não me sinto à vontade de comer uma moça de família como você, sem a benção dos pais, entendeu? Não que ele fosse lhes pedir autorização explicita para arquivar a moça. Mas apenas o fato de ele ser apresentado formalmente a eles, já sacramentava o seu consentimento.
Judith achou aquilo muito antiquado, mas atendeu ao pedido do rapaz. Levou-o para conhecer os pais. Mal sabia ela em que estava se metendo.
Arnaldo não apenas era um tipo sedutor, mas, também, um grandessíssimo de um bajulador. Logo de cara, ele tomou a liberdade de chamar a mãe de “sogrinha” e o pai de “sogrão”. Isto foi o suficiente para roubar o coração dos velhos que sonhavam ver a filha casada para lhe dar netos. E ele era de uma atenção com aqueles dois como Judith nunca vira igual entre os ex-namorados. Os pais de Judith logo se apaixonaram por Arnaldo. Ele se tornara o filho homem que nunca tiveram.
Sempre que chegava para a sessão de namoro, ele ia cumprimentá-los. Mas que rapaz educado, comentavam satisfeitos. Às quartas-feiras, ele vinha para o jantar e no domingo para o almoço. Ao final da refeição, e durante toda ela, ele não deixava de elogiar a delícia que era a comida da “sogrinha” que se enchia de felicidade, pois era raro ouvir elogios. Em retribuição, ela tomou nota dos pratos prediletos do genro querido para lhe agradar quando ele viesse. Só de ouvir aquela lenga-lenga, Judith ficava enjoada. Ela nem um ovo cozinhava. Para agradar a velha, Arnaldo lhe trazia Pastéis de Belém que ela gostava muito. Aqueles mimos deixavam Judith enciumada. Arnaldo nunca lembrava de trazer nada para ela, apesar de sua generosidade com ele, ao deixa-lo fazer coisas com ela que nenhum outro namorado teve a chance.
Em dia de futebol, Arnaldo só cumpria meio expediente com Judith. Depois, ia sentar ao lado do “sogrão” em frente à tv. Até torciam pelo mesmo time, quanta coincidência! Houve domingos que os dois foram juntos ao estádio assistir o jogo, deixando Judith a ver navios. Aquelas coisinhas estavam fazendo ela perder o interesse por Arnaldo.
Como tudo na vida tem um começo, um meio e um fim. Um dia Judith chamou Arnaldo para uma conversa longe de sua casa. E terminou o namoro. Não queria mais. Tinha se enjoado dele. E Arnaldo não insistiu. Foi-se embora magoado, nunca mais deu as caras na casa de Judith.
Como era de se esperar, logo os pais de Judith sentiram falta do rapaz. E ao serem informados do fim do namoro, não deu outra: ficaram inconformados, mais até que o próprio interessado. Como podia ser, um rapaz tão bom, um excelente partido! Aonde é que essa menina está com a cabeça? A semana toda foi aquele clima de velório em casa. A mãe choramingava pelos cantos. Viu o que você foi fazer à sua mãe?, o pai chantageava também inconsolado. Não falou mais com a própria filha, desde então. A pressão do velho bateu nas alturas e ele foi parar na emergência. A mãe era um chororô só. A filha ia matar o pai de decepção! Judith se encheu de culpa e remorso. Foi procurar Arnaldo. Viu, é nisso que dá namorado frequentar a minha casa, ela se recriminou.
Dois dias depois, o pai teve alta e voltou para casa. E advinha quem apareceu para jantar como nos velhos tempos? Judith ia ter de pensar em outra forma de se livrar de Arnaldo.

Rio Vermelho, 20 de agosto de 2014.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma Manhã de Cão

Minha amiga Sarah H. me veio com um convite inesperado.  Queria que eu a acompanhasse em seu dia de visitas a clientes. Ela é representante comercial de um produto singular que promete livrar das mãos todo e qualquer tipo de germe contraído com o aperto de mão. Então, o cidadão aperta a mão de outro e, em seguida, esfrega o tal produto milagroso nas mãos que ficam esterilizadas para o aperto de mão seguinte. Coisa de louco! Vivemos em tempos que se pratica o germecídio a cada segundo. E o que é que eu entendo desta maravilha microbicida? Coisa nenhuma!
Ela apenas queria uma companhia para cumprir aquela obrigação profissional. Então eu pedi ao meu patrão para que me dispensasse do serviço naquela manhã, com a desculpa de que eu precisava fazer um passeio urgente. O uso da palavra urgente foi estratégico, pois esta causa impacto e convence sobre a gravidade do assunto. Não fosse o meu patrão e o seu funcionário a mesma pessoa, tal justificativa de ausência ao local de trabalho seria motivo de justa causa.
E lá fui eu acompanhar minha amiga Sarah H. em sua romaria. Eu meio que precisava mesmo de um passeio de carro para arejar as ideias. No horário combinado, ela estava na porta de casa em seu reluzente coreano. Caía uma chuva intermitente, mas não daquelas cuja água inunda as vias provocando o caos na vida das pessoas.
Havia caos sim. Mas este não fora causado pelas águas da chuva que caia. As ruas estavam inundadas por uma enxurrada de automóveis. O congestionamento começava na esquina da rua onde moro e se prolongava ao longo dos quase cento e cinquenta quilômetros percorridos naquela manhã.
Vamos combinar, Salvador virou um congestionamento só. Uma longa fila de carros estancados um atrás do outro, conduzidos por mal-humorados motoristas. E buzinam, como gostam de buzinar essa gente. É provável que este ato desesperado lhes dê vasão ao seu estresse, mas com certeza não tem o dom mágico de fazer o congestionamento sumir de sua frente. Isto me faz lembrar que certa vez eu tive uma ideia brilhante para uma invenção que me tornaria um milionário da noite para o dia. Era muito simples. Um headphone conectado diretamente à buzina do automóvel com o qual o motorista poderia buzinar à vontade diretamente em seus próprios ouvidos no volume do seu gosto, sem incomodar ninguém. Também não causaria poluição sonora. Mas os japoneses já devem ter passado a perna em mim novamente num de meus inventos, assim como o fizeram com a minha ideia da câmera digital e de comer de palitinhos.
Em nossa provinciana Salvador, usar o transporte público é coisa de gente feia e pobre. Quem tem carro faz questão de colocá-lo na rua para mostrar ao mundo como subiu de vida. Para o brasileiro, o carro não é apenas um meio de locomoção e sim uma demonstração de que as coisas estão dando certo para ele. É até irônico ver como o carro deixou de ser uma solução para virar o problema. Há, também, uma escassez de bom senso entre as pessoas. Quantas poderiam tranquilamente deixar o carro em casa e ir de transporte público, mas se rendem à vaidade e ao comodismo? Por isso, há mais carros que ruas em Salvador e o que sobra, certamente, são os congestionamentos.
Para fazer o seu trabalho, minha amiga Sarah H. precisa realmente de um automóvel. Mas o que dizer de minha vizinha que só vai à padaria, que fica localizada na rua de trás, dirigindo o seu carrinho? Ela dá tantas voltas para encontrar uma vaga para estacionar que termina encontrando uma justamente em frente à sua casa!
Eu confesso que gostei daquele passeio pelos congestionamentos de Salvador durante um dia de semana. Conheci caminhos e atalhos tortuosos cuja existência eu desconhecia. Vi como a cidade cresceu – e continua crescendo – e se modificou para melhor e para pior. Observei como o fato de o motorista ter uma carteira de habilitação não lhe dá habilidade para dirigir racionalmente e com bom-senso. Agradeci a Deus por jamais precisar dirigir em Salvador com os seus intermináveis congestionamentos. E ao final da manhã, sucumbi à exaustão por ter assistido passivamente sentado no banco do carona ao inferno que é sair de carro em nossa cidade.
Se algumas pessoas deixassem o carro na garagem para que aquelas que realmente precisam dele saíssem sem ter de enfrentar congestionamentos, o dia de todos seria bem melhor. Mas, pensando bem, talvez as pessoas estejam viciadas em um bom congestionamento!


Rio Vermelho, 21 de julho de 2014. 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Num Mato Sem Cachorro

Um amigo ligou desesperado pedindo um help. A mulher o pôs para fora de casa, descobriu finalmente que ele não era nenhum santo. A vida tem disso, tem cego que um dia acorda vendo tudo. Detalhes à parte, pois não quero denigrir a imagem do meu amigo – mas que canalha ele! Superado a fase de negação e caindo na real, uma semana depois do sinistro, ele me procurou. Foi morar na sua garçoniere, cuja existência a futura ex-esposa acabara de tomar conhecimento. Sim, meu amigo tem lá os seus defeitos, então eu tenho um amigo defeituoso, fazer o quê, né?
Meu caro amigo é um daqueles que sofrem da deficiência-de-não-saber-cuidar-de-si-mesmos. É incapaz de lavar a própria roupa íntima, por exemplo, e depende de uma mulher que lhe faça as vezes de mãe super-protetora. Veja mamãe o homem adulto que você educou para se virar no mundo, ele trai a esposa que é uma mãezona que nem a senhora.
Então, ele precisava de minha assessoria para uma tarefa doméstica simples como ir ao mercado. Tinha de fazer as compras da semana e não fazia ideia por onde começar. E lá fui socorrer um amigo em apuros – e que tem lá os seus defeitos. Mas pra que fazer compras, se ele nem sabia fazer um nescafé?
A sociedade dividiu as tarefas domésticas entre homens e mulheres de tal modo que um foi feito refém do outro. Trazer dinheiro graúdo para casa, escolher o automóvel da família, o computador, a manutenção da casa é coisa de homem ainda em muitos lares. Mas a limpeza da casa, a decoração, lidar com a cozinheira e a faxineira, fazer as compras da feira e de mercado, cuidar das crianças é coisa de mulher. É uma visão machista, mas é assim que ainda acontece, até em famílias que se consideram bem moderninhas. Mesmo que a mulher trabalhe oito horas por dia e até ganhe mais que o marido, ao final do dia, o tanque e a cozinha a esperam placidamente, além de outras obrigações domésticas que lhe cabem. É raro um homem aliviar a barra da esposa, é mais conveniente se fingir de cego. É isso, tem famílias que tanto o marido como a esposa são dois cegos.
Então, meu caro amigo estava num mato sem cachorro.  Conhecendo-o bem, fiquei me perguntando quanto tempo mais ele duraria naquela situação. Ele tinha condições de contratar uma empregada doméstica, mas é isto? Um homem adulto e saudável não sabe cuidar de si mesmo? Precisa de alguém que faça por ele todos aqueles trabalhos domésticos que qualquer adulto independente deveria saber, bem ou mal, realizar?
Quando o bichou pegou de verdade, meu defeituoso amigo se viu num mato sem cachorro. Colocou então a sua melhor máscara de arrependido e foi bater na porta de casa. Fez juras de amor à mulher traída e pediu perdão pelos seus defeitos e pecados. Não aconteceria nunca mais, jurou de pés juntos – pelo menos até a próxima vez. O bom cristão, perdoa, sabe? Até de santa chamou a esposa, por aturá-lo assim com os seus defeitos. Sim, que este desvio de caráter nós homens chamamos de defeito, assim como roubar dinheiro público é apenas um malfeito.
Ela, por seu turno, se fez de difícil, como era de se esperar em situações como aquela, mas terminou abrindo a porta para ele passar, mas com uma exigência: queria ser levada toda sexta-feira à noite naquele matadouro e receber o mesmo tratamento que recebiam as que ali caiam!

Rio de Vermelho, 09 de junho de 2014. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Sem Pequenas Concessões

Li na revista promocional que a caixa da farmácia furtivamente enfiou em minha sacola de compras que o brasileiro gosta muito de se casar. Fiquei na dúvida se ele faz isto repetidas vezes para saciar este seu prazer ou se ele se contenta com uma única vez apenas. Ao mesmo tempo, uma querida amiga tirava a minha dúvida ao anunciar que iria se casar pela segunda vez. Fiquei feliz por ela, pois não apenas acho que todos merecem uma segunda chance e, também, porque a solidão é uma coisa chata pacas! Nada de mais em casar-se novamente – minha vizinha é campeã desta modalidade, pois já o fez quatro vezes de papel passado – não fosse a peculiaridade desta união de minha amiga. Foi acertado que cada cônjuge viverá em sua própria casa, ela na Tijuca, no Rio de Janeiro, e ele em Olinda, no Recife. Um visitará o outro alternadamente e quem fica também feliz com isto é a companhia área.
Ela explica de modo convincente: ela reconquistou com muito esforço e a duras penas a sua liberdade ao se separar no primeiro casamento. Fez tantas concessões, tolerou tantos abusos que um dia se olhou no espelhou e não se reconheceu. Onde tinha ido parar aquela mulher independente e de espirito voluntarioso que sempre fora? O casamento fracassado não apenas tirou-lhe a liberdade, mas a transformou em outra pessoa. O saldo positivo foi duas filhas que ela ama mais que tudo e que por causa delas deu tudo de si para que elas se transformassem em duas mulheres adultas e felizes. A separação, apesar de ter sido uma experiência dolorosa para a família, foi um elemento importante para que as meninas crescessem acreditando no amor verdadeiro uma vez que estavam sendo criadas num ambiente familiar onde a falsidade e a dissimulação existiam. Portanto, minha amiga não queria homem algum novamente em sua casa a se meter em tudo, inclusive a querer controlar a sua vida. “Eu aqui e ele lá na casa dele!”
Naquela mesma semana, sua filha mais velha combinou com um amigo que não via há tempos para tomarem um café. Um encontro inocente à tarde, num lugar público, um café e conversa para atualizar as novidades e reforçar os antigos laços de amizade. No dia combinado, constrangida, ela cancelou o encontro. Como tinha a consciência limpa, casualmente comentara com o noivo sobre o café com o amigo. Entretanto, este não ficou nada satisfeito com aquela história de ela ir se encontrar com outro homem. Proibiu-a.
A filha de minha amiga fez uma pequena concessão. Um pedido simples do futuro cônjuge para que não se encontre com um amigo. É sempre assim, os pedidos são geralmente sobre questões simples. Deixe o cabelo mais curto, vista uma saia mais comprida, não fale mais com aquela pessoa, não frequente mais aquele lugar, lave as minhas cuecas. Quantas outras concessões ela não fará até o dia em que se veja na prisão da qual a sua mãe se libertou?
Não, esta história não teve um final sombrio como imaginam. A filha de minha amiga teve tempo de refletir um pouco sobre aquela situação que lhe pareceu familiar. Ela era uma mulher independente, dona se seu nariz. Se ela e aquele rapaz planejavam se casar, era preciso ele aprender a confiar nela e a respeitá-la. Da parte dela, confiava nele e desejava que aquele sentimento fosse recíproco para o futuro casamento dar certo. Não cometeria os mesmos erros de sua mãe, sem pequenas concessões desta vez. Avisou ao noivo que iria encontrar o amigo para o café e ele que digerisse aquilo como quisesse e aprendesse a confiar nela, se pretendia mesmo casar com ela. Esta história promete um final feliz.

Rio Vermelho, 26 de maio de 2014.

domingo, 27 de abril de 2014

A Privacidade Escancarada

O aparelho de celular veio dar outro sentido à privacidade das pessoas que há tempos andava meio escondida. Nunca se expôs tanto a própria intimidade em público quanto depois que este pequeno telefone de bolso que se carrega para todos os lados, que ora serve para se comunicar e ora para se usar como canivete suíço, passou a fazer parte de nosso cotidiano e, ao se separem deste por alguns momentos, muitos de seus usuários sofrem calafrios e ficam angustiados. Eu já vi como o peixe se debate ao ser tirado da água e é assim também que se comporta um usuário sem o seu celular. Os olhos ficam esbugalhados e parecem que vão pular para fora das órbitas a qualquer instante. Nunca vi ninguém espumando nestes casos, mas com certeza deve haver registros médicos a este respeito.
Voltando à velha e desprestigiada privacidade, depois do celular, conversas antes reservadas apenas aos ouvidos de seus interlocutores, são agora compartilhadas sem a menor cerimônia com uma plateia de estranhos, na rua, na fila, no transporte público, na mesa ao lado no restaurante, expondo estes ouvintes passivos a assuntos que não lhes diz respeito e que certamente gostariam de ser poupados do absurdo de ter de ouvi-los. A verdade é que são estes ouvintes que têm a sua privacidade invadida pela conversa do indiscreto usuário de celular.
No entanto, devo admitir um pecado, eu descaradamente presto atenção na conversa dos outros e fico puto quando esta é interessante, mas os seus participantes falam muito baixo. Dá pra falar um pouco mais alto aí? Este sussurro está me matando! Mas ninguém pode me censurar por isso, do contrário, eu não teria material para entretê-los com as minhas histórias.
Outro dia, eu fui andando até a farmácia à procura de umas gotas mágicas que aliviassem uma súbita dor de ouvido, quando testemunhei uma dessas conversas. Eu seguia pelo passeio e, do sentido oposto, do outro lado da rua, vinha um rapaz com o seu telefone celular colado ao ouvido. Cerca de vinte metros nos separavam, mas eu tive a impressão de que ele falava ao pé do meu ouvido. Ele esbravejava a plenos pulmões com a pessoa do outro lado da linha – celular também tem linha? – que me pareceu ser uma mulher que tinha afeição por ele: “Velho, você me liga toda semana pedindo pra sair comigo. (Este “velho” aqui em nada tem a ver com a idade e é aplicado desta forma independente do sexo da pessoa, comumente utilizado por aqueles portadores de deficiência de elocução. Outras pessoas, no entanto, preferem utilizar o “rei” no lugar do “velho”, e, também neste caso, em nada tem a ver com a provável estirpe nobre do interlocutor.) Velho, você fica querendo me ver toda semana. Velho, eu já lhe disse pra você parar com isso. Toda semana você me procura querendo sair comigo, velho. Não, de três em três meses não, você liga é toda semana, tá maluca? Pô, velho, procure suas amigas e me dá um tempo. Chame outra pessoa pra sair com você...” E foi quando eu entrei na farmácia e perdi o resto do espetáculo.
         Ah... Como eu adoraria ser procurado por uma mulher apaixonada pelo menos uma vez por mês e ouvir dela juras de amor eterno. No entanto, aquele rapaz só quer a pobre moça quando lhe é conveniente, que calhorda ele. Faltou-me presença de espirito para ir até ele com o meu número anotado num papelzinho dizendo-lhe algo assim: diga a ela que me procure neste número a qualquer hora do dia ou da noite todos os dias da semana que será sempre bem tratada! (a menos que lhe falte autoestima e o seu prazer seja o desprezo e a grosseria dos homens. Quanto a isto, eu jamais poderei lhe ser útil.)

Rio Vermelho, 26 de abril de 2014.

domingo, 20 de abril de 2014

A Paixão de Cristo Contada Pelo Papai

Papai era um contador de estórias. Seu jeito de contá-las cativava a audiência, quase sempre composta dos mesmos amigos e familiares que não se enjoavam de ouvi-lo contar as que se repetiam vez por outra com a mesma atenção como se as escutassem pela primeira vez. Não herdei dele o talento para o desenho e muito menos para pintura, mas gosto de contar estórias e, para repeti-las, tomo o cuidado de encontrar novos ouvintes.
         Nesta época do ano em que se celebra a Semana Santa, ele costumava contar como certa vez viu a encenação da Paixão de Cristo num picadeiro de circo. Esta estória era uma das minhas preferidas e a que guardo na memória como uma divertida lembrança do meu pai.
Foi verdade, em sua infância na esquecida Cajapió, em algum lugar perdido da baixada maranhense, vez por outra, chegava um circo mambembe que trazia em sua lona surrada e remendada a poeira dos cantos por onde andou, mas não menos remendados eram os trajes de seus pobres e sonhadores artistas que exibiam o seu talento em troca de míseros trocados e, às vezes, o lugar era tão miserável que até comida servia como moeda de troca.
         O circo chegava provocando um alvoroço entre crianças e adultos que era alojado num terreno baldio emprestado pela prefeitura. Fazendo barulho com cornetas, baterias e apitos, seus artistas saiam em campanha pelas ruas do pequeno povoado anunciando o grande espetáculo para o respeitável público. Em comemoração à Semana Santa, encenariam, naquela noite, a famosa Paixão de Cristo.
         Com o elenco reduzido, como era de se esperar, o dono do circo, um homem baixo e feliz possuidor de uma barriga grande e dura, costumava contratar talentos locais para pequenos papéis os quais era dispensado o ensaio, que se restringia em resumidas instruções sobre o que fazer e em que momento.
         O bêbado da cidade foi contratado para fazer o Lázaro, um papel muito fácil e para qual nenhum talento era necessário. Tudo o que ele tinha de fazer era deitar-se num determinado lugar ao lado do picadeiro e esperar pelo momento de sua milagrosa ressuscitação. Se ele fizesse conforme o combinado, receberia alguns níqueis suficientes para pagar por algumas doses de seu etílico vicio.
         Antes de começar o espetáculo, o improvisado ator chegou ao picadeiro no mesmo estado de embriaguez pelo qual era conhecido, deitou-se no lugar estabelecido e pegou no sono profundo.
         O espetáculo começou e transcorria na normalidade. O público estava emocionado com a saga de Jesus Cristo de Nazaré, lágrimas e suspiros sobravam. No momento em que Jesus faz o milagre da ressureição de Lázaro evocando para que este voltasse ao mundo dos vivos, ele diz a famosa frase: Levanta-te Lázaro! Esta era a deixa para que o nosso Lázaro embriagado se levantasse e caminhasse, mas ele estava em outro mundo para ouvir coisa alguma. Levanta-te Lázaro! Insistiu Jesus, mas o Lázaro não se movia, dormia bêbado feito um gambá. Levanta-te lazaro! Gritou Jesus, desta vez impaciente. A plateia inquietou-se e passou a zombar. O dono do circo enfureceu-se, quis ser mais poderoso que Jesus Cristo, tomou o microfone e ordenou ameaçador pelo alto-falante: Alô, alô Lázaro! Alô, alô Lázaro! Levanta-te ou estás despedido!
Foi breve a sua carreira de ator.

Rio Vermelho, 20 de abril de 2014.

domingo, 13 de abril de 2014

Baú de Recordações

Um querido amigo, cuja data de nascimento remonta os tempos em que a maioria das coisas ainda não tinha nome e para referir-se a elas era preciso apontá-las com o dedo, me conta como era Salvador de antigamente. No entanto, ele não faz isto de uma só vez como numa conversa de bar, ao contrário, à medida que vai remexendo o seu baú de recordações, ele tira de dentro uma ou outra história de sua infância ou juventude e me encanta com o seu relato.
         No lugar onde moro, por exemplo, antes havia um hipódromo e no local onde hoje é uma pracinha, uma igreja tinha sido planejada para ser erguida. Sua casa foi uma das primeiras a serem construídas e permanece do mesmo jeito até hoje e há sempre um cafezinho feito na hora para os visitantes, servido pela simpática dona da casa.
         Mas o que me empolga, é ouvi-lo contar que um bêbado podia passar a noite no meio do caminho no trajeto de volta para casa e quando acordasse, a sua carteira de dinheiro estaria ainda no mesmo bolso com todas as notas de dinheiro que havia dentro! Sim, claro que havia roubos, mas eram roubos de galinhas ou alguém tinha a sua carteira batida no centro da cidade. Ninguém jamais passou pelo estresse de ser rendido com a ponta de uma arma de fogo ou ter sua vida tirada por causa de um par de tênis ou uns míseros trocados, isso não. Meu amigo fala de um tempo em que a vida humana valia alguma coisa.
         A palavra congestionamento ainda não tinha sido inventada e os poucos carros que havia em Salvador, todo mundo sabia a quem pertencia. O bonde era o transporte usado para ir para o trabalho e quase todos daquela viagem se conheciam a ponto de o condutor às vezes se demorava numa parada para esperar por algum passageiro que, por ventura, estivesse atrasado.
         Tirando o fato de um cara não poder ir para a cama com uma moça de família sem antes desposá-la, ou de sair com ela sem a presença de um acompanhante para proteger a sua reputação, ter vivido naquela época, me parece que é o sonho de muitos que vivem na caótica Salvador dos dias de hoje. Eu ouço as histórias que o meu amigo me conta sobre como era a vida naquele tempo e chego a sentir nostalgia de um tempo que jamais conheci.

Rio Vermelho, 13 de abril de 2014.



quinta-feira, 27 de março de 2014

Sobre a arte de tirar proveito da vaidade humana

Outro dia, uma moça bonita, minha conhecida, sorriu para mim. Notei que o seu sorriso, daquela vez, estava colorido por pequenas miçangas azuis colocadas entre um dente e outro. Achei aquilo curioso, deveria ser mais algum tipo de moda bizarra. Ora, se há quem espete piercings nas partes íntimas do corpo, porque não haveriam de adornar os dentes, que estão postos em local bem mais a vista, refleti. Entretanto, ela me explicou, estava fazendo um tratamento dentário e aquelas contas azuis era borrachas colocadas para abrir caminho para um futuro aparelho ortodôntico. Seu dentista lhe disse que ela precisava muito daquilo. Eu fiquei matutando como esta moça conseguiu sobreviver até os trinta anos de idade sem a ajuda de tal imprescindível aparelho.
         Este episódio me fez lembrar de outro de minha adolescência. Eu tinha uma professora cujos peitos eram enormes e formosos, verdadeiras maravilhas da natureza e fonte de inspiração dos garotos da turma. Certa vez, ela ausentou-se por motivo de saúde e quando retornou à classe, semanas depois, ela estava mudada, parecia que tinha encolhido de tamanho. Perdera aquele magnetismo que nos fazia prestar atenção à sua aula, ou melhor dizendo, ao seu decote. Ela submetera-se a uma cirurgia de redução dos seios. Uma grande perda, uma tristeza para nós meninos. Conheci outras mulheres que fizeram o mesmo. Eu ficava imaginando se haveria algum banco de peitos para onde aqueles pedaços de mamas extirpados eram doados para serem reaproveitados em mulheres menos afortunadas. Então, diminuir o tamanho dos seios era a moda do momento naquela época, uma invenção dos cirurgiões plásticos para aquecerem os negócios.
         Na mesma época, os ortopedistas descobriram que as meninas estavam fora do prumo e por isso as coitadas eram submetidas ao uso de umas armaduras de metal que as faziam ficar eretas e de pescoço duro. Na minha escola havia mais de uma dezena delas. Era o tempo da ditadura militar, aquelas as meninas estavam longe se serem consideradas subversivas, mas eram torturadas mesmo assim com o uso daquela coisa horrível.
         E quando não sobraram mais seios para serem reduzidos de tamanho, Deus criou as próteses de silicone para dar mais autoconfiança às mulheres cujos peitos eram pequenos. A vez delas tinha finalmente chegado. A moda era aumentá-los de acordo com o tamanho da falta de autoestima de cada freguesa, havia aquelas comedidas que precisavam deles só um pouquinho maior para caberem num modesto sutiã e outras exageradas que faziam o queixo sumir entre os peitos novos, a provocar nos homens pensamentos impróprios. Um dia eu vi um programa de TV no qual um cirurgião plástico, usando uma bandana colorida cobrindo a cabeça, similar às que o cantor Bel Marques costuma usar, explicava ao repórter que iria adicionar mais silicone aos peitos já super siliconados de sua paciente, uma bela dançarina stripper, como uma forma de conferir mais dramaticidade a eles. Eu não sei quanto à dramaticidade nenhuma, mas certamente os seus peitos ficaram enormes de tirar o fôlego. E sobre a bandana na cabeça, é sabido que a do Bel tem como propósito ocultar a sua extensa calvície, enquanto à do cirurgião, certamente, esta serve para esconder a sua completa falta de ética.
         Ah....(um suspiro) a vaidade humana é porta de entrada para toda espécie de artifício para acalentar a insatisfação das pessoas com a sua própria aparência. Os médicos, dentistas e outros profissionais da saúde conhecem muito bem esta fraqueza humana e as manipulam conforme a sua ambição, uma pena.

Rio Vermelho, 26 de março de 2014.