segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Pedido de Ano Novo

Não se sabe de onde ela vem ou para onde ela vai sob o sol inclemente das onze. Talvez poucos na rua tenham prestado atenção numa senhora passante, cuja idade bem poderia ser igual à de nossas mães ou avós. O fato é que ela é quase invisível em meio à paisagem urbana indiferente aos miseráveis e solitários. É inquietante ver uma idosa daquela idade exposta ao rigor do calor de verão.
         Da janela de onde a observo, também posso contemplar maravilhado as ondas do mar quebrando sobre as pedras e jogando espuma para o alto, ao lado da igreja de Santana, no Rio Vermelho, sob o sol infernal deste final de dezembro. Protegido pelo conforto do ar condicionado, sei que faz muito calor lá fora e não chove há meses, vejo a grama da praça logo em frente queimada e quase evaporando. O céu está límpido de causar aflição e com o ano novo quase batendo à porta, não há previsão de que cairá uma só gota de água para amainar a alta temperatura. É mais um ao que se vai, e quem dera chovesse um pouco para lavar a cidade do ano que termina e para receber o novo que logo logo se inicia.
         Mas a senhora a que me refiro, todos os dias passa em frente a esta janela. Trajando um vestido de cor desbotada e surrado pelo tempo, empurra um carrinho de supermercado sobre o asfalto escaldante, mas que não leva compras e nem alimentos para fazer o almoço, só bugigangas que ela vai coletando pelo caminho e adicionando ao seu rico tesouro. Vai apressada como se estivesse atrasada para chegar ao seu destino, onde não se sabe onde fica. Curiosamente, ela não está desacompanhada em sua solitária jornada. Logo à sua retaguarda, segue um cão mal tratado de pelo ralo cor de ferrugem que bem poderia ser igualmente invisível não fosse por chamar a atenção pela falta de uma pata traseira. Vai mancando logo atrás de sua dona tentando lhe acompanhar o passo apressado. Contudo, ela não olha para trás, é como se ignorasse a existência do bicho. Talvez este nem seja o seu cachorro, eles apenas se cruzaram certo dia e ela lhe fez um agrado, e como fosse raro este receber carinhos, por isso, elegeu a velha como sua dona, seguindo-a fielmente sob o sol implacável, apoiando-se nas três patas que lhe restam, em busca de mais um carinho.
         Eu só notei a existência da velha na terceira vez que a vi. Talvez não nem tivesse reparado nela se não houvesse atrás de si o cachorro que manca, foi a dupla inusitada que me capitou a atenção. Quem haveria de supor que uma velha tivesse tal fiel guardião.
         Eu não sou o tipo de pessoa que faz pedidos ou lista de mudanças para o ano novo, mas certamente, se fosse fazê-lo, pediria que aos idosos fosse-lhes dada uma vida mais digna e de reconhecimento pelo o que eles já representaram em sua juventude.
         Feliz 2013 a todos vocês, a quem dediquei com prazer o meu tempo e carinho para lhes escrever ao longo do ano. Desejo a todos vocês e suas famílias um ano de alegrias, realizações e paz no coração.

         Rio Vermelho, 31 de dezembro de 2012.

domingo, 25 de novembro de 2012

O príncipe da mamãe.*

Houve um tempo, não muito distante, em que o professor era tratado respeitosamente por seus discípulos por “senhor” – ou por “senhora” –, e acatávamos em silêncio a sábia reprimenda, estava no seu direito como educador, pois fazia parte de sua missão moldar a nossa formação. Não havia coisas como detector de metais no portão da escola e nem catracas que liberavam a nossa entrada mediante a verificação, através de um cartão de plástico com um chip, se a mensalidade já tinha sido depositada na conta bancária do dono do estabelecimento. Educação, então, era uma vocação, e não um comércio praticado por um dono de colégio semianalfabeto.

A diretora da escola onde estudei era uma espécie de santa viva e nascera para educar. Seu nome era majestoso como o de uma rainha, Maria Helena Neves da Rocha. Guardava na memória – não a do computador – o nome e sobrenome de seus quase dois mil alunos, assim como os de seus pais, e fazia ela mesma questão de entregar-nos pessoalmente os boletins, indo de sala em sala. Quando as notas eram ótimas, ela nos parabenizava pelo esforço, mas quando estas não eram lá aquelas maravilhas, não tinha nenhum pudor em dizer “suas notas estão medíocres, estude mais da próxima vez!” Ouvi isto uma única vez e quase morri de vergonha, nunca mais deixei que isto acontecesse. Dona Maria Helena era por todos nós respeitada e jamais elevava o tom de sua voz ou nos fazia ameaças, sabia falar com doçura com os estudantes, e por isso a admirávamos. O pai – ou mãe – ao assinar o boletim escolar aborrecia-se ao ver as notas baixas e esfregava-o na cara do filho, “Tá bonito isso?” Aluno era tratado como aluno e ponto final.

         Hoje em dia, não existem mais alunos, são todos clientes, e, como tal, vale sempre aquela máxima que diz que “todo cliente sempre tem razão”. O pai, quando recebe, por e-mail, o boletim do menino com notas vergonhosas, imprime-o e vai até a escola para esfregá-lo na cara do coitado do professor como se fosse responsabilidade deste fazer o filho aprender, “Tá bonito isso?” Por estas e por outras que professor vive com os nervos à flor da pele, aplacando o estresse à custa de tranquilizantes que mal pode comprá-los. Nem político safado e ladrão é vítima de tanto abuso verbal e psicológico como um professor na sala de aula hoje em dia e, no entanto, há pais que não deixam de falar em se construir um mundo melhor para os filhos, quando estes mal sabem que jamais haverá um mundo melhor se eles não criarem e educarem os seus para serem cidadãos dignos de viver neste mundo.

         A mãe insatisfeita com as fracas notas do filho foi tomar satisfação com a coordenadora e a encontrou em sua sala apertada com uma mesinha apenas e duas cadeiras para os visitantes. As paredes eram decoradas com fotos de alunos fazendo atividades.

         — Eu sou a mãe do príncipe. – anunciou com ares de nobreza.

         — Não me lembro de nenhum aluno com este sobrenome... – respondeu a coordenadora estudando aquela figura que mais parecia ter saído de dentro da coluna social da revista do Yacht Clube.

         — Como? A senhora não sabe quem é o meu príncipe! Ele é um garoto formidável, todo mundo gosta dele.

         — E qual é o nome dele?

         — Bruno.

         — Ah!

         — Já sabe de quem estou falando?

         — Ainda não. De qual série?

         — Ora, do segundo ano.

         — Hum... E qual dos 59 Brunos do segundo ano a senhora está se referindo?

       — Ora, do Bruno Lima de Carvalho! Então, já sabe quem é agora? – perguntou impaciente.

         — Agora, claro que sei, sim! A senhora está se referindo à “Mãinhia”. – respondeu finalmente à coordenadora, lembrando-se do garoto acima do peso que vivia se empanturrando de batatas fritas de saquinho, balas e outras porcarias que ia deixando vestígios pelo caminho denunciando a sua passagem, e que era um pequeno mau caráter, mentiroso, cínico e dissimulado que sonhava um dia virar político, já tinha talento para tanto.

         — Mãinha? Mas que diabo de apelido horrível é este, porque vocês chamam o meu príncipe assim? – perguntou indignada.

         — É porque ele sempre diz coisas como “se eu tirar nota baixa no teste, mãinha vai me bater”, “se eu chegar assim em casa, mãinha vai me comer de porrada”, “se mãinha souber disso, ela vai me arrancar o couro.”

         — Ah, é? – perguntou, não mais parecendo tão nobre desta vez.

         A coordenadora a fitou em silêncio por alguns instantes como se estudasse aquela mulher sentada à sua frente e, em seguida, perguntou:

         — Eu estou curiosa, gostaria de entender melhor o seu Bruno. Diga-me, a senhora costuma dar surra no seu príncipe?

Rio vermelho, 29 de novembro de 2011.

*Estória me contada pelo amigo Gabriel Lopes Pontes.

sábado, 10 de novembro de 2012

Das desventuras de se ir ao concerto


Assistir um concerto de música clássica em Salvador, terra da música axé, requer concentração, obstinação e, sobretudo, nervos de aço. Uma tremenda contradição, considerando-se que concertos de música clássica deveriam ser eventos culturais de propriedades relaxantes que nos transportam para um mundo onírico de sensações auditivas. Digo isto com a experiência de quem não perde uma apresentação de nossa querida orquestra sinfônica, que completa 30 anos de existência no decorrente ano.

Ao escolher um assento para assistir o último concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia, um dos raros programas culturais noturnos para o qual me animo a deixar o conforto de meu lar, apliquei uma técnica desenvolvida por mim mesmo, baseada em minhas desafortunadas experiências. É um evento de poltrona livre, isto é, os assentos não são demarcados, é preciso saber escolhê-los com sabedoria.

         Nunca me sento muito próximo a velhinhas. Uma só velhinha, é um ser inofensivo, um doce de pessoa como todas as velhinhas geralmente o são. Entretanto, um bando delas, sentadas lado a lado na fila logo à frente, à atrás ou ao lado, pode ser um pesadelo. Todos os seus pensamentos e emoções precisam ser verbalizados durante o espetáculo e, nesta idade, senhoras idosas desenvolvem o tom de voz dos contraltos, de modo que, mesmo sussurrando, elas são perfeitamente audíveis. “Ele teve ter menos que quarenta.”, cochichou, certa vez, uma para a coleguinha ao lado, em referência à idade de nosso jovem maestro. Outra disse: “Agora vai tocar o violino.” E, como num passe de mágica, realmente os violinos começaram a tocar harmoniosamente. Logo atrás de mim, uma delas sabia a música de cor e resolveu solfejá-la como se estivesse no banho. Outra tinha consigo uma dessas bolsinhas de mão que fazem um click toda vez que são abertas ou fechadas. Repetidas vezes, ela abria e fechava a sua bolsinha para tirar e colocar de volta uma latinha de pastilhas que fazia questão de chacoalhá-la antes de abri-la.  Portanto, evitem sentar-se muito próximo a estas senhoras.

         Indivíduos muito afeiçoados a seus celulares também devem ser evitados. Fique atento àqueles que antes de começar o concerto estão muito concentrados em seus brinquedinhos ao invés de estarem lendo o programa do concerto, por exemplo. Isto pode significar que eles não estão emocionalmente preparados para se separar de seus aparelhos por algum momento durante a sessão, e se a luz da tela o incomodar cada vez que o celular é verificado na angústia da espera por aquela mensagem muito importante, ou para saber se alguém telefonou, é melhor sentar-se bem longe destes cidadãos, pois é aporrinhação na certa!

         Crianças são geralmente pequenos seres chatos e inquietos por natureza, e que deveriam ficar em casa toda vez que vou ao concerto. Entretanto, há pais que entendem que elas devem ter um pouco de cultura e por isso as arrastam para um concerto de música clássica cuja programação tem duração de mais de duas horas, pobre coitadinhos. Ora, se para um adulto já não é tarefa fácil ficar duas horas sentados comportadamente, quem dirá para uma criança agitada. Alie-se a isto, o fato de a mãe ser uma neurótica e mandona que quer dominar a fera durante o espetáculo. Deu para ter uma ideia, né? Evito sentar próximo a pequerruchos, só de minhas lindas sobrinhas, quando as levo, pois estas são uns anjinhos. Neste concerto em particular, eu havia escolhido um assento no primeiro setor a poucas filas do palco, mas fui expulso de lá por um enxame de crianças que chegou inesperadamente não se sabe de onde. Eram alunos de uma escolinha indo ao seu primeiro concerto, que maravilha, meu coração palpitou.

         Se houver uma moça bonita e desacompanhada, certamente sentarei ao seu lado para lhe impressionar com a minha erudição – ou com a falta dela – durante os breves intervalos. E foi justamente isto que fiz, depois de sentar em quatro lugares diferentes, seguindo aquela minha técnica, antes de começar o espetáculo. Sentei-me finalmente na ponta de uma fila ao lado de uma bela e jovem morena.

         Cumprimentei-a com um largo sorriso ao sentar-me ao seu lado, ao que ela me correspondeu mostrando-me os seus perfeitos dentes. “O programa de hoje está ótimo.”, disse-lhe mostrando-lhe o programa daquela noite, percebi que ela não possuía um. “Nunca vim num concerto antes, é a minha primeira vez.”, disse ela humildemente, o que só a fez parecer mais bela. “Você vai gostar, é só entregar-se à musica.”, tranquilizei-a. “O concerto já começa.”, disse-lhe. Em seguida, os músicos estraram no palco ocupando os seus lugares e todos aplaudimos, como é de costume. Logo depois, veio o maestro, empertigado, novos aplausos e teve início o concerto, quando ele agitou a batuta no ar.

         Mal o concerto começara e a bela mocinha transformou-se numa bruxa, ao sacar de sua bolsa o seu Samsung Galaxy, cuja tela brilhava feito um farol de caminhão. Enviou um texto de mensagem que não demorou a ser respondido. Mais um instante, e lá se foi ela novamente enviando outra mensagem e recebendo a replica. Olhei em volta, a casa estava lotada e eu preso naquela armadilha. As trocas de mensagens não paravam, a conversa deveria estar mais interessante que o concerto. Lá pelas tantas, ela aproximou-se e perguntou sussurrando em meu ouvido se o concerto ainda demoraria muito, ao que respondi que não havia hora certa para acabar e que a palavra concerto derivava da expressão latina que queria dizer “não acaba nunca”, e que se ela tinha algum compromisso, melhor que se apresasse ou, do contrário, chegaria atrasada. Jamais se sente ao lado de uma mulher com cara de anjinho, nunca se sabe que modelo de aparelho celular ela carrega na bolsa!

Rio Vermelho, 8 de novembro de 2012.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Preguiça


Ao aposentar-se depois de 35 anos de serviço público, prestados no Departamento de Assuntos Fiscais do Município, Josué jogou fora o terno cansado com o qual costumava ir todos os dias para a repartição e meteu-se numa bermuda surrada, camisa de meia e um par de chinelos velhos e confortáveis.  “Pronto, este vai ser o meu uniforme de agora em diante.”, disse com júbilo. Finalmente ele realizava o seu grande sonho de não trabalhar nunca mais.
            Quem não ficou muito satisfeita com aquela novidade foi dona Etelvina, sua severa e trabalhadora esposa, dona de casa exemplar, que não estava acostumada a ter o marido em casa o dia inteiro, exceto nos finais-de-semana e feriados. Ela se perguntava com o que o marido ia se ocupar de agora em diante. Tudo o que ela menos desejava no mundo era ter um homem desocupado pela casa lhe aporrinhando a paciência. “Meu Pai, o que é que esse homem vai ficar fazendo dentro de casa o dia inteiro, de agora em diante?”, ela se perguntava aflita e benzendo-se.
            Mas Josué já tinha muito bem em mente como pretendia preencher o seu precioso e ocioso tempo pelo resto da vida. Alugou um serviço de TV a cabo com o qual planejava passar o dia deitado no sofá da sala vendo filmes e seriados, acompanhado de uma garrafa após outra de cerveja geladinha. A vida não podia ser mais perfeita!
            Tão logo a TV foi instalada, ele começou pondo em prática o seu brilhante plano. Entretanto, ele parecia determinado a levá-lo muito a sério, pois o mundo bem poderia acabar à sua volta, que ele não moveria um único dedo sequer para salvá-lo, a menos que lhe levassem junto a TV e a cerveja ou o sofá. Sua rotina diária era um verdadeiro martírio, ele acordava cedo com o único objetivo de ter mais tempo para ficar sem fazer nada. Depois do café, ele lia a sessão inteira de esportes do jornal enquanto tomava o banho de sol sentado na cadeira da varanda, em seguida, pulava para o sofá para começar a sua maratona em frente à TV. E quando o sino da igreja do bairro dava a badalada das dez horas, ele abria religiosamente a sua primeira cerveja do dia e só fazia um intervalo para almoçar, seguido do cochilo em sua própria cama até as quatro da tarde. Depois do merecido descanso, ele voltava para frente da TV, para assistir a sessão da tarde e depois enveredava pela noite a dentro. Felizmente ele também cultivava o mesmo gosto de dona Etelvina pelas novelas, de modo que ele não se incomodava com que ela as assistisse sentada no sofá ao seu lado.
            Dona Etelvina dava um duro dentro de casa, varrendo, limpando, lavando, passando e cozinhando e ainda por cima fazendo a feira da semana e o supermercado, mas o Josué olhava aquilo tudo com um olhar de paisagem sem ao menos se oferecer para ir ali no armazém comprar tempero, que é o que se espera de um marido aposentado. Ele não se oferecia para ajudar em coisa alguma na casa, era como se ele houvesse jogado o seu senso de solidariedade no lixo juntamente com o seu velho terno de ir para o trabalho. Mesmo quando ela se aventurava a pedir-lhe um favor, ele sempre dava a mesma resposta “Depois eu faço.” O que inequivocamente significava o mesmo que dizer “não conte comigo.” Claro que dona Etelvina ficava furiosa com a falta de cooperação de Josué, “mas que homem inútil”, ela dizia para si mesma benzendo-se. “Meu filho, você deve ter alguma doença, pois eu nunca vi ninguém tão preguiçoso como você.”, ela sempre repetia todos os dias, ao que ele fazia uma expressão de desdém sem contestá-la.
Certo dia, não tolerando mais a preguiça do marido, dona Etelvina mandou-o ir se consultar com um médico para que este descobrisse o que havia de errado com o ele. Sob protestos, Josué acatou à ordem e foi ver o médico, embora tivesse certeza de que nada de errado havia com ele. Então, depois que o médico o examinou minuciosamente, ele concluiu o seu diagnóstico.
— Bem, Sr. Josué, acho que já descobrir qual o seu problema. – disse o médico com uma expressão grave.
— Pode dizer, doutor. – disse Josué, não demonstrando qualquer preocupação.
— O senhor tem preguiça! – informou o médico.
— Ah, sim! Mas o doutor poderia me dizer qual o nome científico para eu informar à minha esposa?

Rio Vermelho, 22 de outubro de 2012.
           

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Revelação de Um Sedutor Barato


Era o tipo de homem desejado pela maioria das mulheres. E a maioria das mulheres era o tipo desejado por ele, cuja disposição para conquistá-las era quase uma obsessão.  Entretanto, elas não lhe passavam de simples diversão e de uma forma de satisfação de seu próprio ego. Seduzia uma após outra com a mesma facilidade com que se colhem frutas no pomar, que depois de chupadas, descarta-se o bagaço.

            João dos Prazeres tomou o nome de batismo como um estilo de vida. João, o mais elementar dos nomes, de fácil assimilação e aceitação, muito popular. Prazer(es), um bem supremo ao qual dedicava a vida à sua satisfação pessoal. Era como se sua existência tivesse na diversão o seu único propósito, e se divertir, em seu limitado vocabulário, significava seduzir belas mulheres, todas elas, se possível. Não havia noite em que ele não pusesse os pés fora de casa para “se divertir”, era como ele se referia à sua prática conquistadora.

            Suas táticas de sedução eram conhecidas de qualquer conquistador barato, e de muitas desafortunadas mulheres, infelizmente. Depois de aproximar-se da vítima escolhida, ele a envolvia com uma manjada conversa fiada, os mesmos elogios fáceis à sua beleza e ao seu sorriso. Não há coração feminino que não se renda à lisonja de um homem atraente e conquistador e, por tanto, não demorava muito até que ela, imprudentemente, cedesse ao seu encanto, tornando-se mais uma em sua longa e bem sucedida lista.

No decorrer da noite, então, ele não se dava por satisfeito enquanto não desfrutasse dos favores da moça, porque ele era muito insistente neste aspecto, e usava de todas as suas artimanhas para alcançar este que era o seu objetivo principal. A noitada, então, tornava-se num jogo sensual de lobo perseguindo a lebre, até que esta se desse por vencida e capitulasse. Entretanto, não havia dúvidas de que fosse exatamente este o plano dela, também, desde o início, apesar de ela seguir fielmente os conselhos de sua querida mãe, que julgava ser o mais apropriado para uma moça de família resistir às investidas do homem, nem que fosse só um pouquinho, para que ele não tivesse uma ideia errada a seu respeito.

João dos Prazeres surpreendia as mulheres como amante, pois não apenas ele era muito habilidoso no assunto, como as deixava apaixonadas. Entretanto, ele considerava tedioso sair com a mesma mulher mais de uma vez, se enjoava dela com a mesma rapidez com que se interessava. Depois da noitada, ele simplesmente sumia do mapa, não atendia os insistentes telefonemas da moça, ignorava-a e ponto final. Como era de se presumir, ela sofria por ser abandonada, mergulhando num mar de mágoa, amargura e arrependimento. Será que, agindo assim, ele realmente gostava das mulheres, ou apenas as punia por serem mulheres?

Entretanto, certa vez o destino lhe pregou uma peça, confrontando-o com a sua dura realidade, fazendo com que sua máscara caísse, revelando a si mesmo o seu verdadeiro ser. João dos Prazeres chegou ao mesmo bar o qual dava início as suas noitadas e ocupou o seu lugar favorito ao balcão. Ao seu lado, logo em seguida sentou-se José, um desconhecido, que o saldou com um brinde de cerveja. Aquele gesto amigável foi o suficiente para que os dois estranhos se pusessem a conversar como velhos amigos, pois não há nada como uma garrafa de cerveja e dois copos para celebrar a amizade entre dois homens que acabaram de se conhecer. José estava naquele bar pela primeira vez e tinha o mesmo propósito de João, conquistar uma mulher para se divertir. E não demorou muito para o álcool fazê-lo soltar a língua, contando a João inconfidências sobre a sua mais recente aventura amorosa. João ficou fascinando ao ouvir aquele relato, parecia ele mesmo agindo em uma de suas conquistas. Pediram mais uma cerveja e brindaram às mulheres, mas, desta vez, foi João quem contou ao novo amigo uma de suas aventuras. E assim os dois companheiros de divertiram preenchendo o vazio da noite com cervejas e histórias picantes.

A noite se passou sem João, entretanto, ter posto os olhos em uma única mulher se quer e, certamente, havia muitas delas para serem admiradas naquele lugar. No entanto, sua atenção foi arrebatada por aquele rapaz com quem acabara de fazer camaradagem, como se ele possuísse um magnetismo que João não pudesse resistir. João sentia-se estranhamente naquela situação, um desejo forte e inexplicável de atração por um homem que ele jamais experimentara algo semelhante antes em toda a sua vida. Ao ouvir José contar com prazer e riqueza de detalhes as suas aventuras sexuais, era como se ele estivesse ouvindo a si mesmo ou admirando-se ao espelho. Os dois homens riram juntos do modo como ambos se divertiam com as mulheres e depois as desprezavam feito algo sem mais utilidade.

Na despedida, ao final da noite, um aperto firme de mão selou de vez a nova amizade, seguido de um forte e longo abraço que João deu em José, fazendo este se sentir incomodado. E, sem conseguir conter o impulso, João tentou beijar os lábios de José, ao que foi repelido por este com firmeza e repulsa. João, também, chocou-se, entretanto, consigo mesmo, porque aquele gesto foi impróprio de sua natureza, inédito de sua pessoa. Atordoado com o que acabara de acontecer, ele deixou o bar envergonhado, logo em seguida. No caminho para casa, João recriminava-se e, ao mesmo tempo, não conseguia fazer desaparecer José de seus mais íntimos pensamentos e fantasias. Desejos conflituosos lhe afluíam à cabeça como uma tempestade, confundindo-lhe os sentimentos. Para seu assombro, ele se descobriu desejando estar com aquele homem a noite inteira, ouvir mais uma vez a sua grave voz, sentir a rigidez de seu corpo, tão diferente da maciez feminina, e beijá-lo a noite inteira. João, então, desmoronou chocado com aquela descoberta a seu próprio respeito, sentiu-se no inferno. Deu meia volta e retornou ao bar onde estava antes, aproximou-se de José, que continuava ao balcão, e o atacou de assalto com os punhos cerrados e chutes enquanto gritava tomado de cólera “eu sou é macho!, eu sou é macho!, eu sou é macho!”

Rio Vermelho, 9 de outubro de 2012.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Feia de dar gosto.


Era feia como a necessidade. Mas ninguém jamais teve a ousadia de dizer-lhe pessoalmente, ou anonimamente por carta. E nem mesmo ela dispunha daquela qualidade invejável que as pessoas de bom senso costumam chamar de autocrítica, não pelo menos em quantidade o suficiente para ela se dar conta de sua inominável feiura. Entretanto, ela tinha coragem de sair de casa à luz do dia, e ia para o emprego num salão de beleza.

         Elindinalva não era nem um tiquinho bonita e nem mesmo o seu ridículo nome ajudava a melhorar as coisas, parecia também uma incoerência que uma pessoa tão desprovida de tais atributos físicos trabalhasse num lugar onde era um templo de veneração à beleza física. Mas tal concessão se explicava por sua inequívoca habilidade: ela tingia cabelos como ninguém. Não havia outra pessoa que soubesse tingi-los igual a ela e ainda assim fazê-los parecer tão naturais, não era por menos que ela era considerada o Michelangelo das tinturas, um verdadeiro gênio no assunto. A morena que entrasse pela porta do salão e sentasse em sua cadeira era transformada numa loura tão autêntica quanto a verdadeira, sendo uma façanha fazer uma distinção entre a de verdade e a sua criação.

         Mas por causa de seu infortúnio, Elindinalva nunca teve um único namorado, jamais foi beijada, nunca houve um homem, nem mesmo um desses que proclamam com ares de superioridade que beleza não é tudo, capaz de cortejá-la. No caso de Elindinalva, nem mesmo o mais benevolente dos corações masculinos era capaz de um ato de heroísmo. Ela era feia mesmo e ponto final. Sendo assim, o único amor que ela conhecia era o de pai e de mãe, e até estes se perguntavam como puderam ter trazido ao mundo uma criatura tão feia. Diante desses fatos, não era surpresa alguma que ao completar trinta anos Elindinalva ainda fosse moça.

         No entanto, contrariamente aos fatos, Elindinalva era uma mulher alegre e cheia de si, bem humorada e capaz de fazer piada de sua condição. O que lhe faltava de atributos físicos sobrava-lhe em simpatia e modos cativantes. Ela era capaz de encantar as pessoas e fazê-las gostar dela, em termo de amizade, para ser específico.

         Certo dia, um fato inesperado transformou a vida de Elindinalva para sempre. Ao atravessar a rua indo para o trabalho, teve o infortúnio de cruzar em seu caminho uma dessas dondocas cuja vida não poderia ser menos vazia se não houvesse os celulares e uma conversa frívola que lhe ocupasse o tempo enquanto dirigisse. O carro ia a alta velocidade e distraída não percebeu o sinal vermelho e nem a mulher que atravessava solitária à sua frente. Do encontrão, resultou em dor e sofrimento para a pobre Elindinalva que foi arremessada longe enquanto a outra, sem querer interromper o seu bate-papo e se atrasar para o horário no salão, seguiu em frente sem se dar ao trabalho de olhar para trás.

Mas por um milagre, Elindinalva sobreviveu ao trágico acidente, apesar dos machucados. Além das costumeiras fraturas e pele lacerada, seu rosto foi desfigurado, pelo mesmo foi isto que concluiu o paramédico ao deparar-se com aquela feiura, aquilo só podia ter sido causado pelo acidente. Para concertar aquele estrago, foi chamado um brilhante e vaidoso cirurgião plástico, ele mesmo tão belo como uma criação divina, que resolveu exibir-se recriando o rosto de Elindinalva à perfeição.

Quando ao cabo de uns dias tiraram-lhe as ataduras e colocam à sua frente um espelho, Elindinalva deu um grito de pavor ao deparar-se com aquela criatura cujas feições eram iguais à da boneca Barbie, ela não se reconhecia, estava totalmente desfigurada, quem era aquela coisa horrorosa no espelho? Depois de chorar convulsivamente e deixar-se sedar pelas enfermeiras condoídas com o seu sofrimento, ela dormiu feito um anjo. Quando despertou daquele sono induzido, descobriu que não fora tudo um pesadelo como imaginara. Mandou vir o exímio cirurgião e exigiu de volta o seu antigo rosto.

O habilidoso cirurgião aceitou o desafio e depois de uma demorada e delicada operação, protagonizou o milagre de devolver Elindinalva à sua feiura habitual. Entretanto, o tirar as ataduras, dias depois, o médico, acostumado a ter sob a mira de seu bisturi as mais belas e vaidosas mulheres, impressionou-se com a feiura natural de Elindinalva. Considerou-a algo sublime, mas que aos olhos do leigo e do acostumado ao gosto popular era invisível, uma beleza extraordinária, uma verdadeira Vênus da modernidade ao contrário. Elindinalva foi-se embora para casa satisfeita, levando consigo a sua feiura e deixando o cirurgião plástico com o seu rosto guardado na memória e sinceramente encantado.

Semanas depois, já completamente curada e de volta ao seu posto no salão de beleza, não sem tempo, pois a sua presença se fazia mister, uma vez que o prazo de validade de muitas louras, ruivas e acajus havia se expirado transformando a vida daquelas madames numa polvorosa crise de identidade. Em meio às tinturas e apliques, Elindinalva teve o seu serviço interrompido para receber um lindo buquê de rosas vermelhas com um convite do apaixonado cirurgião para um encontro.

Rio Vermelho, 10 de setembro de 2012.

         

domingo, 2 de setembro de 2012

NÃO FOI AINDA A SUA VEZ OU A ESTÓRIA DO MÉDICO QUE FICOU ALIVIADO.


Ao apalpar-se certa manhã durante o banho, sentiu um caroço. Podia ser apenas um fibroma sem importância, contemporizou; ou coisa bem pior... Teve um calafrio. Médico experiente que sempre foi, um caroço naquela região do corpo não devia ser negligenciado. Ficou angustiado ruminando aquela insensatez ao longo do dia e resolveu procurar a ajuda de um especialista imediatamente.

O seu colega só cobrou metade da consulta, ainda assim o outro achou caro, fazer o quê. Depois de algumas apalpadelas, o caríssimo especialista fez uma expressão grave, pediu um exame de imagem igualmente caro como a sua consulta, coisa de última geração. Aconselhou o paciente a não dirigir automóvel, operar máquinas perigosas, não praticar esportes e abster-se de luxúria até terem o resultado do exame.

O médico largou o carro no estacionamento e voltou de taxi para casa, no caminho, teve vontade de espirrar e, desesperado, temeu por consequências trágicas, não lembrava de o especialista ter restrito esternutações. Chegou ao lar sorumbático, todo borocoxô. Pensou com sigo mesmo, “tô fudido”.

De sua casa, marcou o tal exame. Só daqui a três dias, lhe disseram, não dava para ser nem em um ou em dois dias antes, e o pagamento era feito em espécie e sem conversa mole, que médico pagava o mesmo que os outros pacientes, ninguém tinha privilégios naquele lugar, fazer o quê.

Aquela semana foi a mais longa de toda sua vida, três dias pareceram trinta. Preocupado, o médico não foi trabalhar. Precisava organizar a sua vida antes que fosse tarde demais. Fez as contas de tudo quanto devia e separou o dinheiro, passou algumas procurações para a esposa e escreveu um sucinto testamento de próprio punho. E tanto ainda por fazer, lamentou-se. Sentiu-se impotente e injustiçado ante a grave moléstia; logo ele, um brilhante médico, considerado por todos um gênio, um médico desses de ressuscitar defunto de três dias. Como a sua vida lhe pareceu frágil, o homem que se achava um Deus agora se sentia como um reles mortal. Percebeu como era difícil e doloroso ser o paciente, agora que o seu destino estava nas mãos de outro jaleco branco, um homem insensível e de olhar duro.

Naqueles três longos dias que se sucederam, e que lhe pareceram uma eternidade, lembrou que já era tarde demais para ir ao Nepal como sempre sonhara. E nem nunca lera além do prefácio de “A Montanha Mágica” ou escrevera o seu próprio livro policial usando aquela ideia genial que certo dia teve. E a sua longa lista de mulheres com quem sonhava transar algum dia, estava cancelada. Suspirou. Lamentou pelos poemas de Drummond e Pessoa que nunca leu para a amada esposa, mãe de seus filhos pequenos, os mesmos filhos que não veria crescer, embora ele raramente os visse, pois ele vivia para o trabalho, para dar a sua família uma vida confortável sem que lhe faltasse nada.

Na véspera do exame, ele foi ver a amante e despediu-se com uma tarde de pecados inconfessáveis, deu-lhe de presente uma linda e cara joia que ela poderia vender, numa hora de aperto. Na manhã seguinte, no dia fatídico, amou a esposa antes do café da manhã como há muito não o fazia, fazendo-a até apaixonar-se de novo pelo marido e ponderar livrar-se do jovem amante. Beijou os pequeninos e foi enfrentar a ressonância magnética.

Ele que prescreveu tantas vezes a seus pacientes aquele exame, nunca imaginou como o mesmo fosse tão incômodo. Foi entupido de contraste pelas atendentes e esperou tantas horas quanto foi preciso até ser metido numa fina túnica e daí seguiu para dentro de um tubo que temeu ser o prelúdio de sua tumba. Enquanto era mantido imóvel dentro daquela terrível cápsula que examinava cada uma de suas células, apelou para a salvação divina ensaiando um mal engendrado “Pai Nosso que estás no céu”, mas terminava sempre se enrolando em algum lugar entre o “vem a nós o vosso reino” e o “pão nosso de cada dia”. Terminou por rezar o Hino do Bahia, cuja lembrança era mais vívida em sua memória por ser um devoto fervoroso e, com o qual esperava obter, de qualquer jeito, a mesma graça divina.

Quando o exame ficou pronto, o doutor correu levando-o para o seu caríssimo especialista cujo documento leu com uma expressão de constipação crônica. E sem dizer mais nada, o especialista colocou 16 gotas de uma mágica porção em meio copo de água que serviu ao seu paciente que o bebeu feito um cordeirinho, dando por encerrada a consulta. O famoso médico deixou o consultório com um sorriso de felicidade e, caminhando lépido em direção ao automóvel, já no pátio do estacionamento, soltou um sonoro e vigoroso peido que o fez sentir-se aliviado. Foi o efeito da porção mágica, tudo não passou de gases. Estava curado!

Rio Vermelho, 2 de setembro de 2012.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Viúva com v maiúsculo.


Era uma jovem, bela e chorosa viúva cujo saudoso coração selou com luto e amargura. Não quis mais saber de outro, o falecido foi o grande amor e, por fidelidade à sua memória, prometeu a si mesma jamais substituí-lo. Ah, como era solitário e vazio o seu coração carente do afeto e aconchego de um homem.
Uma dessas adversidades do cotidiano a fez deixar o automóvel no conserto aquela semana, e como tinha de ir trabalhar todo santo dia, não teve outra alternativa se não ir de ônibus, solução que, aliás, casou-lhe desagrado, uma vez que o transporte público não apenas era de má qualidade, mas insuficiente, tanto que nas horas cruciais do dia, uma multidão de passageiros se espremia em seu interior feito gado sendo transportado para o abatedouro; um horror.
A jovem e delicada viuvinha não estava acostumada àquele desconforto, que ela só usava o automóvel como meio de locomoção e não imaginava que uma viagem de ônibus de seu bairro até o centro da cidade, onde batia o ponto, pudesse ser algo tão desagradável. Logo no primeiro dia de sua lamentável saga, percebeu que viajar confortavelmente sentada era um privilégio para poucos, uma vez que ela embarcava no transporte já lotado no meio do trajeto. Concluiu, então, que dificilmente teria a sorte de pegar um assento vago ou de ter a grata satisfação de encontrar um cavalheiro já acomodado que lhe fizesse a gentileza de lhe ceder o lugar. Ajeitou-se de pé para não cair da melhor forma que pode, com uma mão segurava o corrimão preso ao teto e com a outra a bolsa que trazia rente ao corpo para livrá-la de gatunos.
No entanto, não partiu de um larápio a origem de sua indignação. A princípio, ela apenas julgou que fosse sua imaginação, mas devido à persistência da ação, concluiu indignada que algum safado estava se aproveitando de sua vulnerabilidade pelas suas costas, ou, mais apropriadamente colocando, pelo seu traseiro! Em meio àquela multidão de corpos que se apinhavam dentro do ônibus, sentiu que um corpo rijo e pulsante roçava insistentemente contra a sua bunda. Seu primeiro ímpeto foi olhar para trás e passar uma descompostura no descarado, mas depois temeu uma represália, uma violência física pior que aquela a qual estava sendo submetida. Sufocou o grito, os olhos encheram-se de lágrimas, indignada fez de conta que nada estava acontecendo. E como não encontrasse resistência alguma por parte da apetitosa moça, o devasso cidadão começou a bambolear os quadris com a cadência de um expert no assunto ao que a viúva, sentindo no traseiro aquela ritmada ginga, achou aquilo intolerável e fugiu dali, indo estacionar-se logo adiante em frente de outra mulher o dobro do seu tamanho. Mas que canalha, ela resmungou.
Ao longo do dia, ela não pensou mais no assunto e só na volta para casa, já de pé dentro do famigerado ônibus é que teve o pressentimento de que o mesmo libertino daquela manhã estava novamente de pé logo atrás de si, pois o mesmo abuso se repetiu. Que diabo, pensou a viuvinha. Mas logo ela percebeu que não se tratava do mesmo homem da manhã, pois sentiu que a sua pujança e mexida eram diferentes, concluiu resignada.
Aquela noite ela teve o sono agitado e sentiu calores entre as pernas como há muito não acontecia. Sonhou que estava, pois, de pé numa interminável viagem a bordo de um ônibus lotado de homens desfigurados que faziam fila logo atrás dela, esfregando seus rijos brutos contra sua bunda como se quisessem arrancar-lhe os couros, extraia-lhe soluços e provocava-lhe uma tremedeira incontrolável nas pernas. Na manhã seguinte, sua ida para o trabalho foi como se o tal sonho da noite anterior tivesse se repetido, pois o ônibus não apenas estava lotado de homens, como cada um deles parecia ter resolvido tirar dela uma lasquinha!
Um turbilhão de desejos e sensações confusas tomou de assalto os pensamentos da pobre viuvinha que se sentiu diferente naquela memorável semana, como se tivesse libertado de alguma coisa que guardava secretamente em seu interior. Mas para sua satisfação, o seu carro ficou pronto no dia combinado e o mecânico ainda lhe fez a gentileza de ir deixá-lo em sua casa pela noite. Seu sofrimento havia chegado ao fim.
Na manhã seguinte, tomou um bando demorado com sais e óleos para sentir a pele macia e depois perfumou-se com alfazema francesa. Vestiu-se cuidadosamente admirando-se no espelho, escolheu a lingerie mais transparente e delicada para, em seguida, mudar de ideia resolvendo que dispensaria o uso daquele artigo obsoleto. Sentiu-se linda, com uma beleza quase imoral, e quando finalmente ficou pronta para ir para o trabalho, foi lépida e fagueira para o ponto do ônibus!
Rio Vermelho, 3 de agosto de 2012.


quarta-feira, 11 de julho de 2012

A Virtuosa.


Era um poço de virtudes, uma verdadeira cristã. Sua vida resumia-se na rotina diária de casa para o trabalho e do trabalho para casa e, aos domingos, ia ao culto da igreja onde, também, ensinava a bíblia aos jovens. Não se casara ainda e nem se sabia de nenhum pretendente, mas se fosse para ter namorado, ela já avisava com convicção, era para ser namoro sério de porta, noivar e casar logo, tudo nos conformes.
         Não recusou convite da colega de trabalho para a festa de aniversário em sua residência, apesar de ela não ser irmã da igreja e, portanto, sabia que haveria na comemoração festiva coisas que a sua religião condenava como bebida alcoólica e dança. Fazer o quê, o importante era que ela tinha a sua fé e sabia muito bem distinguir o certo do errado e sabia resistir às tentações do capeta.
         Ao chegar à festa, foi recebida com satisfação pela dona da casa e, em seguida, foi se acomodar discretamente num sofá ao lado de um cavalheiro que não deixou de perceber as suas belas formas mantidas escondidas debaixo do vestido puritano que fechava rente logo abaixo do pescoço e que lhe caia além dos joelhos, aliás, como toda moça de respeito deveria se trajar. O rapaz sentiu-se provocado pelo pudor da moça ao seu lado e passou a desejá-la de forma pouco republicana. Para puxar conversa e demonstrar ser sociável, ele deu uma mancada ao oferecer-lhe uma cerveja bem geladinha.
         — Deus me livre! Eu não ponho álcool na minha boca. Por motivos religiosos, você me entende?
         Certamente, o rapaz não entendia nada de religião, pois naquela noite sua maior preocupação era colocar a moça para se ajoelhar e rezar segundo o seu catecismo! Depois de aguardar mais algum tempo que ele julgou apropriado, deu uma segunda investida.
         — Não, obrigada. Eu não fumo! Por motivos religiosos, você me entende?
         O rapaz ficou desconcertado com a sua total falta de tato em lhe dar com aquele tipo de mulher, mas mesmo assim tentou uma terceira vez, e tentaria outras até que alcançasse o seu intento.
         — Não, obrigada, querido. Eu não danço. Por motivos religiosos.
         Mas apesar de todas as suas ofertas terem sido recusadas educadamente, o rapaz não desanimava, não estava disposto a desistir, ao contrário, aquelas negativas da moça causavam-lhe efeito inverso, de modo que mais interessado ele ficava por ela, que aquilo já virara uma questão de honra e tentaria arrancar dela nem que fosse apenas um inocente beijinho. Mas só Deus sabe como ambos acabaram se entendendo e o que foi que ele disse ou fez para conquistar o coração da virtuosa moça, de modo que ao final daquela noite ela não apenas se ajoelhou como também rezou fogosamente. O rapaz, pego de surpresa, deu o maior duro para satisfazer os caprichos e vontades daquela moça tão recatada. Num intervalo que ele lhe pediu para descansar e recarregar as baterias, ele não resistiu e falou assim pra ela:
         — Eu não compreendo você, não bebe, não fuma e também não dança por motivos religiosos, mas, no entanto, estamos aqui na cama fazendo ousadia a noite toda...
         Ela deu um sorriso amarelo e explicou:
         — É como eu sempre digo aos meus alunos da escola bíblica de domingo: é possível se divertir muito na vida sem precisar beber, fumar ou dançar!

Salvador, 11 de julho de 2012.

domingo, 24 de junho de 2012

Sem pudor.


Falava à vontade com o aparelhinho colado ao ouvido como se estivesse na cozinha de casa e como se o mundo ao seu redor não existisse. A voz era estridente e perfeitamente clara, de modo que os passageiros do ônibus participavam da conversa, mesmo sem desejar aquela estranha e inesperada intimidade.
         — Mas por que você acha que eu sou uma vagabunda? Que foi que eu fiz pra você ter esta ideia a meu respeito? – quis saber a moça sentada ao lado da janela.
         Se ao menos ela tivesse a delicadeza de pôr o aparelho no “viva-voz”, os ouvintes daquela inverossímil conversa saberiam o que dizia a outra parte, embora muitos dos que estavam ali espremidos naquele ônibus já tivessem suas próprias opiniões a respeito. É isto, desde que os telefones celulares chegaram ao mundo, as conversas particulares viraram coisa pública, e as pessoas passaram a falar na frente de estranhos coisas que só diriam ao padre no confessionário.
         — Escute, eu não sabia que você era casado, juro... Mas veja como você é um homem bom e sincero me contando isto justamente agora, é tão difícil encontrar homens que falam a verdade...  Poxa, Ubaldino, você merece que eu te dê uma chance...
         Para não faltar com o caro leitor, cabe um esclarecimento, a moça ao telefone está oferecendo os seus favores ao homem do outro lado da linha, mas este não está nem um pouco interessado e, para se livrar dela, mentiu dizendo que era um homem casado e fiel.
         — Não, menino, eu não sou esta vagabunda no sentido que você está dizendo, mas eu adoraria ser a sua puta! .... olha, eu me garanto, viu, ninguém nunca nem reclamou... vou te deixar um bagaço, meu filho!
         A velha sentada logo à sua frente se benzeu. “Que devassidão!” O cavalheiro de pé trajando um paletó preto e segurando uma maleta 007 lançou-lhe um olhar lascivo. A dona de casa torceu o nariz e balançou a cabeça. “Mas que sujeitinha...” Alguns deram um sorriso maldoso, outros um olhar de desaprovação. Aquela conversa já ia longe demais, mas ninguém ousava interrompê-la, afinal, o local era público.
         É interessante como o advento do celular fez com que pessoas perdessem a única nesga de pudor que lhes restassem, ao expor a estranhos pormenores de suas vidas privadas que em outros tempos seriam poupados de ouvidos alheios. Se hoje em dia casais e famílias problemáticas vão a programas de TV para lavar a roupa suja nos lares das famílias brasileiras, as conversas telefônicas em público, então, são como reality shows ao vivo que despertaram o lado voyeur que existe nos recônditos de cada um de nós. É possível se ouvir de tudo na rua, desde casais brigando a homens de negócio fechando contratos vultosos com clientes no outro lado do mundo à mesa de cafés. Certa vez, ouvi com a curiosidade que me é própria, a conversa de um advogado instruindo a seu cliente como mentir para o juiz para que ele se livrasse das acusações que lhe eram imputadas. Certamente o celular levou a palavra “pudor” ao desuso e, embora este seja, na maior parte das situações, uma mão na roda para os seus usuários, ele é utilizado também em situações bem pouco republicanas.
         Um marido estava deitado pelado sobre a cama redonda de um luxuoso motel, acompanhado de uma linda jovem que certamente não era a sua esposa, e ao perceber que o entusiasmo da situação o fizera perder a hora, teve um sobressalto e ligou de seu aparelho celular para a esposa, que o aguardava ansiosa em casa para o jantar.
         — Benzinho, eu estou aqui num puta congestionamento na Paralela, vou chegar mais tarde... – mentiu confiante.
         — É mesmo? – respondeu a mulher desconfiada. – Então, buzine aí o carro que eu quero ouvir!
Rio Vermelho, 24 de junho de 2012.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Apego a formalidades.

Andava com os nervos à flor da pele por causa de noites mal dormidas e irritação com a vizinhança. Na verdade, só um vizinho o aborrecia tanto assim, e acontecia de este ser, também, o motivo das noites perdidas. É que abriram um bar em frente à sua casa. Destes frequentados por gente que fala aos berros, bebe muito e dá vazão desmesurada às emoções, que um bar é quase sempre um vizinho indesejável.
         Francisco era justamente o oposto, não frequentava bares, bebia como um passarinho e estava sempre mal humorado. Mas a sua querela com o inoportuno vizinho justificava-se: o estabelecimento só abria para a noite, mas o vigia do local colocava música o dia inteiro e com o volume nas alturas, pois estava decidido a compartilhar o seu gosto musical duvidoso com a vizinhança, para desespero do desafortunado Francisco que trabalhava em casa e precisava de silêncio. Resultado: de dia ele não conseguia trabalhar direito por causa da música alta do vigia e à noite a zoada do bar roubava-lhe o sono. Era um inferno!
Foi reclamar ao proprietário que, para seu azar, era um homem grosseiro e alheio a princípios da boa vizinhança. O vigia não estava fazendo nada de mais ao se distrair ouvindo música e podia ouvi-la no volume que bem desejasse, respondeu indiferente a Francisco, dando por encerrada a conversa. E como se não bastasse, nas noites das quartas-feiras tinha um telão para a clientela assistir o futebol. Aí sim é que aquilo lá virava um inferno quando alguém gritava “gol!”.
         Mas Francisco, que era um tipo muito educado e reservado, não tolerava desaforo algum, brigava por seus direitos com unhas e dentes. No dia seguinte, foi no órgão da prefeitura responsável por aquele tipo de abuso e formalizou uma queixa. Agora o dono do bar vai se ver com as autoridades, profetizou satisfeito. Passados três longas semanas, finalmente o fiscal da prefeitura deu as caras no local, mas os argumentos do proprietário foram mais convincentes, qual barnabé não é sensível a uma boa explicação recheada de dinheiro? Francisco aguardou até que ele saísse do bar para interpelá-lo e este veio com uma explicação de fazer cair o queixo: não poderia fazer nada a respeito uma vez que o estabelecimento não possuía alvará de funcionamento, não estava legalizado, portanto, e como este não existia formalmente para a prefeitura, não tinha como autuá-lo, pois o bar não existia! E foi-se embora satisfeito com os bolsos cheios de dinheiro.
         Indignado, Francisco resolveu voltar à prefeitura com a intenção de resolver aquela questão a qualquer custo, desde, é claro, que fosse de forma lícita, pois ele se pautava pela correção e honestidade, não iria molhar a mão de ninguém para ter seus direitos reconhecidos, a paz e sossego eram direitos fundamentais do cidadão. Como não podiam fazer nada contra um estabelecimento clandestino? Que espécie de desculpa esfarrapada era aquela? Desta vez, chamou seu amigo Josivaldo para acompanhá-lo na empreitada, este serviria para lhe dar apoio moral. Francisco queria falar com algum funcionário superior, alguém dotado de discernimento que percebesse o absurdo dito por aquele fiscal corrupto e que tomasse as devidas providências. No dia seguinte, voltou ao órgão municipal com Josivaldo a tiracolo.
         Francisco não era o único a brigar por uma causa junto à prefeitura e, por isso, a sua senha de atendimento era a de número 237 mas, para o seu desespero, o placar estava ainda no número 56! Felizmente não esperaria todo aquele tempo sozinho, pois Josivaldo estava ali ao seu lado para fazer-lhe companhia, ficariam jogando conversa fora até que chegasse a sua vez. Pobre Josivaldo, há coisas aborrecidas que só mesmo por um amigo do peito se faz, e uma delas é fazer-lhe companhia numa fila de espera de uma repartição burocrática da prefeitura. E quem tem amigos, espera um dia poder contar com eles numa eventualidade. Foi quando Dagoberto, um amigo de Francisco dos tempos de faculdade e companheiro de farras homéricas apareceu por detrás do balcão. Ao vê-lo Francisco surpreendeu-se e logo concluindo que o grande Dagoberto deveria ser um funcionário daquela repartição. Havia anos que ambos não se falavam e Francisco foi lá cumprimentá-lo enquanto, de longe, sentado em seu lugar, ficou Josivaldo assistindo a cena, torcendo para que Dagoberto se mostrasse útil e desse um jeitinho para resolver o problema de Francisco, para que os dois fossem embora dali o quanto antes.
         Trocaram abraços calorosos, rizadas, tapinhas nas costas em meio à conversa. Pelo entrosamento entre os dois, Josivaldo concluiu que o problema já estava bem encaminhado, sentiu-se quase chegando de volta em casa.
         — E aí, falou com ele? – quis saber Josivaldo ao retorno de Francisco.
         — Nem toquei no assunto. – respondeu Francisco desanimado.
         — Mas por quê?
         — Ele não me perguntou o que estava fazendo aqui. – respondeu Francisco amuado.
         — Que é isso! – exclamou Josivaldo perdendo a paciência. – Era só contar o problema e pedir a ele para dar uma força!
 — Mas se ele nem quis saber o motivo porque eu estou aqui, é porque não está interessado em me ajudar, não sou eu quem vai pedir favores! – disse Francisco dando por encerrada a questão, com o orgulho ferido.
         Josivaldo aborreceu-se com aquele comportamento de Francisco, nunca vira tanto pudor assim. Os dois ficaram mudos sem trocar mais palavras. O jeito era ficar aguardando até que chamassem o número 237 mas só Deus sabia quando isto aconteceria, e tudo isso por causa de uma mera formalidade.

Rio Vermelho, 11 de junho de 2012.
         

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Por uma questão de humanidade.


Desejava a vizinha ardentemente. Sonhava com a mesma acordado a ponto de dedicar-lhe memoráveis punhetas. Mas ele não tinha esperanças, achava-se velho demais, além do mais, que mulher jovem iria querer ir para a cama com um homem que tinha quase a idade de seu avô? Talvez só por dinheiro, mas ele não tinha tanto assim sobrando para aquele tipo de aventura, o jeito era economizar.
Astolfo era um sujeito de porte grande, proprietário de uma barriga saliente cultivada com a mistura de cerveja com petiscos; possuía, também, um bigode comprido e branco como o marfim e que lhe caia pelos cantos da boca fazendo-o parecer um velho leão marinho. Para completar a descrição, puxava da perna esquerda por causa de um diabo de artrose que não lhe deixava em paz e que tinha dias que lhe doía de fazer perder o sono e de tirar o apetite, mas não tomava remédio algum, tinha horror. E o remédio para matar aquele tipo de dor lhe tirava o tesão, apesar de este não lhe ser de muita serventia nos últimos tempos, mas tinha esperança que Jandira, a sua memorável jovem vizinha, aceitasse a oferta que lhe faria quando a oportunidade chegasse.
         Jandira era uma jovem e bonita morena de pele da cor do tamarindo maduro, possuidora de quadris largos e lábios carnudos e gordurosos. Astolfo a conhecia só de cumprimentar desde os tempos de moleca, mas nunca lhe deu a devida atenção, tinha o corpo miúdo de criança. Mas quando ela se tornou moça e o corpo floresceu numa mulher adulta e admirável, ele passou a cobiçá-la com olhos de lobo velho faminto. Da janela de seu quarto no segundo andar de um velho sobrado no Rio Vermelho, ele podia contemplar Jandira lavando a roupa no tanque no quintal de sua casa que era colada à sua. Ela ficava de costas para ele curvada sobre o tanque, metida num minúsculo short que sumia pelo rego das carnudas nádegas, isto quando não vestia uma apertada saia curtíssima que lhe acentuava a perfeição dos quadris e das pernas. Tinha vezes que ela esfregava as roupas agachada sobre uma bacia de frente para a janela do velho, aí sim o espetáculo era uma belezura. Astolfo podia ver pelo generoso decote de sua blusa os fartos peitos sacudindo de um lado para o outro como dois melões maduros ao fazer o esforço com os braços, e se ela estava de saia era uma loucura, ele podia jurar que via a ponta da calçola guardando-lhe a preciosa joia.
         Nos fins de tarde, Astolfo não perdia o horário de ir até a padaria na intenção de encontrar casualmente com Jandira que ia comprar o pão para o café da noite. Ele fazia questão de cumprimentá-la, na esperança de que um dia ela lhe desse ousadia e, por isso, não passava sem dizer um galanteio. “Boa tarde! O amarelo lhe cai muito bem.” Dizia elogiando-lhe o vestido. “Tá de corte novo de cabelo? Ficou parecendo uma princesa!” Que mulher não gosta de um elogio, mesmo vindo de um velho barrigudo e bigodudo? Um dia ele veio do mercado do peixe da Praia de Santana, trazia um pequeno balde quase transbordando de peixe agulha; cruzou com Jandira que olhou com curiosidade, Astolfo se adiantou. “Tome aqui uma dúzia para você fazer um ensopado pra janta.” Colocou num saco ali mesmo no meio da rua. “Eu gosto dele é frito!” Exclamou a moça agradecendo-lhe, numa das raras vezes que lhe dirigia a palavra.
         Jandira já tinha notado os olhares maledicentes daquele velho, mas ela não se incomodava, pois sabia que ela era mesmo gostosona, que ver não arranca o pedaço, fazia até bem à sua autoestima. O dono da mercearia ao lado da padaria só faltava uivar quando ela passava de minissaia. O vigia da casa lotérica e os outros vagabundos que lhe faziam companhia sentados na calçada, também a olhavam com olhos de peixe morto, mas ninguém ousava dizer-lhe gracinhas por uma questão de respeito, já que ela era uma moradora das vizinhanças e o seu pai era um homem respeitado. Mas Jandira não era boba, sabia que o velho Astolfo a espionava lá de cima de sua janela quando ela lavava a roupa no tanque, por isso lhe fazia uma caridade, ia vestida com um shortinho apertado e às vezes até uma saia bem justa pra testar se o coração dele aguentava ao ver a ponta de sua calcinha quando se acocorava de frente para a bacia.
         Certo dia, já tendo economizado bastante dinheiro, Astolfo muniu-se de coragem. Tomou um belo banho, arrumou-se e, no final da tarde, foi até a padaria encontrar casualmente Jandira que como sempre, foi comprar o pão. Na saída da padaria, chamou-a num canto: “Menina, cheque aqui.” Ela se aproximou curiosa e ele, à queima roupa, disse com todo o atrevimento mostrando-lhe um maço de dinheiro graúdo: “Olhe, isso aqui é todo seu, se você me der uma chupada.” Jandira tomou um susto e lhe lançou um olhar indignado. Controlou o tom da voz nervosa para evitar fazer uma cena em público. “Mas o senhor está me ofendendo, viu? Quem o senhor pensa que eu sou? Não sou dessas que faz estas coisas por dinheiro. O Senhor está enganado comigo. Não vou lhe cobrar um só tostão, que por uma questão de humanidade, não se nega um copo de agua ou um boquete a quem precisa!”

Rio Vermelho, 14 de maio de 2012.

domingo, 20 de maio de 2012

Ode ao amor.


Certa vez, escrevi uma linda carta declarando o meu amor, mas que jamais foi respondida. E na certeza de que a tal missiva encontrara a sua destinatária no gozo de boa saúde, fiquei triste com a sua indiferença ao decidir-se que eu não merecia resposta alguma. É intrigante o comportamento humano diante de situações que envolvem razões do coração, sobretudo o do sexo oposto, pois, se aquela não fosse uma carta de amor e sim uma de injúrias, certamente eu teria recebido o contra-ataque na sequencia. Mas, ao contrário, a minha carta era suave e gentil, romântica como um poema de amor exaltando as qualidades da amada e defendendo as razões do nosso amor, escrita com todo o ardor de meu coração sincero e apaixonado. A algumas poucas amigas, pedi-lhes que a lesse para que dessem o seu veredito. A resposta foi que todas desejaram um dia ter recebido uma carta tão corajosa assim de um homem apaixonado que abre o seu coração sofredor e cuja ferida ainda continua aberta. Houve quem se oferecesse como substituta, e até uma dama casada me quis como amante. Recusei todas as ofertas, o meu coração estava reservado para a outra. Este mal logrado episódio de conquista amorosa me fez lembrar outro, no qual o meu saudoso pai foi ator coadjuvante.
         Um de seus admiradores e amigo tinha por hábito ir ao seu atelier visitá-lo vez por outra, porque lhe fazia bem conversar com um homem das artes e assisti-lo em seu labor, que papai não se incomodava de prosear enquanto pintava. Seus quadros eram impregnados de poesia e lirismo, e contemplar a sua criação era um raro privilegio só experimentado pelo amante da música clássica ao assistir o maestro reger, cuja execução é única, isto é, ele jamais executa a mesma obra do mesmo modo.
Amâncio, assim se chamava o rapaz, ia ao atelier ver os quadros naquela semana porque ele estava sofrendo, e o seu sofrimento era da alma, mas chegava a causar-lhe dor física porque é assim que se sofre de um amor verdadeiro, e admirar a beleza dos quadros de papai era um bálsamo para a sua dor.
É que ele recebera o famigerado “pé na bunda”, e como todo ser humano rejeitado, ele não se conformava. A sua infinita e dolorosa tristeza se traduzia em lamúrias e choramingas que meu pai ouvia fingindo sincero interesse embora aquilo o aborrecesse, isto porque ele era feito de um tecido forte e agreste que não tolerava homem que chorava por causa de mulher alguma, homem chorando já era uma coisa feia, e ainda mais por causa de uma decepção amorosa, era uma vergonha ao gênero masculino. O temperamento áspero de papai era uma de suas idiossincrasias, certamente uma incoerência com o lirismo e suavidade de sua arte.
Amâncio ia ao atelier todo santo dia e repetia sempre a mesma ladainha, falava de seu amor desprezado e de seu coração partido e da forma como agora a ingrata o tratava, com tamanha indiferença, que nem um cão sarnento merecia, como se nunca houve uma estória de amor entre ambos. Ele pedia conselhos a papai de como ele deveria agir para reconquistar o coração da amada e sem a qual ele não conseguia mais respirar. É duro, mesmo, a dor de cotovelo, viu. Mas como diria papai na elegância de seu falar maranhense, aquela estória já estava lhe “enchendo o recipiente”, pois o rapaz estava um chato com aquela estória toda de amor não correspondido.
         Certo dia, papai teve uma ideia e disse assim a Amâncio: “Presenteie ela com um quadro. Vou pintar algo tão belo que ela não resistirá e se jogará apaixonada em seus braços.” O rapaz seduziu-se com a ideia e fez uma encomenda a papai. Realmente os quadros do mestre Floriano tinham tal valor terapêutico, comprovado por casais de clientes que lhe eram gratos, pois as cenas picantes protagonizadas entre marido e mulher, contidas em minúsculas janelinhas, uma marca de sua pintura, apimentavam as coisas na alcova matrimonial. No entanto, houve certa cliente que, indignada, questionou se aquelas mulheres não seriam prostitutas, ao que papai esclareceu que não eram apenas as mulheres-da-vida que faziam aquelas indecências, que donas de casa eram também filhas de Deus e, por isso, apreciavam uma gostosa sacanagem. Quando o trabalho ficou pronto, Amâncio veio buscá-lo, ficando encantado e agradecido, pois papai realmente se esmerara.
         Dias depois, Amâncio reapareceu e todo borocoxô, aquele mesmo olhar de cachorro abandonado e cabisbaixo que conhecíamos, que homem quando sofre de amor não o faz com a mesma dignidade que a mulher.
         — Deu o quadro à moça? – papai quis saber.
         — Dei, sim. – resmungou.
         — E ela, gostou? Se jogou em teus braços como te disse?
         — Ao contrário, ela o atirou na minha cabeça!
         Papai apiedou-se do rapaz e, para reconfortá-lo, disse-lhe cinicamente:
         — Está vendo? Esta mulher te ama! As mulheres são assim mesmo complicadas, sabe. Fazem coisas opostas ao que realmente sentem. Talvez ela não seja uma amante dos quadros e se contente apenas com um jantar romântico num lugar chique, talvez fosse isto que ela estava tentando te dizer.
E esta foi a última sugestão de papai, apesar de ter conhecimento que mulheres são loucas por joias, mas desta vez preferiu recomendar algo mais modesto, para poupar o amigo de outra despesa extravagante.
Rio Vermelho, 28 de novembro de 2011.