quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Caixinha de Natal

Depois de muitos anos ausente do bairro do 2 de Julho, Fefeu voltou a frequentar o lugar onde nasceu e se criou, num sobrado na Rua do Sodré, próximo ao Beco do Mingau. Mas o retorno àquele lugar caótico e fedorento no centro da cidade, em nada tinha a ver com uma súbita necessidade de ele voltar às suas origens. O motivo era bem menos nobre que se imagina.
É que Fefeu redescobrira o amor nos braços e entre as pernas de Jandira, uma morena de curvas acentuadas e seios de se perder de paixão. Ela era vendedora na pequena loja onde ele costumava comprar a ração para o gato da esposa, cuja afeição desmesurada pelo felino substituíra a indiferença do marido. Nas idas frequentes ao estabelecimento comercial, o romance floresceu. Ela residia lá no 2 de julho.
Duas vezes por semana, então, Fefeu desviava-se do caminho para ir jogar dominó com os amigos para cumprir expediente no 2 de Julho, onde passava o resto da tarde no aconchego dos seios de Jandira. Em suas frequentes jornadas de paixão, ele nunca se descuidava de levar um doce para o filho de sua amada, um menino esperto de seis anos a quem prometera, caso ele não incomodasse enquanto a mamãe e o titio estivessem tendo uma “conversa de gente grande” enclausurados no quarto, um bonito brinquedo de presente de Natal.
Dois dias antes da véspera de Natal, ao chegar no 2 de julho, Fefeu lembrou-se da promessa ao garoto. Meteu a mão no bolso e tirou de lá uma nota de cinquenta que olhou com um pingo de desapontamento. Era tudo o que tinha, mas não ia decepcionar o garoto que provavelmente iria aprontar um fuzuê caso não ganhasse o tal brinquedo e, de lambuja, ainda iria ter de enfrentar o mal humor de Jandira que era capaz de negar os seus favores até que ele cumprisse a sua promessa. Estava decidido, ia comprar um brinquedo barato num bazar árabe que havia na Conceição da Praia, não muito distante dali.
Desviou do seu caminho para ir ver Jandira, que morava num apertado apartamento localizado na Rua do Areal de Cima, e foi para o comércio descendo a pé pela deserta Visconde de Mauá. Aquele contratempo certamente lhe subtrairia preciosa hora de prazer com a sua amada, mas ele contava ser depois recompensado em dobro por ela que certamente iria saber demonstrar o seu reconhecimento por sua atenção com o menino.
Quando já percorrera metade do caminho antes de alcançar a Ladeira da Preguiça, um vulto pulou inesperadamente à sua frente, sem que ele soubesse vindo de onde, de braços abertos, segurava numa das mãos um reluzente punhal.
— Fefeu! Ô, Fefeu! Você por aqui?
A cor sumira de sua face naturalmente lívida. De sua garganta saiu apenas um gemido.  Suas pernas começaram a tremer pelo efeito do susto. Quem era aquele negão enorme que sabia o seu nome?
— Ô, rapaz, não está me reconhecendo?  É Netinho. Quando a gente era moleque, a gente cansava de nadar lá na praia da Gamboa. Tá lembrado?
— Ah sim, claro. Netinho! – mesmo aliviado por ter encontrado um amigo de infância, suas pernas continuavam tremendo sem controle.
— Você voltou a morar no 2 de Julho? – Netinho perguntou com interesse.
— Nãaao, tô com uma nega que mora lá em cima...
— Ah, bom. E já se aposentou?
— Sim, este ano, graças a Deus. E Você está nessa vida, hein amigo?
— Pois é, rapaz, agente tem de se virar.... Olha, vou te dizer uma coisa: evite passar por estas bandas a esta hora, está muito perigoso andar por aqui.
— Sim, vou seguir o seu conselho. – disse Fefeu com um sorriso amarelo.
— Não vou levar nada seu, fique tranquilo. – escondeu a faca.
Fefeu suspirou aliviado embora suas pernas não parassem de tremer.
— Eu só vou te fazer um pedido que você não negara ao amigo. – disse Netinho abrindo um sorriso sedutor. – Contribua com a nossa caixinha de Natal.
Aquele inofensivo pedido soou como um banho de água fria em Fefeu. Logo quando ele já achava que ia escapar ileso daquela situação. Lembrou do menino abrindo um berreiro, a cara feia de Jandira lhe recriminando e, o pior de tudo, o jejum a que seria submetido. Só tinha aquele dinheiro. Entregou-o, a contragosto, ao amigo assaltante que ao ver a nota de cinquenta sorriu satisfeito.
— Tu sempre generoso. – disse ele. – Feliz Natal, amigo. Vá em paz.

Rio Vermelho, 24 de dezembro de 2014.




segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Viciada Em Sexo

A mãe era louca de pedra. Desde o divorcio, há mais de oito anos, tomara aversão ao sexo oposto. “Homem não presta”, repetia às três filhas pequenas incutindo-lhes aquele medo irracional. “Fiquem distante deles que só causam sofrimento.”
A separação foi provocada pelas infidelidades do marido, um incorrigível mulherengo, a quem ela amava tanto a ponto de fingir-se de cega. No final, mesmo assumindo uma postura resignada, ele a trocou por outra a metade de sua idade. Certo dia, ele simplesmente arrumou as malas e saiu dizendo assim: “vou ali comprar cigarro e não volto mais.”
O fim do casamento arruinou a sua vida. Deixou o trabalho, passava o dia prostrada sobre a cama ou sentada indiferente em frente da televisão. Descuidou-se das filhas. Quando, finalmente, tomou novamente as rédeas de sua vida, parecia que tinha ficado com um parafuso a menos. Seu comportamento era de gente que não era boa da cabeça.
O tempo passou, as filhas se tornaram belas moças. Mais um motivo para que ela se preocupasse. Ordenou ao porteiro do prédio onde residiam que não deixasse homem algum subir durante a sua ausência, nem mesmo entregador de pizza! Vigiava as filhas com obsessão para que não se envolvessem com aquela raça masculina. E não passassem pelo mesmo sofrimento pelo qual passou.
Tanta preocupação assim era querer mudar a natureza das coisas. Ora, as moças eram jovens e estavam naquela idade de desejar estar com rapazes. Querer impedi-las, era como tentar apagar uma fagulha assoprando-a, o efeito pode ser o oposto. A faísca torna-se brasa e depois vira fogo. As moças ficaram mais curiosas sobre o assunto.
A mais linda de todas as três filhas, era também a mais nova. Ela era a mais comunicativa e a que mais fazia amizades, notadamente com os rapazes do bairro, a quem concedia os seus favores sem maiores cerimônias. Ela tinha o estranho hábito de anotar num caderninho de capa cor de rosa, o nome e a data do rapaz com quem ficou, acrescido de um breve comentário sobre suas impressões: grande demais, meio torto, pequenininho. E sobre as suas habilidades na arte do amor: apressado, lerdo, carinhoso, estilo lenhador.
Já a do meio, não era tão levada quanto a caçula, mas era exímia na arte da dissimulação. Gostava de colecionar garrafinhas de shampoos que levava dos motéis por onde passava. E quase sempre pedia dinheiro emprestado que jamais era devolvido.
A mais responsável era a mais velha, a única que levara a sério os estudos e que se formara na faculdade. Por este feito brilhante, era o orgulho da mãe.
Certo dia, no entanto, ao bisbilhotar a bolsa da mais velha, cuidado que costumava ter com as três filhas indistintamente, tomou um susto ao encontrar entre as páginas de sua agenda, uma cartela de anticoncepcional. Aquilo a deixou indignada. A pesar de todos os seus cuidados e recomendações, a filha já estava se perdendo na luxúria!
A menina, ao chegar em casa, tomou um susto ao abrir a porta e encontrar a família, tios, tias e agregados, todos reunidos.
— Ué, quem morreu? – ela quis saber assustada.
— Eu chamei seus tios porque queremos ter uma conversa séria com você. – a mãe falou sem rodeios.
— Que conversa, minha mãe? Que foi que eu fiz, agora?
— Esta manhã, espanando a poeira do quarto, deixei cair sua bolsa. Algumas coisas se espalharam pelo chão. O que isto estava fazendo em sua bolsa? – gritou a mãe agitando a cartela de comprimidos em sua mão.
A menina perdeu a cor da face. E antes que encontrasse uma boa resposta, a mãe vociferou. Estava descontrolada. Parecia que o mundo vinha abaixo.
— Vejam, só, ela já está no anticoncepcional! Era só o que me faltava, minha filha diplomada na faculdade já está fazendo sexo por aí. E nem namorado ela tem. Ai meu Deus, eu tanto que falei para as minhas filhas ficarem longe dos homens e justamente a mais velha, a mais responsável, a que devia dar o exemplo, já está fazendo sexo! Meu Deus, aonde foi que eu errei? Minha filha esta transando por aí. Ai meu Deus, ela já está estragada. Menina, você vai ficar viciada em sexo! Isso não tem fim, depois que começa, fica querendo toda hora, isso é uma coisa que não sai mais da cabeça, olha o que eu te digo! Meus irmãos, – disse voltando-se para os irmãos, irmãs, cunhadas e cunhados, o circo todo – me ajudem a colocar juízo na cabeça dessa moça, se não, ela vira uma perdida na vida!
Enquanto falava sem fazer pausa para recobrar o folego, agitava dramaticamente os braços. Os cabelos crespos e prateados se desprenderam caindo sobre os ombros, emprestando ao espetáculo a cena de uma mulher ensandecida.
— Ora, mamãe, não seja ridícula. Se a senhora perdeu o tesão pelos homens, o meu está apenas começando! – disse tomando de volta as suas pílulas.
Naquela mesma noite, a mãe se trancou no quarto passando a chave como sempre fazia. E tirou de uma brecha por detrás da pia do banheiro, um grande objeto cilíndrico emborrachado de aparência desgastada pelo uso frequente e ao qual recorria varias vezes ao dia para aplacar os seus momentos de fúria.

Rio Vermelho, 07 de dezembro de 2014.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Casal Moderninho

Amadeu chega em casa mais cedo e diz para Dulcinha na cozinha, ainda às voltas com a janta:

— Tive uma ideia brilhante para salvar o nosso casamento. – disse com contida excitação.

Acostumada a ouvir as ideias estapafúrdias do marido, ela responde sem tirar os olhos da panela.

— Ah, é? O Nosso casamento está em perigo? Não sabia.

— Você sabe, para agitar um pouco as coisas. – ele corrige-se.

— Ah, sim. – ela fica calada à espera de ouvir o resto.

A história de amor entre Amadeu e Dulcinha resumia-se assim: iam fazer dez anos de casados. Mas para ele, já parecia aquela eternidade. O negócio é que eles ainda eram meninos quando se uniram em matrimonio, nem bem tinham completado o ensino médio. Namoravam desde os quinze e, sabe como são os adolescentes nesta idade, fazem sexo como se isto fosse sair de moda na semana seguinte. Resultado, por causa de um desleixo dos coelhinhos, Dulcinha começou a sentir uns enjoos e não deu outra, estava muito grávida.  Sua família, que era muito religiosa e conservadora, não admitiu outra solução que não o casamento.

Durante todos aqueles anos de casados, no entanto, sem ter tido a chance de conhecer outras mulheres, Amadeu alimentava um desejo secreto de sair por aí pegando todas as que lhe davam bola. E, diga-se de passagem, não eram poucas.  Ele se tornara um rapagão bonito que chamava a atenção por onde passava, um bom partido mesmo. As colegas do trabalho só faltavam se jogar para ele.

— Vamos abrir a nossa relação. — ele disse como se tivesse acabado de inventar a penicilina.

— Que doideira é essa, meu filho, o que é que tu estás me dizendo? – Dulcinha lhe lançou um olhar chocado.

— O negócio é o seguinte, você fica livre para sair por aí e conhecer outros homens. E eu também. Entendeu?

Desta vez Amadeu exagerou na dose. Dulcinha não acreditava no que acabava de ouvir. Todos os santos dias a mulherada na rua dava mole para ele, mas ele se continha. Era a maior tortura que um cristão podia ser submetido. Não havia santo alguma que aguentasse tanta tentação. Ele resistia a trair a esposa. Mas já era hora de ele por um fim a tanta repressão. Então ele veio com esta brilhante ideia, se liberasse a esposa para dar suas escapadinhas, ela podia fazer o mesmo sem ter dor de consciência. Por outro lado, ele sabia que seria fácil pegar a mulherada que vivia lhe atentando. Quanto à Dulcinha, ela era muito pudica para estas coisas e, além do mais, tinha virado um bucho. Depois que teve filho, ela se descuidou, engordou, emagreceu e voltou a engordar novamente. Parecia que tinha perdido toda a vaidade, nem se cuidava mais. Por isso mesmo Amadeu tinha a certeza de que nenhum homem em sã consciência ia quer alguma coisa com ela. Então, dificilmente ele levaria chifres. No frigir dos ovos, só ele se daria bem.

— Ah, eu não sei não. Isto não me parece certo. Casamento é uma coisa sagrada, meu filho. Não é pra brincar desse jeito, não. – ela disse desconfortável.

— E eu concordo com você, minha flor. O que eu estou tentando fazer aqui, é salvar o nosso casamento, entende? Agente quase nem transa mais!

— Ai Amadeu, deixa eu pensar isto direitinho. Me dá um tempo, tá? Vai tomar o seu banho, esfria esta cabeça enquanto eu termino de fazer o jantar. Vai, meu filho.

A princípio, Dulcinha até achou que não era uma má ideia. Ela só não conseguia se imaginar dormindo com outro homem que não fosse o seu marido. Ela tinha as suas fantasias, mas nunca esperou que algum dia pudesse pô-las em prática. Não voltaram a tocar no assunto por duas semanas, Dulcinha até achou que o marido tinha abandonado aquela ideia sem pé nem cabeça. No entanto, ele voltou a insistir.

— Faz o que tu queres, meu filho. Só não te arrependas depois, porque aí a Inês é morta, viu. – ela foi taxativa.

Feliz da vida, no dia seguinte, Amadeu foi à luta. E no dia seguinte e nos outros que se seguiram. Mas agora que se considerava um homem livre, as mulheres pareciam que tinham sumido. É que uma coisa era flertar com ele sem maiores consequências, e outra era se meter com homem casado, o que era de conhecimento de todas. Seu grande plano parecia que tinha ido por água abaixo.

Certa noite, no entanto, Amadeu chegou cansado em casa e depois da janta foi se deitar. Dulcinha fez diferente, se arrumou direitinho, pôs um vestido apertado com um decote de tirar o folego, ajeitou o cabelo e passou uma maquiagem. Ficou bonitinha.

— Eu vou dar uma saidinha com as meninas e já volto. Vá descansar, meu filho. – ela disse. As meninas a que ela se referia, eram as suas amigas.

E no meio da noite, Amadeu foi acordado com um incomum pedido de Dulcinha que acabara de voltar para casa.

— Meu filho, te levanta e vai deitar no sofá da sala.

— Que pedido é este mulher, não vês que estou dormindo? – ele disse ainda grogue de sono.

— É que eu não quis ir pra um motel, não fica bem para uma mulher casada, você sabe.

— Mas o que é que está acontecendo? Eu não estou entendendo.

— Meu filho, tá lembrado, não? Agente abriu a relação. Foi ideia sua. Eu trouxe um rapaz e ele está impaciente. Imagine, ele adora gordinhas casadas. Anda meu filho que já está tarde. Leva o seu travesseiro junto pra você não acordar com o torcicolo.

A contragosto, Amadeu teve de aceitar aquela situação que só agora ele via o quanto ela era esdruxula. Levantou-se bufando de raiva e cedeu o seu lugar na cama para o convidado. No entanto, para não sucumbir de ciúmes ao ouvir os gemidos de luxúria de Dulcinha vindos de lá de dentro, foi encher a cara no boteco da esquina. Afogava as mágoas no copo repetindo aos prantos para si e para quem quisesse ouvi-lo “eu sou um corno, eu sou um corno manso.”

Rio Vermelho, 30 de outubro de 2014.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Desejo Incontrolável de Ser Mãe

Chegara aos 30 e queria ser mãe a todo custo. A maternidade semeava em seu corpo o desejo irrefreável de conceber. Era saudável, informou-lhe a doutora. Só tinha um obstante: precisava de um pai para a criança. E de um marido para ela. Tinha de ser de papel passado, ainda por cima. Jandira era uma mulher convencional neste aspecto. Nada de produção independente. Uma criança precisava de uma mãe. E de um pai. Antes de realizar o sonho da maternidade, precisava arranjar um marido.

O fato de ser a chefe do departamento de pessoal de uma grande empresa era uma situação vantajosa. Dezenas de homens que lá trabalhavam, poderiam ser os candidatos ideias para aquela empreitada. Bastava procurar na ficha dos solteiros, aquele cujo currículo enquadrava-se no cargo oferecido. Jandira era uma mulher obstinada.

Pesquisou na poeira de arquivos até encontrar um Eduardo Jorge. Locado no departamento de projetos no quinto andar, era cinco anos mais velho, economista e já fora promovido duas vezes em quatro anos de empresa. Não demoraria a se tornar o chefe do departamento. Era pontual, nunca faltava e era tido por seus superiores como um profissional ambicioso, trabalhador dedicado e criativo.

Jandira procurava por um marido e por um pai para a sua planejada cria como quem selecionava um candidato a uma vaga na empresa. Analisou o seu psicoteste, ficou satisfeita. Não era maluco. Só precisava saber se ainda continuava solteiro. Mas isto era fácil. Convoco-o a comparecer ao departamento para uma atualização de cadastro.

Depois de confirmar em sua ficha a condição de solteiro, Eduardo Jorge aceitou, primeiro surpreso e, em seguida, com um pingo de desconfiança, o convite de Jandira para que jantasse em seu apartamento que era um novinho em folha e no qual reservara para a futura criança o quarto ao lado do seu. Mandara pintá-lo de rosa, pois queria era uma menina.

Na noite combinada para o jantarzinho, a anfitriã preparou ela mesma um belo linguado assado ao molho de alcaparras na manteiga. Tomou um demorado banho de sais, passou creme hidratante pelo corpo inteiro para deixar a pele deliciosamente fresca e macia. Ficou mais temperada que o prato principal. Vestiu uma calcinha nova de rendinha e por cima jogou um vestido quase transparente. Pelo visto, Jandira planejava um jantarzão.

Ao chegar pontualmente no horário combinado, Jandira fez questão de mostrar a Eduardo Jorge o apartamento novo. Aqui é a sala, ali é a cozinha, aquele é o meu quarto e este ao lado do meu é o quarto do meu futuro bebê, não que eu esteja grávida ou coisa assim, mas estou planejando ter um filho em breve. Tanta informação assim, fez Eduardo Jorge dar um pulo para trás. Epa! Ele passou o resto da noite em alerta, como uma presa à espera do golpe de seu algoz.

Depois do delicioso jantar, Jandira serviu-se como sobremesa. Desconfiadíssimo, Eduardo Jorge, para não fazer uma desfeita à sua anfitriã comeu-la ali mesmo na sala, mas sem querer repetir o prato. Jandira, sem reparar na falta de apetite do rapaz, contou-lhe o seu plano de casar e ter um filho ainda naquele final de ano. Ao ouvir aquela confissão, o rapaz engoliu em seco e teve a incomoda sensação de que, de alguma forma, ela queria que ele fizesse parte daquela tramoia. Ele, entretanto, para não azedar a noite mais do que, para ele, já tinha se tornado indigesta, deixou para fazer qualquer comentário só antes de ir embora.

Ao se despedir, no final da noite, Eduardo Jorge, informou-lhe que também tinha um plano. O de nunca se casar nem aqui e nem na China. Desejo-lhe boa sorte, ele disse encabulado. Você está indo muito bem em seu plano. No ritmo que você vai, irá varrer todo o quinto e o sexto andar num piscar de olhos!


Salvador, 14 de outubro de 2014.


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Alma Gêmea Demais

Era tão louco por Aldalice a ponto de desejar devorar a sua carne até os ossos. Nunca se viu tamanha paixão. Chegava a ser quase uma obsessão. As amigas da moça morriam de inveja. Nossa, como eu queria ter um homem tão apaixonado por mim assim, suspiravam.
De fato, Heitor era um namorado como não se via igual. Fazia de tudo para surpreender a sua amada. Fazia-lhe as vontades, enchia-lhe de mimos. Certo dia, ao passar em frente à loja, viu na vitrine um frasco de Gordius Choice, o perfume preferido de Aldalice. Raríssimo de se encontrar. Não teve dúvida. Entrou e comprou o único frasco restante. Nem pestanejou ao pagar uma grana por ele.
À noite, aprontou-se todo e foi fazer uma surpresa à namorada. Ela o recebeu em casa como de costume. E como não disse nada, ele puxou assunto. Não está sentindo um cheiro familiar? Deu um sorriso meio sínico. Sim, você está usando um perfume parecido com o meu! Ao invés de presenteá-lo à Aldalice, Heitor preferiu usá-lo. E foi assim que tudo começou.
Certa noite, depois de fazerem amor, ele teve uma ideia divertida. Vestiu as roupas de baixo de Aldalice e aí fez uma imitação dela. Ficou tão parecida que os dois caíram na gargalhada. Depois voltaram a se amar. A brincadeira teve o efeito de um afrodisíaco em Heitor, Aldalice sentiu a sua pujança vitaminada.
Aquela brincadeira mexeu com Heitor. Ele gostou de sentir a macies do lingerie da namorada roçando a sua pele máscula. Porque não usavam o mesmo material para confeccionar cuecas, ele se perguntou. O rapaz sentiu uma comichão gostosa dentro daquelas delicadas peças íntimas. Era uma sensação indescritivelmente agradável usar calcinha e sutiã.
Uma noite, ele veio da casa de Aldalice com alguma coisa escondida no bolso da calça. Trancou-se no quarto e despiu-se. Vestiu uma calcinha e um sutiã roubados da namorada. Foi dormir daquele jeito. Na manhã seguinte, acordou sentindo-se estranhamente diferente. Alguma coisa tinha mudado.
Não satisfeito em usar apenas a calcinha e o sutiã da namorada, certa vez, ele trouxe para casa um de seus vestidos prediletos escondido em uma sacola de compras. Trancou-se logo no quarto para prova-lo diante do espelho. Caiu feito uma luva. Não é que Aldalice e Heitor vestiam o mesmo manequim!
Deixa de esquisitice, disse Aldalice quando Heitor mostrou-lhe a novidade. Estava usando o seu vestido e de quebra a calcinha e o sutiã. Onde já se viu um macho como você se vestir de mulher. Não é carnaval, meu filho, tire já esta fantasia, ela ordenou incomodada com o que acabara de presenciar.
Mas as esquisitices de Heitor não pararam por ali. Um dia ele foi encontrar a namorada para o almoço. Ela o esperava no restaurante combinado e quando o viu chegar, quase teve um chilique. Heitor chegou vestindo uma saia e uma blusa muito parecidas com as que ela usava para aquele encontro. Ele também usava bijuterias como ela, sapatos altos e uma Louis Vuitton paraguaia igualzinha à dela. Não deixou de passar o batom da mesma cor que Aldalice usava e uma leve maquiagem como a dela. Para completar, ele pôs uma peruca da mesma cor que o seu cabelo e com o corte semelhante.
Aquilo já tinha ido longe demais. Heitor tinha passado dos limites. Aldalice passou-lhe uma descompostura ali mesmo em público. E foi-se embora o proibindo de procura-la novamente. Não até que ele pusesse fim àquela maluquice. Onde já se viu namorar com ela mesma!

Rio vermelho, 6 de outubro de 2014.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

É no Que Dá, Namorado Frequentar a Casa de Judith.

E já se ia um ano e meio de namoro. Era daqueles das antigas, tipo namoro de porta. Arnaldo vinha toda noite ver Judith. Sentavam-se na mureta do portão de entrada em frente à casa. E ficavam lá namorando ao luar. O pai ficava de longe, lia o jornal na sala ao lado da janela. Para não ser indiscreto, vez por outra dava uma olhada para ver se os dois estavam se comportando. Só quando ele bebia uma cerveja no jantar, que Arnaldo, muito espertamente, fazia questão de ir comprar, é que ele baixava a guarda. Mal sentava para ler e caía num sono deslavado. Aí os dois pombinhos aproveitavam a oportunidade indo para um canto escuro ao lado da garagem. E entre beijos e abraços lascivos, se entregavam no maior esfrega.
Judith teria preferido que eles fossem se encontrar em outro lugar. Não gostava de envolver a família em seus namoros. Daria aos pais uma desculpa para sair todas as noites, como fizera de outras vezes. Mas Arnaldo foi taxativo, fazia questão de conhecer os pais e de informá-los de suas intenções. Ela achou aquilo um exagero. Pra quê isso, parece até pedido de casamento, ela argumentou desconfiada. Não, meu amor, eu não me sinto à vontade de comer uma moça de família como você, sem a benção dos pais, entendeu? Não que ele fosse lhes pedir autorização explicita para arquivar a moça. Mas apenas o fato de ele ser apresentado formalmente a eles, já sacramentava o seu consentimento.
Judith achou aquilo muito antiquado, mas atendeu ao pedido do rapaz. Levou-o para conhecer os pais. Mal sabia ela em que estava se metendo.
Arnaldo não apenas era um tipo sedutor, mas, também, um grandessíssimo de um bajulador. Logo de cara, ele tomou a liberdade de chamar a mãe de “sogrinha” e o pai de “sogrão”. Isto foi o suficiente para roubar o coração dos velhos que sonhavam ver a filha casada para lhe dar netos. E ele era de uma atenção com aqueles dois como Judith nunca vira igual entre os ex-namorados. Os pais de Judith logo se apaixonaram por Arnaldo. Ele se tornara o filho homem que nunca tiveram.
Sempre que chegava para a sessão de namoro, ele ia cumprimentá-los. Mas que rapaz educado, comentavam satisfeitos. Às quartas-feiras, ele vinha para o jantar e no domingo para o almoço. Ao final da refeição, e durante toda ela, ele não deixava de elogiar a delícia que era a comida da “sogrinha” que se enchia de felicidade, pois era raro ouvir elogios. Em retribuição, ela tomou nota dos pratos prediletos do genro querido para lhe agradar quando ele viesse. Só de ouvir aquela lenga-lenga, Judith ficava enjoada. Ela nem um ovo cozinhava. Para agradar a velha, Arnaldo lhe trazia Pastéis de Belém que ela gostava muito. Aqueles mimos deixavam Judith enciumada. Arnaldo nunca lembrava de trazer nada para ela, apesar de sua generosidade com ele, ao deixa-lo fazer coisas com ela que nenhum outro namorado teve a chance.
Em dia de futebol, Arnaldo só cumpria meio expediente com Judith. Depois, ia sentar ao lado do “sogrão” em frente à tv. Até torciam pelo mesmo time, quanta coincidência! Houve domingos que os dois foram juntos ao estádio assistir o jogo, deixando Judith a ver navios. Aquelas coisinhas estavam fazendo ela perder o interesse por Arnaldo.
Como tudo na vida tem um começo, um meio e um fim. Um dia Judith chamou Arnaldo para uma conversa longe de sua casa. E terminou o namoro. Não queria mais. Tinha se enjoado dele. E Arnaldo não insistiu. Foi-se embora magoado, nunca mais deu as caras na casa de Judith.
Como era de se esperar, logo os pais de Judith sentiram falta do rapaz. E ao serem informados do fim do namoro, não deu outra: ficaram inconformados, mais até que o próprio interessado. Como podia ser, um rapaz tão bom, um excelente partido! Aonde é que essa menina está com a cabeça? A semana toda foi aquele clima de velório em casa. A mãe choramingava pelos cantos. Viu o que você foi fazer à sua mãe?, o pai chantageava também inconsolado. Não falou mais com a própria filha, desde então. A pressão do velho bateu nas alturas e ele foi parar na emergência. A mãe era um chororô só. A filha ia matar o pai de decepção! Judith se encheu de culpa e remorso. Foi procurar Arnaldo. Viu, é nisso que dá namorado frequentar a minha casa, ela se recriminou.
Dois dias depois, o pai teve alta e voltou para casa. E advinha quem apareceu para jantar como nos velhos tempos? Judith ia ter de pensar em outra forma de se livrar de Arnaldo.

Rio Vermelho, 20 de agosto de 2014.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma Manhã de Cão

Minha amiga Sarah H. me veio com um convite inesperado.  Queria que eu a acompanhasse em seu dia de visitas a clientes. Ela é representante comercial de um produto singular que promete livrar das mãos todo e qualquer tipo de germe contraído com o aperto de mão. Então, o cidadão aperta a mão de outro e, em seguida, esfrega o tal produto milagroso nas mãos que ficam esterilizadas para o aperto de mão seguinte. Coisa de louco! Vivemos em tempos que se pratica o germecídio a cada segundo. E o que é que eu entendo desta maravilha microbicida? Coisa nenhuma!
Ela apenas queria uma companhia para cumprir aquela obrigação profissional. Então eu pedi ao meu patrão para que me dispensasse do serviço naquela manhã, com a desculpa de que eu precisava fazer um passeio urgente. O uso da palavra urgente foi estratégico, pois esta causa impacto e convence sobre a gravidade do assunto. Não fosse o meu patrão e o seu funcionário a mesma pessoa, tal justificativa de ausência ao local de trabalho seria motivo de justa causa.
E lá fui eu acompanhar minha amiga Sarah H. em sua romaria. Eu meio que precisava mesmo de um passeio de carro para arejar as ideias. No horário combinado, ela estava na porta de casa em seu reluzente coreano. Caía uma chuva intermitente, mas não daquelas cuja água inunda as vias provocando o caos na vida das pessoas.
Havia caos sim. Mas este não fora causado pelas águas da chuva que caia. As ruas estavam inundadas por uma enxurrada de automóveis. O congestionamento começava na esquina da rua onde moro e se prolongava ao longo dos quase cento e cinquenta quilômetros percorridos naquela manhã.
Vamos combinar, Salvador virou um congestionamento só. Uma longa fila de carros estancados um atrás do outro, conduzidos por mal-humorados motoristas. E buzinam, como gostam de buzinar essa gente. É provável que este ato desesperado lhes dê vasão ao seu estresse, mas com certeza não tem o dom mágico de fazer o congestionamento sumir de sua frente. Isto me faz lembrar que certa vez eu tive uma ideia brilhante para uma invenção que me tornaria um milionário da noite para o dia. Era muito simples. Um headphone conectado diretamente à buzina do automóvel com o qual o motorista poderia buzinar à vontade diretamente em seus próprios ouvidos no volume do seu gosto, sem incomodar ninguém. Também não causaria poluição sonora. Mas os japoneses já devem ter passado a perna em mim novamente num de meus inventos, assim como o fizeram com a minha ideia da câmera digital e de comer de palitinhos.
Em nossa provinciana Salvador, usar o transporte público é coisa de gente feia e pobre. Quem tem carro faz questão de colocá-lo na rua para mostrar ao mundo como subiu de vida. Para o brasileiro, o carro não é apenas um meio de locomoção e sim uma demonstração de que as coisas estão dando certo para ele. É até irônico ver como o carro deixou de ser uma solução para virar o problema. Há, também, uma escassez de bom senso entre as pessoas. Quantas poderiam tranquilamente deixar o carro em casa e ir de transporte público, mas se rendem à vaidade e ao comodismo? Por isso, há mais carros que ruas em Salvador e o que sobra, certamente, são os congestionamentos.
Para fazer o seu trabalho, minha amiga Sarah H. precisa realmente de um automóvel. Mas o que dizer de minha vizinha que só vai à padaria, que fica localizada na rua de trás, dirigindo o seu carrinho? Ela dá tantas voltas para encontrar uma vaga para estacionar que termina encontrando uma justamente em frente à sua casa!
Eu confesso que gostei daquele passeio pelos congestionamentos de Salvador durante um dia de semana. Conheci caminhos e atalhos tortuosos cuja existência eu desconhecia. Vi como a cidade cresceu – e continua crescendo – e se modificou para melhor e para pior. Observei como o fato de o motorista ter uma carteira de habilitação não lhe dá habilidade para dirigir racionalmente e com bom-senso. Agradeci a Deus por jamais precisar dirigir em Salvador com os seus intermináveis congestionamentos. E ao final da manhã, sucumbi à exaustão por ter assistido passivamente sentado no banco do carona ao inferno que é sair de carro em nossa cidade.
Se algumas pessoas deixassem o carro na garagem para que aquelas que realmente precisam dele saíssem sem ter de enfrentar congestionamentos, o dia de todos seria bem melhor. Mas, pensando bem, talvez as pessoas estejam viciadas em um bom congestionamento!


Rio Vermelho, 21 de julho de 2014. 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Num Mato Sem Cachorro

Um amigo ligou desesperado pedindo um help. A mulher o pôs para fora de casa, descobriu finalmente que ele não era nenhum santo. A vida tem disso, tem cego que um dia acorda vendo tudo. Detalhes à parte, pois não quero denigrir a imagem do meu amigo – mas que canalha ele! Superado a fase de negação e caindo na real, uma semana depois do sinistro, ele me procurou. Foi morar na sua garçoniere, cuja existência a futura ex-esposa acabara de tomar conhecimento. Sim, meu amigo tem lá os seus defeitos, então eu tenho um amigo defeituoso, fazer o quê, né?
Meu caro amigo é um daqueles que sofrem da deficiência-de-não-saber-cuidar-de-si-mesmos. É incapaz de lavar a própria roupa íntima, por exemplo, e depende de uma mulher que lhe faça as vezes de mãe super-protetora. Veja mamãe o homem adulto que você educou para se virar no mundo, ele trai a esposa que é uma mãezona que nem a senhora.
Então, ele precisava de minha assessoria para uma tarefa doméstica simples como ir ao mercado. Tinha de fazer as compras da semana e não fazia ideia por onde começar. E lá fui socorrer um amigo em apuros – e que tem lá os seus defeitos. Mas pra que fazer compras, se ele nem sabia fazer um nescafé?
A sociedade dividiu as tarefas domésticas entre homens e mulheres de tal modo que um foi feito refém do outro. Trazer dinheiro graúdo para casa, escolher o automóvel da família, o computador, a manutenção da casa é coisa de homem ainda em muitos lares. Mas a limpeza da casa, a decoração, lidar com a cozinheira e a faxineira, fazer as compras da feira e de mercado, cuidar das crianças é coisa de mulher. É uma visão machista, mas é assim que ainda acontece, até em famílias que se consideram bem moderninhas. Mesmo que a mulher trabalhe oito horas por dia e até ganhe mais que o marido, ao final do dia, o tanque e a cozinha a esperam placidamente, além de outras obrigações domésticas que lhe cabem. É raro um homem aliviar a barra da esposa, é mais conveniente se fingir de cego. É isso, tem famílias que tanto o marido como a esposa são dois cegos.
Então, meu caro amigo estava num mato sem cachorro.  Conhecendo-o bem, fiquei me perguntando quanto tempo mais ele duraria naquela situação. Ele tinha condições de contratar uma empregada doméstica, mas é isto? Um homem adulto e saudável não sabe cuidar de si mesmo? Precisa de alguém que faça por ele todos aqueles trabalhos domésticos que qualquer adulto independente deveria saber, bem ou mal, realizar?
Quando o bichou pegou de verdade, meu defeituoso amigo se viu num mato sem cachorro. Colocou então a sua melhor máscara de arrependido e foi bater na porta de casa. Fez juras de amor à mulher traída e pediu perdão pelos seus defeitos e pecados. Não aconteceria nunca mais, jurou de pés juntos – pelo menos até a próxima vez. O bom cristão, perdoa, sabe? Até de santa chamou a esposa, por aturá-lo assim com os seus defeitos. Sim, que este desvio de caráter nós homens chamamos de defeito, assim como roubar dinheiro público é apenas um malfeito.
Ela, por seu turno, se fez de difícil, como era de se esperar em situações como aquela, mas terminou abrindo a porta para ele passar, mas com uma exigência: queria ser levada toda sexta-feira à noite naquele matadouro e receber o mesmo tratamento que recebiam as que ali caiam!

Rio de Vermelho, 09 de junho de 2014. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Sem Pequenas Concessões

Li na revista promocional que a caixa da farmácia furtivamente enfiou em minha sacola de compras que o brasileiro gosta muito de se casar. Fiquei na dúvida se ele faz isto repetidas vezes para saciar este seu prazer ou se ele se contenta com uma única vez apenas. Ao mesmo tempo, uma querida amiga tirava a minha dúvida ao anunciar que iria se casar pela segunda vez. Fiquei feliz por ela, pois não apenas acho que todos merecem uma segunda chance e, também, porque a solidão é uma coisa chata pacas! Nada de mais em casar-se novamente – minha vizinha é campeã desta modalidade, pois já o fez quatro vezes de papel passado – não fosse a peculiaridade desta união de minha amiga. Foi acertado que cada cônjuge viverá em sua própria casa, ela na Tijuca, no Rio de Janeiro, e ele em Olinda, no Recife. Um visitará o outro alternadamente e quem fica também feliz com isto é a companhia área.
Ela explica de modo convincente: ela reconquistou com muito esforço e a duras penas a sua liberdade ao se separar no primeiro casamento. Fez tantas concessões, tolerou tantos abusos que um dia se olhou no espelhou e não se reconheceu. Onde tinha ido parar aquela mulher independente e de espirito voluntarioso que sempre fora? O casamento fracassado não apenas tirou-lhe a liberdade, mas a transformou em outra pessoa. O saldo positivo foi duas filhas que ela ama mais que tudo e que por causa delas deu tudo de si para que elas se transformassem em duas mulheres adultas e felizes. A separação, apesar de ter sido uma experiência dolorosa para a família, foi um elemento importante para que as meninas crescessem acreditando no amor verdadeiro uma vez que estavam sendo criadas num ambiente familiar onde a falsidade e a dissimulação existiam. Portanto, minha amiga não queria homem algum novamente em sua casa a se meter em tudo, inclusive a querer controlar a sua vida. “Eu aqui e ele lá na casa dele!”
Naquela mesma semana, sua filha mais velha combinou com um amigo que não via há tempos para tomarem um café. Um encontro inocente à tarde, num lugar público, um café e conversa para atualizar as novidades e reforçar os antigos laços de amizade. No dia combinado, constrangida, ela cancelou o encontro. Como tinha a consciência limpa, casualmente comentara com o noivo sobre o café com o amigo. Entretanto, este não ficou nada satisfeito com aquela história de ela ir se encontrar com outro homem. Proibiu-a.
A filha de minha amiga fez uma pequena concessão. Um pedido simples do futuro cônjuge para que não se encontre com um amigo. É sempre assim, os pedidos são geralmente sobre questões simples. Deixe o cabelo mais curto, vista uma saia mais comprida, não fale mais com aquela pessoa, não frequente mais aquele lugar, lave as minhas cuecas. Quantas outras concessões ela não fará até o dia em que se veja na prisão da qual a sua mãe se libertou?
Não, esta história não teve um final sombrio como imaginam. A filha de minha amiga teve tempo de refletir um pouco sobre aquela situação que lhe pareceu familiar. Ela era uma mulher independente, dona se seu nariz. Se ela e aquele rapaz planejavam se casar, era preciso ele aprender a confiar nela e a respeitá-la. Da parte dela, confiava nele e desejava que aquele sentimento fosse recíproco para o futuro casamento dar certo. Não cometeria os mesmos erros de sua mãe, sem pequenas concessões desta vez. Avisou ao noivo que iria encontrar o amigo para o café e ele que digerisse aquilo como quisesse e aprendesse a confiar nela, se pretendia mesmo casar com ela. Esta história promete um final feliz.

Rio Vermelho, 26 de maio de 2014.

domingo, 27 de abril de 2014

A Privacidade Escancarada

O aparelho de celular veio dar outro sentido à privacidade das pessoas que há tempos andava meio escondida. Nunca se expôs tanto a própria intimidade em público quanto depois que este pequeno telefone de bolso que se carrega para todos os lados, que ora serve para se comunicar e ora para se usar como canivete suíço, passou a fazer parte de nosso cotidiano e, ao se separem deste por alguns momentos, muitos de seus usuários sofrem calafrios e ficam angustiados. Eu já vi como o peixe se debate ao ser tirado da água e é assim também que se comporta um usuário sem o seu celular. Os olhos ficam esbugalhados e parecem que vão pular para fora das órbitas a qualquer instante. Nunca vi ninguém espumando nestes casos, mas com certeza deve haver registros médicos a este respeito.
Voltando à velha e desprestigiada privacidade, depois do celular, conversas antes reservadas apenas aos ouvidos de seus interlocutores, são agora compartilhadas sem a menor cerimônia com uma plateia de estranhos, na rua, na fila, no transporte público, na mesa ao lado no restaurante, expondo estes ouvintes passivos a assuntos que não lhes diz respeito e que certamente gostariam de ser poupados do absurdo de ter de ouvi-los. A verdade é que são estes ouvintes que têm a sua privacidade invadida pela conversa do indiscreto usuário de celular.
No entanto, devo admitir um pecado, eu descaradamente presto atenção na conversa dos outros e fico puto quando esta é interessante, mas os seus participantes falam muito baixo. Dá pra falar um pouco mais alto aí? Este sussurro está me matando! Mas ninguém pode me censurar por isso, do contrário, eu não teria material para entretê-los com as minhas histórias.
Outro dia, eu fui andando até a farmácia à procura de umas gotas mágicas que aliviassem uma súbita dor de ouvido, quando testemunhei uma dessas conversas. Eu seguia pelo passeio e, do sentido oposto, do outro lado da rua, vinha um rapaz com o seu telefone celular colado ao ouvido. Cerca de vinte metros nos separavam, mas eu tive a impressão de que ele falava ao pé do meu ouvido. Ele esbravejava a plenos pulmões com a pessoa do outro lado da linha – celular também tem linha? – que me pareceu ser uma mulher que tinha afeição por ele: “Velho, você me liga toda semana pedindo pra sair comigo. (Este “velho” aqui em nada tem a ver com a idade e é aplicado desta forma independente do sexo da pessoa, comumente utilizado por aqueles portadores de deficiência de elocução. Outras pessoas, no entanto, preferem utilizar o “rei” no lugar do “velho”, e, também neste caso, em nada tem a ver com a provável estirpe nobre do interlocutor.) Velho, você fica querendo me ver toda semana. Velho, eu já lhe disse pra você parar com isso. Toda semana você me procura querendo sair comigo, velho. Não, de três em três meses não, você liga é toda semana, tá maluca? Pô, velho, procure suas amigas e me dá um tempo. Chame outra pessoa pra sair com você...” E foi quando eu entrei na farmácia e perdi o resto do espetáculo.
         Ah... Como eu adoraria ser procurado por uma mulher apaixonada pelo menos uma vez por mês e ouvir dela juras de amor eterno. No entanto, aquele rapaz só quer a pobre moça quando lhe é conveniente, que calhorda ele. Faltou-me presença de espirito para ir até ele com o meu número anotado num papelzinho dizendo-lhe algo assim: diga a ela que me procure neste número a qualquer hora do dia ou da noite todos os dias da semana que será sempre bem tratada! (a menos que lhe falte autoestima e o seu prazer seja o desprezo e a grosseria dos homens. Quanto a isto, eu jamais poderei lhe ser útil.)

Rio Vermelho, 26 de abril de 2014.

domingo, 20 de abril de 2014

A Paixão de Cristo Contada Pelo Papai

Papai era um contador de estórias. Seu jeito de contá-las cativava a audiência, quase sempre composta dos mesmos amigos e familiares que não se enjoavam de ouvi-lo contar as que se repetiam vez por outra com a mesma atenção como se as escutassem pela primeira vez. Não herdei dele o talento para o desenho e muito menos para pintura, mas gosto de contar estórias e, para repeti-las, tomo o cuidado de encontrar novos ouvintes.
         Nesta época do ano em que se celebra a Semana Santa, ele costumava contar como certa vez viu a encenação da Paixão de Cristo num picadeiro de circo. Esta estória era uma das minhas preferidas e a que guardo na memória como uma divertida lembrança do meu pai.
Foi verdade, em sua infância na esquecida Cajapió, em algum lugar perdido da baixada maranhense, vez por outra, chegava um circo mambembe que trazia em sua lona surrada e remendada a poeira dos cantos por onde andou, mas não menos remendados eram os trajes de seus pobres e sonhadores artistas que exibiam o seu talento em troca de míseros trocados e, às vezes, o lugar era tão miserável que até comida servia como moeda de troca.
         O circo chegava provocando um alvoroço entre crianças e adultos que era alojado num terreno baldio emprestado pela prefeitura. Fazendo barulho com cornetas, baterias e apitos, seus artistas saiam em campanha pelas ruas do pequeno povoado anunciando o grande espetáculo para o respeitável público. Em comemoração à Semana Santa, encenariam, naquela noite, a famosa Paixão de Cristo.
         Com o elenco reduzido, como era de se esperar, o dono do circo, um homem baixo e feliz possuidor de uma barriga grande e dura, costumava contratar talentos locais para pequenos papéis os quais era dispensado o ensaio, que se restringia em resumidas instruções sobre o que fazer e em que momento.
         O bêbado da cidade foi contratado para fazer o Lázaro, um papel muito fácil e para qual nenhum talento era necessário. Tudo o que ele tinha de fazer era deitar-se num determinado lugar ao lado do picadeiro e esperar pelo momento de sua milagrosa ressuscitação. Se ele fizesse conforme o combinado, receberia alguns níqueis suficientes para pagar por algumas doses de seu etílico vicio.
         Antes de começar o espetáculo, o improvisado ator chegou ao picadeiro no mesmo estado de embriaguez pelo qual era conhecido, deitou-se no lugar estabelecido e pegou no sono profundo.
         O espetáculo começou e transcorria na normalidade. O público estava emocionado com a saga de Jesus Cristo de Nazaré, lágrimas e suspiros sobravam. No momento em que Jesus faz o milagre da ressureição de Lázaro evocando para que este voltasse ao mundo dos vivos, ele diz a famosa frase: Levanta-te Lázaro! Esta era a deixa para que o nosso Lázaro embriagado se levantasse e caminhasse, mas ele estava em outro mundo para ouvir coisa alguma. Levanta-te Lázaro! Insistiu Jesus, mas o Lázaro não se movia, dormia bêbado feito um gambá. Levanta-te lazaro! Gritou Jesus, desta vez impaciente. A plateia inquietou-se e passou a zombar. O dono do circo enfureceu-se, quis ser mais poderoso que Jesus Cristo, tomou o microfone e ordenou ameaçador pelo alto-falante: Alô, alô Lázaro! Alô, alô Lázaro! Levanta-te ou estás despedido!
Foi breve a sua carreira de ator.

Rio Vermelho, 20 de abril de 2014.

domingo, 13 de abril de 2014

Baú de Recordações

Um querido amigo, cuja data de nascimento remonta os tempos em que a maioria das coisas ainda não tinha nome e para referir-se a elas era preciso apontá-las com o dedo, me conta como era Salvador de antigamente. No entanto, ele não faz isto de uma só vez como numa conversa de bar, ao contrário, à medida que vai remexendo o seu baú de recordações, ele tira de dentro uma ou outra história de sua infância ou juventude e me encanta com o seu relato.
         No lugar onde moro, por exemplo, antes havia um hipódromo e no local onde hoje é uma pracinha, uma igreja tinha sido planejada para ser erguida. Sua casa foi uma das primeiras a serem construídas e permanece do mesmo jeito até hoje e há sempre um cafezinho feito na hora para os visitantes, servido pela simpática dona da casa.
         Mas o que me empolga, é ouvi-lo contar que um bêbado podia passar a noite no meio do caminho no trajeto de volta para casa e quando acordasse, a sua carteira de dinheiro estaria ainda no mesmo bolso com todas as notas de dinheiro que havia dentro! Sim, claro que havia roubos, mas eram roubos de galinhas ou alguém tinha a sua carteira batida no centro da cidade. Ninguém jamais passou pelo estresse de ser rendido com a ponta de uma arma de fogo ou ter sua vida tirada por causa de um par de tênis ou uns míseros trocados, isso não. Meu amigo fala de um tempo em que a vida humana valia alguma coisa.
         A palavra congestionamento ainda não tinha sido inventada e os poucos carros que havia em Salvador, todo mundo sabia a quem pertencia. O bonde era o transporte usado para ir para o trabalho e quase todos daquela viagem se conheciam a ponto de o condutor às vezes se demorava numa parada para esperar por algum passageiro que, por ventura, estivesse atrasado.
         Tirando o fato de um cara não poder ir para a cama com uma moça de família sem antes desposá-la, ou de sair com ela sem a presença de um acompanhante para proteger a sua reputação, ter vivido naquela época, me parece que é o sonho de muitos que vivem na caótica Salvador dos dias de hoje. Eu ouço as histórias que o meu amigo me conta sobre como era a vida naquele tempo e chego a sentir nostalgia de um tempo que jamais conheci.

Rio Vermelho, 13 de abril de 2014.



quinta-feira, 27 de março de 2014

Sobre a arte de tirar proveito da vaidade humana

Outro dia, uma moça bonita, minha conhecida, sorriu para mim. Notei que o seu sorriso, daquela vez, estava colorido por pequenas miçangas azuis colocadas entre um dente e outro. Achei aquilo curioso, deveria ser mais algum tipo de moda bizarra. Ora, se há quem espete piercings nas partes íntimas do corpo, porque não haveriam de adornar os dentes, que estão postos em local bem mais a vista, refleti. Entretanto, ela me explicou, estava fazendo um tratamento dentário e aquelas contas azuis era borrachas colocadas para abrir caminho para um futuro aparelho ortodôntico. Seu dentista lhe disse que ela precisava muito daquilo. Eu fiquei matutando como esta moça conseguiu sobreviver até os trinta anos de idade sem a ajuda de tal imprescindível aparelho.
         Este episódio me fez lembrar de outro de minha adolescência. Eu tinha uma professora cujos peitos eram enormes e formosos, verdadeiras maravilhas da natureza e fonte de inspiração dos garotos da turma. Certa vez, ela ausentou-se por motivo de saúde e quando retornou à classe, semanas depois, ela estava mudada, parecia que tinha encolhido de tamanho. Perdera aquele magnetismo que nos fazia prestar atenção à sua aula, ou melhor dizendo, ao seu decote. Ela submetera-se a uma cirurgia de redução dos seios. Uma grande perda, uma tristeza para nós meninos. Conheci outras mulheres que fizeram o mesmo. Eu ficava imaginando se haveria algum banco de peitos para onde aqueles pedaços de mamas extirpados eram doados para serem reaproveitados em mulheres menos afortunadas. Então, diminuir o tamanho dos seios era a moda do momento naquela época, uma invenção dos cirurgiões plásticos para aquecerem os negócios.
         Na mesma época, os ortopedistas descobriram que as meninas estavam fora do prumo e por isso as coitadas eram submetidas ao uso de umas armaduras de metal que as faziam ficar eretas e de pescoço duro. Na minha escola havia mais de uma dezena delas. Era o tempo da ditadura militar, aquelas as meninas estavam longe se serem consideradas subversivas, mas eram torturadas mesmo assim com o uso daquela coisa horrível.
         E quando não sobraram mais seios para serem reduzidos de tamanho, Deus criou as próteses de silicone para dar mais autoconfiança às mulheres cujos peitos eram pequenos. A vez delas tinha finalmente chegado. A moda era aumentá-los de acordo com o tamanho da falta de autoestima de cada freguesa, havia aquelas comedidas que precisavam deles só um pouquinho maior para caberem num modesto sutiã e outras exageradas que faziam o queixo sumir entre os peitos novos, a provocar nos homens pensamentos impróprios. Um dia eu vi um programa de TV no qual um cirurgião plástico, usando uma bandana colorida cobrindo a cabeça, similar às que o cantor Bel Marques costuma usar, explicava ao repórter que iria adicionar mais silicone aos peitos já super siliconados de sua paciente, uma bela dançarina stripper, como uma forma de conferir mais dramaticidade a eles. Eu não sei quanto à dramaticidade nenhuma, mas certamente os seus peitos ficaram enormes de tirar o fôlego. E sobre a bandana na cabeça, é sabido que a do Bel tem como propósito ocultar a sua extensa calvície, enquanto à do cirurgião, certamente, esta serve para esconder a sua completa falta de ética.
         Ah....(um suspiro) a vaidade humana é porta de entrada para toda espécie de artifício para acalentar a insatisfação das pessoas com a sua própria aparência. Os médicos, dentistas e outros profissionais da saúde conhecem muito bem esta fraqueza humana e as manipulam conforme a sua ambição, uma pena.

Rio Vermelho, 26 de março de 2014.
          

sábado, 15 de março de 2014

Visita à Cidade Grande

A filha recebeu a visita do pai que veio do interior e ficou muito satisfeita. Sentia saudades dele e de todo o resto da parentada que deixara para trás na pequena cidade natal. Raríssimas foram as vezes que seu Herculano se aventurou a sair da tranquila roça em C... para vir até Salvador. Isto foi para ele uma aventura tão grande como a do primeiro homem a pisar na lua.
         A filha foi recebê-lo com todo o carinho na rodoviária e lhe cobriu com mimos durante a sua estadia, lhe preparou os pratos favoritos que a mamãe fazia quando era viva. É claro que a galinha de cabidela feita com frango congelado de supermercado não se comparava à galinha pé duro que o pai criava no sítio. O sangue para o molho, este, então, foi uma complicação danada para consegui-lo, pois não era encontrado em nenhum supermercado ou mercearia. Pediu para a empregada arranjar no terreiro que ela frequentava e onde galinhas eram sacrificadas para se fazer trabalhos. Mas o pai reconheceu o esforço da filha e comeu com gosto e sem fazer cara feia.
         No dia seguinte, o velho resolveu sair sozinho e fazer um turismo pela cidade enquanto a filha trabalhava. Vestiu sua roupa domingueira e pôs um paletó, parecia um crente indo para o culto. Saindo do apartamento da filha, preferiu descer os três lances pela escada ao invés de se aventurar pelo elevador, que era um lugar muito pequeno e abafado. Caminhou até o ponto de ônibus mais próximo e viu um que acabara de encostar. O letreiro dizia o destino: Vale das Pedrinhas.
         Aquele nome trouxe bonitas recordações a seu Herculano. Um vale verde e bonito, um riozinho no meio correndo alegre com suas águas límpidas cheias de peixinhos. Pedrinhas nas margens. Não teve dúvidas, embarcou no ônibus rumo àquele lugar encantado.
         A viagem foi tão demorada que imaginou estar indo para outra cidade, mas logo foi tranquilizado pela moça ao lado que disse se tratar de um bairro de Salvador. O ônibus andava de vagar, parava a todo minuto sem ter chegado a um ponto, seguia uma fila infinita de automóveis. Quantos carros, lamentou seu Herculano. Finalmente chegou ao Vale das Pedrinhas e desceu no segundo ponto.
         Olhou em volta com o olhar triste. Viu pequenos casebres espremidos uns contra os outros subindo morro acima. Alguns eram tão toscos que pareciam que iam cair a qualquer instante. Umas construções tinham reboco e outras não, que feiura. O lixo se amontoava por todos os lados, o lugar fedia a mijo. À sua frente, havia um canal aberto ladeado por concreto onde, além de lixo jogado lá embaixo, passava uma água escura e fétida. Nem sinal do riozinho de águas límpidas e das pedrinhas encantadas que imaginara.
         Desolado, seu Herculano atravessou a rua para pegar o ônibus de volta. Enquanto aguardava, um garoto que tinha a idade de seu neto de quinze anos aproximou-se com o seu nariz escorrendo de catarro, mostrou-lhe um canivete e pediu-lhe a carteira e o celular. Nunca tive isso, disse seu Herculano e entregou-lhe a carteira com pouco dinheiro. O menino lhe lançou um olhar ameaçador e num gesto rápido lançou-se com o canivete contra o velho. Mas este foi mais rápido ainda, fez como se agarrava um novilho, deu um garrote no pescoço do menino. Com o outro braço tirou de sua mão a faca que fez desaparecer na água escura do canal. Sentindo-se seguro, soltou o garoto que saiu correndo até sumir pelos labirintos da favela praguejando, por esta ele não esperava.
         Que tristeza isso aqui, pensou seu Herculano embarcando no ônibus de volta para a casa da filha com uns trocados que lhe restara no bolso. Não tinha rio algum, nem vale e nem pedrinhas e as crianças agiam como adultos perigosos. Não entendia como a filha tinha gosto em morar na cidade grande.

Rio Vermelho, 15 de março de 2014.

terça-feira, 4 de março de 2014

O Novo Vizinho

As noites frescas do verão tornaram-se bucólicas nas últimas semanas aqui na Rua Ilhéus. Tenho a impressão de que voltei a morar no campo. (Não que eu tenha realmente morado no campo alguma vez, mas o fato de já ter passado um fim-de-semana inteiro numa fazenda, me faz sentir credenciado para me considerar um homem da natureza!) O motivo de tal atmosfera campesina, foi a súbita chegada de um novo vizinho. Um sapo fixou residência na boca-de-lobo que fica logo em frende à nossa casa. Coaxa a noite inteira sem parar, alto e forte como o timbre de um bem nutrido barítono. Ele começa o seu canto ribeirinho ao escurecer e quando eu levanto no meio da noite por qualquer motivo, lá está ele cortando o silêncio da madrugada com a sua balada que parece mais um lamento triste e solitário.
         Bonito, não? Imagine ter um sapo em baixo de sua janela coaxando a noite inteira sem parar, noite após noite. No início, isto foi curioso e encantador como qualquer novidade. A natureza invadiu a minha casa, me regozijei Até pensei em tirar uma foto ao lado do bichinho para pôr no Facebook. Entretanto, depois do terceiro dia consecutivo, o sapo tornou-se uma chateação ecológica, rasguei o meu diploma de homem do campo. Só no que eu pensava era transferir o domicílio do batráquio para a porta de outro vizinho bem longe daqui.
De onde veio esta criatura, eu me perguntei. No entanto, é fácil de entender porque isto está acontecendo. A nossa casa foi construída sobre um aterro onde antes existiu um charco, habitat natural dos sapos, nas margens do rio Lucaia, que fica a poucos metros de minha casa. Eu me lembro quando ainda se podia pescar ali quando eu era criança. Em dias de maré cheia, a água do mar invadia o rio e os pescadores jogavam tarrafas para capturarem minúsculos peixes de nome pititinga. Naquela época, o rio ainda não era o sombrio esgoto em que foi transformado nos dias de hoje e que, em breve, será um canal fechado com placas de concreto sobre o qual uma avenida ou área de lazer será construída. Finalmente, o moribundo rio, cujo fedor, nos lembra , noite e dia, de sua decadente existência, será sepultado. Tentar revitalizá-lo é uma solução impensável para o governo que despreza soluções ecológicas baratas em favor daquelas que doam para as suas campanhas eleitorais, as empreiteiras.
A verdade é que as cidades nascem e crescem em espaços onde antes dominava a natureza e, embora as edificações humanas ponham abaixo a vegetação deixando sem moradia os animais nativos da região, enxotando-os dali, algum dia, movidos por uma força invisível, eles voltam para reconquistar o seu antigo lar. É a natureza querendo de volta aquilo que lhe foi tomado.

Rio Vermelho, 3 de março de 2014.
        
        

                  

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Fábula carnavalesca

Ubirajara dos Prazeres era um respeitável pai de família. Sujeito pacato e afável, funcionário da Caixa Econômica há mais de vinte anos. Casado com dona Elvira, uma mulher tirana e acostumada a ser obedecida por todos de casa, inclusive pelo dócil marido, cujo temor à mulher era motivo de chacota dos amigos.
         Entretanto, dona Elvira tinha bom coração, permitia o marido encontrar os amigos às sextas-feiras para a tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos, depois do expediente na Caixa. Mas ele que não se atrevesse a chegar em casa embriagado, pois seria mandado de castigo passar a noite no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava ele brincar a terça-gorda de carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, no 2 de Julho, em companhia da turma de amigos. Apesar de sua natureza pacata, existia no coração de Ubirajara um folião adormecido.
         Era o ano da graça do Senhor de 1962 e os carnavais daquela época eram uma divertida festa popular com fantasias de pierrôs, piratas e colombinas, serpentinas e confetes, brincados ao ritmo de românticas marchinhas carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca saírem de moda e nos quais pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas da cidade e bailes noturnos em clubes sociais até o raiar do sol. Naquele ano, Ubirajara contava os dias para cair na folia vestido com a mesma fantasia de pirata dos carnavais anteriores. Sua maior despesa, fora com uma mamadeira de bebê dentro da qual despejou rum Montilla com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E quando a noite de terça-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro da Saúde, onde residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia.
         Mal ele pôs os pés no salão do clube, foi dominado pela animação causada pela música tocada pela famosa Banda do Maestro Tabajara. O pacato Ubirajara então se transformou num folião agitado, proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se aos amigos e caiu na folia noite adentro.
         Naquele baile os homens podiam se fantasiar do que quisessem, mas não era permitido que usassem máscaras, ao contrário das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Ubirajara pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem se cansar e se dar conta do tempo que parecia infinito. A moça tinha um requebrado e trejeitos que enfeitiçaram o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, faça-se justiça, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente enamorado, fez gracejos com aquela moreninha da qual só pôde ver os lábios grossos e gordurosos, pois como todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara colorida e enfeitada com purpurina. Nosso herói era só alegria, nada da chateação da repartição pública ou de receber ordens da irritante da Elvira, aquela noite era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas, a magia do carnaval daquele ano começava a desvanecer-se. O sonho acabava. Na despedida, ele perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la algum dia, quem sabe em outros carnavais.
Do Clube dos Fantoches desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra feito uns moleques e foram terminar em dona Lurdes no Mercado Modelo, onde o famoso mocotó os aguardava para rebater a ressaca, cozido magistralmente na apertada cozinha de seu modesto restaurante em suas panelas sebentas. Lá pelas sete da manhã, ao entrar finalmente em casa nas pontas dos pés, deu de cara com outro, se não o seu algoz, que o aguardava mal humorado.
         ― Até que fim chegou o pé-de-valsa! – bradou dona Elvira. – Então, dançaste de rosto coladinho com uma fulana a noite inteira, hein, seu filho da puta!
         ― É...? E como você sabe? – admitiu com atrevimento, ainda sob o efeito maléfico do rum.
         ― Ela acabou de me contar. – e apontando em direção da cozinha. – Você dançou foi com a cozinheira, seu descarado!

Rio Vermelho, 24 de fevereiro de 2014.