segunda-feira, 13 de abril de 2009

Mas, para quê mais tempo?

Outro dia encontrei um querido amigo e vizinho do bairro ao voltar do meu mergulho diário de meia hora na praia da Paciência. Este é um pequeno hábito que cultivo há meses. O mar estava calmo e límpido, parecia o mar azul do Caribe. Cancun fica aqui no Rio Vermelho! Meu amigo Bartolomeu estava sentado na balaustrada admirando os barcos bailando ao sabor das ondas da enseada de Santana, tendo ao fundo um imenso horizonte azul manchado de branco. Fazia isto brincando com o costumeiro palito de dente no canto da boca. Quando ele se encontra neste estado contemplativo, é porque está matutando alguma coisa. Seus pensamentos estavam envolvidos com uma questão filosófica sobre o tempo. Não é nenhuma novidade que a simples contemplação do mar da Bahia é capaz de inspirar seu expectador pensamentos filosóficos e profundos. Meu amigo fora acometido deste arrebatamento. Neste caso, poderia ser mais uma questão física também, pois o seu questionamento era sobre como as pessoas hoje em dia se preocupam em ganhar tempo. E para poupar tanto tempo, procuram fazer as coisas com mais rapidez. Estão sempre apressadas para ganhar mais tempo. Se lhes sobrassem realmente mais tempo, poderiam estar ali sentados ao seu lado admirando a beleza do mar, filosofou. Mas por que tanta pressa, ele se perguntava. Onde as pessoas pretendem chegar? E o que fazem com o tempo que lhes sobra? Se é que lhes sobra algum realmente. Ele é uma pessoa que viveu mais de setenta anos – e espero que viva por mais setenta! - e do alto de sua experiência e conhecimento, percebeu que em sua juventude ele já correu muito e no final chegou ao mesmo lugar onde está hoje. Correr tanto não lhe fez nenhuma diferença, pois não ficou mais jovem ou vai viver mais por causa disto, e nem ficou mais sábio do que os seus cabelos brancos sugerem. E nem mais rico ou pobre. As pessoas simplesmente correm por que o sistema lhes incutiu na cabeça que estão perdendo tempo de algum modo. Como se o tempo fosse algum bem mensurável e tê-los a mais fosse fazer alguma diferença. Então, correm sem sentido e para o vazio. Perdem o tempo correndo para ter mais tempo.

Esta sua preocupação me faz pensar em muitas coisas sem sentido que fazemos pela vida e nem nunca nos damos conta disso. Lembrei de um filme clássico. Um homem vagando pelo centro da cidade grande, perdido na noite, entrou casualmente num inferninho onde pessoas se amontoavam para ouvir uma banda de rock no palco adiante. Ao final da música, a platéia ovacionou o guitarrista que, ensandecido, tirou o instrumento do ombro e o destruiu batendo-o violentamente contra o piso. Apesar de quebrada em pedaços, cada parte da guitarra continuava presa à outra pelas cordas. Em seguida, jogou-a sobre o público delirante, que passou a se digladiar para possuir aqueles destroços como se fossem eles algum tipo de troféu. O tal homem que acabara de chegar ao lugar também entrara na briga, arrebatando os restos de guitarra das mãos de um fã e, em seguida, fugindo do local correndo pela rua com uma pequena multidão ao seu encalço querendo arrebatar-lhe o dito troféu. Depois de alguns quarteirões, as pessoas desistiram da perseguição. Ele se vê sozinho novamente. Mais adiante, ele passa por uma lata de lixo onde deposita os restos da guitarra. Ela não lhe servia mais de nada. Perdera sua importância e se tornara lixo. Esta busca incessante por ganhar tempo, como a disputa pelo troféu, se igualam pelo vazio de sentido. O barato está no processo para se consegui-lo, sem se pensar mais profundamente no seu significado e em sua utilidade. Evoluímos muito como seres humanos e, no final, nos tornamos seres autômatos.

Certa vez, eu ficara mais tarde no escritório para adiantar o serviço. O segurança do prédio, em vistoria pelo andar, me descobriu enfurnado em minha sala atrapalhado em meio á papelada.

- O que faz o senhor aqui ainda a esta hora? – perguntou surpreso.

- Estou pondo em dia o serviço atrasado. – respondi sem lhe dar muita confiança.

- O expediente já terminou. O senhor já está fazendo o trabalho de amanhã. Vá para casa – aconselhou o vigia.

Rio Vermelho, 10 de abril de 2009.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O meu caro amigo JR.

O meu amigo JR que é um das pessoas mais gente boa que conheço e também uma das mais mal humoradas. O personagem está sempre de cara enfezada e pouco ri. A menos que lhe contem uma boa piada. Neste caso, dá boas gargalhadas. Se eu não o conhecesse tanto e soubesse que o sujeito é uma boa pinta, eu diria que ele foi o inventor do mal humor. Também não é para menos. Quase tudo em sua vida deu errado.

    Quase ficou milionário ao fazer uma quina, não tivesse um prosaico furo de pneu lhe desviado do percurso até a lotérica. Depois do concerto feito numa borracharia próxima, resolveu não fazer o jogo naquele sábado. O pneu furado lhe deu uma sede danada apesar de ele não ter feito esforço algum. Preferiu tomar uma cerveja num boteco mais adiante. O jogo poderia ficar para a semana seguinte, nunca ganhava mesmo. Naquela noite deixou de ser o único ganhador do prêmio. Seus cinco números tinham sido premiados e nenhum apostador levara. Nunca mais entrou numa lotérica. Segundo ele, um raio não cai duas vezes num mesmo lugar.

    Suas tentativas de casar e ser feliz para sempre fracassaram feito plantação de milho em estiagem. A primeira noiva tinha nome de flor. Chamava-se Rosa. Foi também a primeira namorada. Depois do arrastado noivado de quase uma década, ele finalmente tomou coragem para fazer da moça uma mulher honesta. Pediu-lhe a mão em casamento. Pedido aceito na hora. Um apartamento de primeira foi logo pago a vista e decorado por profissional renomado do ramo, para abrigar o jovem futuro casal. Enxoval fino. Tudo nos trinques. Pois não é que a miserável o largou às vésperas do casório? Fugiu com o tal do decorador. Nunca mais JR voltou ao imóvel, de tanto desgostoso. Terminou vendendo-o ao primeiro comprador por mixaria, desde que não botasse mais os pés lá. Visitei o lugar dias antes da tragédia. Fui ajudá-lo a instalar o videocassete importado. Digo que o decorador ladrão de noivas fez um excelente serviço. E deve ter feito mesmo, do contrário, a noiva não fugiria com ele.

     Não muito tempo depois, ele foi no interior onde era o senhor de umas terras. E lá conheceu Maria Rita, uma boa moça. Menina simples, mas de família digna. Namorou na porta quase um ano. Nunca saia com a moça se não fosse alguém de junto para segurar a vela. Às vésperas do Natal, pediu-lhe em casamento. Em maio deu-se o matrimônio como mandava o figurino e, em agosto, o divórcio. Até hoje o motivo do desenlace permanece um mistério. Ele não toca no assunto. Só há conjecturas. Uma delas é que o casamento nunca foi de fato consumado. Motivo suficiente para JR perder a paciência e devolver a moça ao pai do jeito que veio de fábrica. Resolveu nunca mais casar. Não merecia tanto desamor. Passou a freqüentar os melhores puteiros da cidade, com o intuito de sublimar suas decepções e sofrimentos amorosos. Ótimo remédio.

    JR é um homem fino e de bom gosto. Já tem quase setenta anos. Desde adolescente que tinha gosto pelos clássicos. Sua discoteca possui mais de cinco mil discos. E, para desfrutá-los, comprou equipamento de ultima geração feito sob encomenda na gelada Finlândia. Ele adquirira algo semelhante a um Rolls Royce da eletrônica. Uma maravilha. Cheio de frescuras. Por exemplo, se o disco não fosse de boa qualidade, ele o recusava. Em suas horas de lazer, meu amigo solteirão convicto, sentava-se na varanda de sua casa tomando excelente vinho francês e ouvindo sua música clássica. Parecia até que a orquestra estava em seu jardim. Um dia a geringonça parecia não funcionar bem. O som estava baixo. O técnico veio e não descobriu nada. JR foi ao médico e foi informado que estava ficando surdo. Teria de usar um parelho e ouvir a música com volume mais alto. Ele que já andava de mau humor, ficou com mais mau humor ainda. Mas o pior ainda estava por vir.

    Certa manhã, quando despertou de um sono profundo, JR olhou pela janela e verificou que o dia ainda estava escuro. Virou-se para o outro lado e voltou a dormir. Mas alguma coisa estava errada. Seu relógio biológico lhe dizia que já estava na hora de levantar, tomar um banho e ir para o batente. Algo de ruim acontecera. Constatou, estarrecido, que perdera a visão em meio a uma noite tranqüila de sono. Foi no médico. A perda parcial da visão foi diagnosticada com um nome complicado, mas nem por isso curável. Umas gotinhas de colírios e uns comprimidos controlariam o estrago. Ele só enxergaria imagens embaçadas e distorcidas. Meu coitado amigo JR ficou amargurado. Quase surdo e cego, não poderia mais trabalhar. Foi tomado de um tremendo mau humor.

    JR ganhou um relógio de ouro pelos anos de serviço e foi mandado para casa mais cedo. Passava os dias ouvindo os clássicos e como não podia ler ou ver TV, adquiriu o curioso hábito de ouvir a TV Senado e TV Câmara. Este novo hábito só agravou o seu mau humor. Também não era para menos, aquilo lá é um esgoto a céu aberto. Acho que mesmo que ele não tivesse perdido a visão e a audição, tomar conhecimento do que se passa pelos intestinos do Congresso Nacional já é o suficiente para deixar qualquer um infeliz. Acompanhava as decisões da Casa, não digo que diariamente porque senadores e deputados não são afeitos ao trabalho diário, mas assistia, ou melhor, ouvia, sempre que tinha sessão. Aprendeu o nome da corja inteira apenas reconhecendo-os pela voz. Mesmo aqueles que se salvavam não eram grande coisa como ser humano. Mas enfim, se eles estão lá, é porque é o melhor que merecemos. Todos os discursos, decisões e discussões eram acompanhados com atenção, como se tudo aquilo tivesse um feito imediato sobre ele. Ele sempre estava aborrecido com esta ou aquela medida do congresso. E sem falar nas más notícias políticas e econômicas que ouvia nos noticiários. Todo este excesso de estar bem informado lhe fazia mais mal que bem, e devo dizer que o mesmo efeito causaria a qualquer pessoa descente. Outra coisa, JR é um dos caras mais honestos e éticos que conheço. Caso fosse eleito para o senado, por exemplo, teria o mandato cassado, devido a estes seus 'defeitos'. Sempre que dou uma passadinha para vê-lo, ele não fala de outra coisa que não seja dos desmandos do país. Está sempre aborrecido com isso. Fala inflamado das roubalheiras políticas. Mas, seu mau humor não afeta a amizade que tenho por ele. Há males muito maiores na alma de um homem, e certamente o mau humor não é um deles.

    Um dia, sua irmã mais nova veio do interior lhe fazer companhia. Amélia era uma solitária e eterna chorosa viúva sem filhos. Não tinha o mau humor de JR, mas gostava de se lamuriar e falava pelos cotovelos. Apenas falava por falar, não sabia manter a boca calada. Talvez porque antes de ir morar com JR, ela vivia também sozinha, cultivara o hábito de falar à medida que o pensamento lhe brotava à cabeça. Não havia um dia que não se queixasse de alguma coisa, ao contrário de JR que, apesar de seu mau humor e de seus revezes, não se queixava de nada além das roubalheiras dos políticos e do governo. JR que já estava acostumado a viver sozinho e sem ter com quem conversar diariamente, em pouco tempo, se arrependeu do convite, mas não disse nada. Afinal ela era prestativa e trabalhadora, e cuidava da casa de um jeito que ele não podia mais fazer. Ela apenas falava pelos cotovelos. Por isso ele quase nunca puxava assunto, ou dizia alguma coisa que lhe incentivasse a tagarelice. E, quando acidentalmente isto acontecia, ele simplesmente desligava seu aparelho auditivo e se isolava do mundo. Eram dois solitários sob mesmo teto. Amélia já se acostumara com o jeito sisudo do irmão e com o seu mau humor. Creditava a isso à sua solteirice e as perdas da audição e da visão.

    Certa tarde de calor, JR estava desfrutando da brisa que soprava em sua varanda, tomando uma limada, quando a irmã se aproximou com seus habituais queixumes. Ela estava se sentindo solitária aquela tarde e queria conversar. JR não estava afim de papo, para variar, e foi logo avisando.

    - Não estou para conversas. Hoje estou de mau humor.

    - E quando é, meu irmão, que você não está de mau humor? – perguntou irônica.

    - Hoje eu estou pior! – disse enfezado.


 

Rio Vermelho, 5 de abril de 2009