terça-feira, 22 de outubro de 2013

Como Se Livrar de Chatos

Não me refiro aqui àquele tipo de chato que nós homens acidentalmente adquirimos ao conhecermos intimamente uma dama a qual recompensamos monetariamente pelos seus favores. Falo de gente insistente. Não há nada mais aborrecido que receber telefonema de serviço de telemarketing. Quase sempre tentam nos vender algo que não precisamos ou querem roubar nosso precioso tempo fazendo uma pesquisa cujo resultado dificilmente tomaremos conhecimento ou nos beneficiará de alguma forma. Este pessoal parece ter pós-graduação em escolher os momentos mais inoportunos e fazem isto de maneira insistente e de um modo polido e refratário. Pode-se dizer qualquer grosseria para eles e eles continuarão lhe tratando com a mesma frieza e educação, sem demonstrar qualquer emoção ou contrariedade, seguindo um roteiro de diálogo previamente ensaiado. Depois da classe política, esta talvez deva ser a profissão mais odiada. Há quem os defenda argumentando que eles estão apenas fazendo o seu trabalho, no que eu concordo, mas que trabalhinho chato este!
         Certa vez, eu almoçava na casa de um amigo quando fomos interrompidos por um destes telefonemas. Espirituoso, ele explicou à moça do outro lado da linha que estava na sua hora de almoço e antes que ela insistisse em realizar a sua tarefa, ele perguntou o número do telefone dela e em que horário ela almoçava, pois iria lhe retornar a ligação durante o almoço dela!
         Eu nunca tive a sua presença de espirito e sempre que eu recebia um telefonema perguntando por mim dizendo o meu nome completo num tom bastante formal, eu já sabia só poderia se tratar de uma ligação de telemarketing. O melhor que eu conseguia fazer para me livrar do aborrecimento era dizer que eu não estava. Ora, minha tática era pouco eficiente, pois se eu não estava, nada mais previsível que ligassem novamente até me encontrar em casa e era justamente isto o que acontecia. Mas eles são muito espertos, como Cristiano Teixeira nunca estava, eles passaram a me telefonar e perguntar de modo bem casual: “O Cristiano está ai?”
         Certa vez resolvi enfrentar o problema de frente e quando a moça do outro lado da linha perguntou por mim, não fiz como das outras vezes, respondi-lhe que era eu mesmo que estava falando. Deixei que ela tentasse me vender o seu peixe e depois de ouvi-la disse que não estava interessado. Entretanto, dizer a uma pessoa do telemarketing que eu não estava interessado era o mesmo que dizer-lhe que eu não estava em casa. Não estar interessado não faz nenhuma diferença para esta gente, pois eles voltarão a lhe ligar mesmo assim, infinitas vezes, mesmo que você os mande para o inferno. Eles foram treinados para ir sempre ao inferno, não reagir a abusos verbais ou qualquer outro tipo de provocação. Qualquer outra resposta que não soe como um “sim”, bate e volta.
         Se você quiser se livrar realmente de uma ligação de telemarketing e garantir que pelo menos aquela não se repita, use a última tática que inventei num dia de rara inspiração. Você precisará usar um pouco de talento teatral, no entanto. Quando a moça do telemarketing chamou pelo meu nome e sobrenome, fiz uma pausa dramática deixando-a no suspense (estas pausas funcionam muito, caso queira causar uma impressão no interlocutor). Em seguida, com a voz carregada de emoção informei-lhe que eu havia falecido, ao que ela educadamente desculpou-se. Então eu lhe disse docemente: “Não tem porque se desculpar, minha filha, você não sabia.” Depois acrescentei quase suplicando: “Por favor, não telefone novamente, pois eu fico muito emocionado quando ouço o nome desta pessoa.” E ela não ligou nunca mais, não falha nunca!

Salvador, 21 de outubro de 2013.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Ele Está de Volta

Não que ele tivesse ido embora ou coisa assim. É só uma maneira de dizer que os dias chuvosos de outono se foram embora, assim como os ventos fortes e, por isso, sem as nuvens cinzas que o escondiam,  o sol voltou a brilhar forte e belo para alegria geral. Como uma decorrência da mudança de estação, o sol também passou a se pôr mais a leste e aqui do Rio Vermelho agora é possível contemplá-lo mergulhando no oceano e não mais por detrás do morro da favela e prédios da decadente Salvador.
         Eu também saí da toca e voltei a caminhar. Faço isto diariamente ao longo da Praia de Santana até a segunda escada da Praia da Paciência e repito este mesmo percurso meia dúzia de vezes no final da tarde, quando o sol já está se pondo e até a escuridão tomar conta das ruas com seus medos. E é neste momento do dia que observo como magnetismo mágico do astro rei atrai multidões até a praia para testemunhar os seus últimos raios de luz.
         Entretanto, algo tem mudado no modo como as pessoas apreciam o pôr do sol. Não encaram mais este momento sublime com o mesmo olhar contemplativo que tanto inspirou poetas, músicos e amantes.  Ao invés disso, utilizam um aparelho de celular com câmera fotográfica que antepõem entre si e o cenário magnífico que acontece à sua frente. Cada momento desta trajetória do sol precisa estar fixado no aparelho e o prazer de assistir o sol se pôr foi substituído por uma atitude de quem está anotando uma receita de bolo ao invés de degustá-lo. O prazer real se dará quando as fotos aparecerem no monitor do computador, na página de uma rede social qualquer para que a pessoa diga ao mundo como ela sabe curtir os bons momentos da vida, o que me parece ser uma espécie de contemplação de si mesma.
O prazer de se curtir os momentos bons da vida vão sendo substituídos pela prática de documentá-los ao invés de vivenciá-los. Os celulares em posição de ataque vão substituindo o olhar puro e simplesmente. Enquanto isto, o sol vai se pondo solitário oferecendo um espetáculo àqueles que gostam de ver o mundo com os próprios olhos. Mais adiante, dois amigos se encontraram e um perguntou ao outro: "E aí, é bonito o lugar que você conheceu na viagem?" O outro responde: "Não sei, ainda não postei as fotos".


Rio Vermelho, 11 de outubro de 2013.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Velhice ou Velhaco Precoce?

À medida que os anos passam, eu vou me tornando um sujeito mais cínico. Não sei ao certo se isto é decorrente de um processo natural do envelhecimento ou se, de fato, estou ficando mais cínico, mesmo. Outro dia, enquanto eu aguardava a minha vez na longa fila do banco, a atendente me chamou, achando que eu fosse uma pessoa idosa e, por isso, tinha prioridade no atendimento. Já era a terceira vez que algo semelhante me acontecia, e, diferente das ouras vezes em que eu desfiz o engano, olhei desanimado para a longa fila à minha frente e depois lancei um olhar de candura para a moça do caixa me dirigindo em sua direção com os passos lentos de um idoso. Acho que até tossi um pouco para demonstrar que aquela poderia ser a minha ultima fila.
Ainda que falte muito tempo até que eu goze de tais privilégios, eu não me ofendo se me tomam por um sexagenário, embora, minha aparência não esteja tão ruim assim. Quando eu faço a barba, corto os cabelos e tomo um bom banho, fico novo em folha! A verdade é que eu detesto aguardar em filas – e quem gosta? – e se me tomam por tão velho a ponto de merecer um lugar antes de todos, eu me vingo! Entretanto, não ajo como outros que estacionam em vagas para idosos ou deficientes físicos. Minha birra é só com as filas quilométricas de banco no início do mês e da lotérica em dia de jogo acumulado. Eu fico me perguntando, porque será que idoso tem prioridade para jogar?
Dia desses, eu aguardava o sinal para atravessar uma movimentada rua aqui no Rio Vermelho. Era um daqueles horários da manhã que aparecem automóveis de tudo quanto é lado. Enquanto eu esperava pacientemente pelo sinal verde para pedestre, notei que ao meu lado também esperava uma bela moça. Depois que uma faculdade particular para filho de gente rica se instalou aqui no bairro, não apenas os congestionamentos por aqui aumentaram, as contramãos em vias de mão única também e as calçadas se tornaram estacionamentos para os automóveis dessa gente bonita e civilizada, mas um grande número de moças bonitas começou a circular pelo bairro durante o dia, equilibrando-se desajeitadas sobre finos e longos saltos altos. Uma dessas beldades ao ser questionada por mim, depois de colocar os quatro pneus de seu lindo carrinho sobre o passeio de uma rua movimentada, respondeu-me que estava no seu direito, uma vez que não havia placas no local proibindo-a de fazer aquilo!
Voltando à moça ao meu lado no semáforo (é assim que o baiano chama o sinal luminoso de tráfego). Eu sorri para ela encantando e ela me devolveu o sorriso com a mesma simpatia. Para a minha satisfação, ela até chegou mais próximo de mim. Foi quando o sinal abriu para nós e ela num movimento rápido surpreendeu-me segurando o meu braço na altura do cotovelo dizendo: “Vamos?” Ao que eu perguntei chocado: “Para onde?” Ela responde: “Atravessar a rua, o senhor não estava querendo uma ajuda para atravessar?” Por mais esta eu não esperava, mesmo!

Rio Vermelho, 17 de setembro de 2013.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A Luta Para Nascer ou Pelo Renascimento do Parto Natural

Outro dia eu estava empenhado na simplória tarefa de comprar um papeiro. Caso alguns desconheçam este útil artefato de cozinha, informo-lhes que se trata de uma pequena panela de metal, muitas vezes com o acabamento feito de ágata, usada para fazer mingau para o bebê. Eu o uso para ferver um ovo, por exemplo, fazer molhos e, é claro, fazer mingau de aveia, minha refeição preferida no café da manhã. Aquele que me serviu por tantos anos, de tão velhinho que estava, o cabo desprendeu-se da panela. Sem conserto, foi aposentado com honrarias, por relevantes serviços prestados (joguei no deposito).
         Percorri três grandes shoppings da cidade e neles entrei em lojas especializadas em artigos para bebês, em lojas de variedades para a casa e em lojas de artigos para a culinária. Em nenhuma delas encontrei um único papeiro. A procura por um substituto ao que eu tinha me levou ao conhecimento de uma triste realidade de nossos tempos. As mães de hoje não fazem mingaus para os seus bebês, dá muito trabalho. Preferem comprar um produto industrializado que vem numa lata bonita. É só misturá-lo ao leite morno e voilá! Será que esta maravilha moderna é realmente saudável ao desenvolvimento do rebento? Foi sepultado de vez o romantismo de fazer com amor o mingau da criança, mexendo-o com a colher de pau em frente do fogão, como fizeram muitas mães de minha geração. As jovens mamães de hoje em dia tem mais o que fazer.
         Mães modernas desejam praticidade e não ter tanto trabalho. Até o trabalho de parto tem rejeitado. Somos o país do mundo campeão em cesariana. É tão conveniente marcar o dia e hora em que vai se dar a luz, nada da nojeira da bolsa rebentando e sujando o assoalho limpo, nada de correr para o hospital sentindo dores e contrações no meio da madrugada, no fim de semana. Nem sentir as dores lancinantes provocadas pela criança procurando o caminho de entrada neste mundo insano. Para o médico é, também, um alívio não ter a inconveniência de um parto no meio de seu fim de semana à noite, interrompendo o seu merecido descanso na casa de praia. Faz bem à sua conta bancária.
         É triste, mas é uma dura realidade, jovens mães abdicaram do direito ao parto natural.  Algumas por vontade própria e conscientemente, outras por indução daqueles que elas escolheram para cuidar de seu bem estar, que um parto cesariano é mais lucrativo financeiramente. Precisa falar mais? Jovens mães, não renunciem de uma experiência que é só da mulher e que só trás benefício ao seu bebê. Sabiam que enquanto o bebê está na barriga da mãe ele está num ambiente “esterilizado” e ao sair para mundo, por vias naturais, este é batizado ao longo do caminho com um coquetel de “germes” que ajudam o seu sistema imunológico a enfrentar a barra aqui fora?
         O nascer por via do parto natural é um grande esforço para a mãe e é, também, a celebração de sua experiência de gestação plena e bem sucedida, um fato único em sua vida, um ritual de passagem para se tornar mãe. Ela conseguiu, foi até o fim! Não passar por esta última parte é como ler um livro e abdicar do capítulo final, não viverá a emoção do final da estória. Algo vai sempre estar faltando... Nascer pelo parto natural é, também, a primeira grande luta do bebê para chegar ao mundo. Outras lutas virão mais adiante, mas se ele conseguir enfrentar pelo menos esta, ele terá a garra para as outras que surgirão pela frente. E se, ao contrário, ele for poupado desta primeira luta, como será a sua existência frente às muitas dificuldades que ainda surgirão pela frente?

         Rio Vermelho, 3 de setembro de 2013.

         

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Em Nome do Pai

Aqui perto de casa existia as ruínas do que outrora fora uma pracinha de bairro cujo tempo e falta de zelo encarregaram-se de torná-la esquecida e desprezada. Tomada pelo capim alto e sujeira, certo dia, um ex-morador das vizinhanças que foi trabalhar ao lado do prefeito, para provar o seu prestígio junto ao alcaide, conseguiu deste que reformasse a praça e a tornasse num espaço útil à comunidade. Bravo! Terminado os demorados serviços de reconstrução, este mandou colocar no centro da nova praça o busto de um homem de óculos pesados e olhar severo e batizou-a com o nome de seu saudoso pai, um ilustre desconhecido.
         Ora, quem de nós não gostaria de homenagear o próprio pai com um monumento em seu nome ou uma rua ou avenida? Sem querer desmerecer o genitor de alguém, não haveria praças, pontes, viadutos e logradouros públicos em quantidade suficiente para prestar tal distinção. Enfim, a praça ficou bela e aprazível. Além do insólito monumento, ganhou, também, bancos de madeira, escorregador, gangorra e balanço para as crianças. O busto do desconhecido até conferiu um certo charme ao local, que passou a ganhar vida com a frequência de moradores do bairro de dia e à noite.
         Talvez alguém, com inveja ou protesto por não ter conseguido, também, prestar um tributo ao próprio pai, colocando nem que fosse uma placa com o seu nome num dos bancos da praça, foi lá sorrateiramente e roubou os óculos do homenageado, dias depois da inauguração que foi uma festança com direito a acepipes, fanfarra e fogos de artifício.
         O ato de vandalismo foi repudiado por todos. Poxa a pracinha estava tão bonita, quem fez aquilo não gostava de ver a cidade arrumada. Mas o filho do ilustre desconhecido mostrou que tinha mesmo prestígio. Dias depois, o escultor autor do busto foi lá e pôs novo par de óculos no monumento.
         Ao todo, foram cinco vezes, ao longo de quatro anos, que fizeram sumir os óculos do rapaz. O vândalo era insistente em seu propósito e o filho do homenageado em sua determinação de ver o pai usando óculos, como se naquela altura da vida e em sua atual condição estática aqueles lhe fosse de alguma utilidade ótica.
         Certo dia, no entanto, anos depois, um renomado restaurador de monumentos com diploma em cursos na Europa apareceu na pracinha, contratado pela prefeitura para fazer uma limpeza no tal busto e colocar-lhe novo par de óculos. Ao ser arguido por um antigo morador do bairro, um idoso proveniente de algum fim-de-mundo na Itália que, sentado num banco, tomava o seu habitual banho de sol matinal, lhe respondeu que iria colocar, mais uma vez, os óculos na estátua. O italiano achando graça naquela novidade e veio com a seguinte brilhante ideia: “Por que você não coloca lentes de contato no ilustre? Ele vai parecer mais jovem e, por certo, vai ficar mais difícil de roubá-las.” O restaurador achou a sugestão uma piada, onde já se viu colocar lentes numa estátua. Entretanto, ao concluir o seu serviço ao cabo de dois dias de trabalho, o artesão rendeu-se a sabedoria do velho italiano e pôs no monumento, desta vez, um par de lentes de contato novinho em folha, as primeiras de que se tem notícia, usadas por uma estátua!

Rio Vermelho, 25 de agosto de 2013.

domingo, 18 de agosto de 2013

É Isto Que Chamam de Amor?

A mulher muito desejada pelos homens conta, sem pudor, o seu segredo para deixá-los loucos por ela: “Eu piso neles. Digo que vou telefonar e não telefono. Combino de sair com eles e na hora furo. Desprezo-os, maltrato-os mesmo. Eles ficam louquinhos por mim!”
Quem já teve o infortúnio de ser vítima de uma pessoa como esta, talvez desconheça o fato de que elas são, na verdade, umas predadoras. Insensíveis. Só aquele que já passou pela experiência de ter os seus sentimentos manipulados de tal modo, sabe como isto é doloroso. Entretanto, existem pessoas que acham que isto é que é o amor.
Isto nem mesmo em nada tem a ver com a arte da conquista. Pelo contrário, mais se assemelha a algum tipo de manifestação de sadismo pela qual um exerce o seu poder sobre o outro através da tortura emocional. As que agem assim, dão a isto o inocente nome de “joguinhos de conquista”. Mas longe disto ser algo inocente, é, na verdade, uma forma equivocada de perceber o outro, sem levar em conta os seus sentimentos ao agir para conquistar a sua afeição, mesmo que faça isto sem maldade alguma. Só as pessoas inseguras é que jogam o tempo todo, incapazes que são de cultivar uma relação de confiança e sinceridade, estão sempre aflitas em obter provas do amor do outro.
Para tanto, umas somem propositalmente por alguns dias para forçarem o outro a procurá-la e assim terem certeza de seu amor. Outras marcam compromissos que desmarcam em cima da hora (isto quando se dão ao trabalho de fazê-lo) com o intuito de deixar o outro com mais vontade ainda de vê-la, enfurecido por ter esperado tanto tempo em vão. Ou simplesmente não atendem aos telefonemas do outro, ignoram os seus e-mails e “torpedos” para demonstrar que têm mais o que fazer. Ou simplesmente se fazem de difíceis inventando desculpas inverossímeis cada vez que recebem convites para se encontrarem. É assim que muitas agem quando percebem que são desejadas, é assim que exercem o seu poder sobre o outro, esmagando o seu coração.
Alguém pode achar que este tipo de mulher sabe como “domar” os homens e que ela se dá bem no amor. Pelo contrário, tal comportamento a transforma numa espécie de desafio para eles que, ao se satisfazerem, finalmente, perdem o interesse, somem como uma criança que cansou do brinquedo novo. É neste momento que ela, então, transforma-se em vítima e os homens em “todos são iguais”. No entanto, refazem-se procurando uma nova vítima e o resultado é mais um desapontamento. Infelizmente, estas mulheres entram num ciclo vicioso sem perceberem o mal que fazem a si mesmas. Então, por que não serem sinceras e demonstrarem de início que estão interessadas pelo cara ou despachá-lo de primeira?
É estanho o comportamento humano e os motivos que tornam a sua psiquê satisfeita. Outro dia uma amiga contava para outra que estava relacionando-se com um homem sádico que a submetia a todo tipo de perversão e humilhação: “Encontrei finalmente o homem da minha vida”, disse ela feliz.

Salvador, 14 de agosto de 2013.

domingo, 28 de abril de 2013

O Taxista Apaixonado

Sexta-feira, vesti minha roupa de domingo e fui ao encontro com a moça de meus sonhos. Um táxi casualmente passava em frente de casa, fiz sinal e ele parou. Toca pro corredor da Vitória, eu disse, que a moça já está me esperando. Falei assim para impressioná-lo, queria que soubesse que não sou um João de Ninguém, pois à minha espera, estava uma bela moça. Era para ele andar mais rápido, também, e escolher o caminho mais curto. Mas não menti totalmente. Havia, sim, uma moça na parada, mas eu era quem iria esperar por ela. Meu coração batia de tanta felicidade, como o de uma criança que acabou de ter encontrado com Papai Noel. O taxista, percebendo a minha ansiedade, arriscou:
         — É tão bom ir encontrar-se com namorada nova, não é mesmo?
         — Esta não é nova e nem é velha. É apenas um projeto amoroso que, pelo andar da carruagem, nunca deixará o plano das boas intenções.
         — Eu estou entendendo o que o senhor está me dizendo... – disse pensativo.
         — Este é um daqueles casos complicados que não ata e nem desata, entende? Um joga confete no outro, mas nenhum dos dois toma a iniciativa.
         — O meu caso é um desses complicados também. – lamentou o taxista.
         — E eu já até tentei me declarar, falar-lhe do meu amor por ela, mas ela não deixa, pois ela tem o dom da palavra: fala pelos cotovelos!
         — O senhor permite eu lhe dizer uma coisa?
         Imaginei que viria de lá um daqueles conselhos de taxistas. Eles sempre têm solução para tudo e sabem das coisas melhor que ninguém. Se no Congresso só houvesse motoristas de táxi e se fossemos governados só por eles, o Brasil, com certeza, seria um país bem melhor. Não haveria inflação ou desemprego, nem mais pobreza, o problema da violência estaria resolvido, o corrupto iria ver o sol nascer quadrado o resto da vida, nossa educação seria melhor que a da Coreia do Sul, a soja não apodreceria no caminhão na fila de espera para ser embarcada no navio, não haveria mais seca no Nordeste, nem filas em hospitais públicos e a nossa Seleção teria uma escalação de fazer gosto. Mas, ao invés de dar um conselho, ele me surpreendeu.
         — Eu estou muito apaixonado. – declarou emocionado.
         — É... Também padeço da mesma moléstia.
         — Mas o senhor tem sorte, vai encontrar com a moça daqui a pouco, assim que eu lhe deixar em seu destino. A minha mora lá no fim do mundo, no Amapá.
         — A minha situação não é muito diferente. É como se ela morasse no Cazaquistão, só vejo de andorinha em andorinha e, às vezes, nem isso. Você a conheceu pela internet?
         — Não. Conheço-a em carne e em osso! – disse com orgulho.
         Curioso, perguntei:
— E como foi isto?
— Ela veio a Salvador a trabalho, fui seu motorista o tempo todo. Ela é uma empresária lá na terra dela, muito bem de vida, por sinal.
— Ah, sim...
— Agente foi se entendendo e sabe como são estas coisas...
— Comeu-la?
— Não! Não houve oportunidade, mas rolou muito carinho. Agente saía pra namorar todas as noites e quando ela estava livre do trabalho. Íamos jantar fora, estas coisas. Ela pagava tudo, não deixava eu ter despesa alguma, me tratava como um príncipe. – os olhos marejaram.
— Que bacana.
— Antes de ir embora, quis me dar um relógio de presente, mas não aceitei. Não aceito presente caro de mulher, não sou homem disso.
— Agiu corretamente. – eu disse, embora pense o contrário. Que mal tem em receber um presente caro?
— Meu senhor, eu não paro de pensar nessa mulher, eu penso nela noite e dia. Eu tô aqui conversando com o senhor, mas estou pensando nela. É um tormento, nem durmo mais direito de pensar tanto nela.
— Eu sei como é isto...
— Estou com muita saudade... Ela não me telefona, eu fico esperando uma ligação dela, mas até hoje ela não me telefonou, depois que voltou pro Amapá.
— Mas porque você não faz uma surpresa a ela e liga você mesmo?
— É meio complicado...
— Como assim? Não tem o telefone dela?
— Tenho sim. Mas vai que o marido dela atende o telefone?

Rio Vermelho, 27 de abril de 2013.
          

sábado, 13 de abril de 2013

O Poeta Deformado

Aos 56, Horácio de Mattos era o poeta preferido dos intelectuais boêmios e habitués de bares noturnos, dos aposentados da praça no centro da cidade onde intermináveis partidas de dominó eram travadas, dos entediados passageiros de ônibus, dos passantes apressados de qualquer esquina movimentada, dos apaixonados, dos amantes, onde houvesse público, porque ele era um poeta de rua, declamava seus poemas onde o público estava. Mas para ganhar a vida, tirar o seu sustento, a sua realidade era bem mais dura, pois ele era o faxineiro da noite de uma escola pública.

            Horácio sofria a angústia daquela vida dupla. Afinal, qual homem dos versos, sensível, talentoso, romântico, sonhador seria feliz dependo do trabalho braçal para sobreviver? Mas aquele conflito estava longe de ser tudo. Isto porque, a sua coleção de belos poemas não estava guardada em outro lugar além de sua memória e da qual ele dependia visceralmente para ser poeta. A verdade era que não existia um único registro de suas poesias num caderninho ou simples folha de papel que fosse. Estava tudo mesmo guardado em sua cabeça.

O motivo para o uso daquele sistema de arquivamento rudimentar era simples e ao mesmo tempo trágico: o nosso grande poeta não sabia escrever. Nem ler. O homem que usava a palavra como ferramenta de trabalho era incapaz de reconhecê-la grafada no papel, num letreiro de rua, no ônibus o qual tomava para ir ao trabalho. Muito menos sabia reproduzi-la com lápis sobre a parede. Horácio era analfabeto de pai e de mãe.

A alfabetização é uma das pedras angulares da civilização. Ser analfabeto é ser deformado. E o desprezo que antes era dirigido à aberração física pode, talvez com mais justiça, recair sobre os analfabetos. Não era por menos que Horácio fazia de sua limitação intelectual um segredo do qual se envergonhava.

            Havia outro mistério que tornava a vida de Horácio mais dura ainda. Seus poemas eram verdadeiras odes ao amor e à felicidade. Não era ele o poeta do amor não correspondido, do coração partido, do amor desfeito, da desilusão amorosa. Ao contrário, ele celebrava a realização plena do amor, o encontro da pessoa amada, a felicidade de estar amando e de ser amado. Entretanto, por ironia do destino, nosso Horácio poeta jamais conheceu o amor que ele tanto louvava em seus versos. Nunca experimentou o gosto de beijar os lábios da mulher amada ou andar de mãos dadas em sua companhia ao longo da areia da praia no limiar de um pôr do sol. Jamais houve ninguém contando as horas do dia passarem para ficar juntinho ao seu lado. Ele já amou muitas vezes, mas nunca teve a graça de ser correspondido. Mesmo assim, aquela dolorosa realidade não invalidava os seus versos de amor e felicidade, uma vez que não é preciso pisar na lua para se escrever sobre a sua distância e melancolia, pois a maior aventura que há, está em nossa imaginação.

            Certo dia, ele tomou uma decisão corajosa, porém não tardia, e que afetaria sua vida para sempre. Na escola onde trabalhava à noite, inscreveu-se num curso de alfabetização para adultos. Prometeram-lhe que aprenderia a ler e escrever em três semanas. Aprendeu em duas. Ele e as letras tornaram-se amigos logo nos primeiros flertes, foi como se fossem camaradas há muito mais tempo. Horácio se perguntava intrigado, se foi tão fácil aprender a ler e escrever, por que levara tanto tempo na escuridão? Era maravilhoso poder ler e escrever como qualquer pessoa. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois que ele foi apresentado às letras. Era como se ele tivesse vindo ao mundo pela segunda vez.

Entretanto, familiarizar-se com o universo das pessoas cultas causou-lhe um efeito inesperado. Ele não conseguia escrever os seus poemas. Por mais que tentasse, era simplesmente impossível compor as suas rimas diretamente sobre o papel, como fazem a maioria dos poetas. Ele habituara-se àquele método de compor seus versos na memória, talvez isto fosse até coisa de gênio, mas o fato era que lápis e papel não lhe tinha utilidade alguma. Nem mesmo registar no caderno as poesias que já existiam, ele não conseguia.

Havia, entretanto, uma explicação para aquele obstáculo. Cada vez que declamava uma poesia, um novo verso ele adicionava ou substituía por outro mais belo, de forma que os seus poemas estavam em constante transformação, como se estes tivessem vida própria. Embora a sua essência continuasse a mesma, suas palavras e versos se alteravam. Ele até tentou escrevê-los, mas quando lhe vinha à mente o verso que ia ser registrado no papel, este logo se trocava por outro no instante em começava a ser escrito.

Aquela constante transformação fez Horácio perceber que as suas poesias eram entidades livres depois que ele as criava, era como se elas não mais lhe pertencessem. Escrevê-las num papel ou mesmo imprimi-las num livro, era como aprisioná-las, roubar a sua liberdade. Por isso, ele não podia privá-las daquele bem que ao homem era imensurável. Ele decidiu, portanto, que elas continuariam soltas e livres em sua imaginação, ele seria um poeta cujos versos existiriam até quando sua memória pudesse dar-lhe o prazer de recordá-los.

E quanto à sua trágica condição de jamais o seu amor ter sido correspondido, aquela era uma triste realidade com a qual Horácio aprendia a conviver dia após dia e sublimá-la através de seus belos e encantadores poemas. Quem sabe um dia, ele finalmente encontrasse a felicidade plena no amor de uma mulher que o aceitasse como o poeta deformado que era. Como podem perceber este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 08 de abril de 2013.
            

segunda-feira, 25 de março de 2013

Uma Incômoda Amizade


Nem sempre temos a sorte de escolher os nossos próprios amigos, por mais íntimos que estes se tornem. Ao contrário, muitas vezes, nós é que somos escolhidos por estes.  E esta é uma estória de uma incomum amizade, destas que agente não consegue se livrar, por mais incômoda que esta seja.
         Nos últimos dias, mal Raimundo Nonato entrava em casa e sua atenção era chamada por um incômodo ruído que assemelhava-se ao zumbido provocado por um inseto ao bater as suas poderosas asas, como se este estivesse preso de algum modo e tentasse libertar-se. Por mais que ele procurasse a origem daquele barulho, vasculhando os limites de seu pequeno apartamento, ele não conseguia descobrir a fonte daquele aborrecimento. Mas como ele sempre chegava exausto, depois de passar o dia inteiro trabalhando montado sobre uma motocicleta, ele era motoboy, dava-se por vencido e ia dormir ouvindo aquele zumbido intermitente até cair no sono profundo.
         Na manhã seguinte, quando acordava, lá estava o zumbido novamente, aguardando-o para desejar-lhe bom dia. Aquilo o fazia ficar mal-humorado e estragava o seu dia. Sempre atrasado, entretanto, ele vestia-se e saía apressado para tomar o café-da-manhã na padaria.  Em seguida, partia para sua jornada de trabalho sobre a motocicleta, ziguezagueando ente os automóveis, vencendo os congestionamentos que ia encontrando pela frente. Durante o dia, enquanto trabalhava, ele esquecia aquele aborrecimento que se tornara aquele misterioso zumbido.
         Mas ao final do dia, quando Raimundo Nonato voltava cansado, lá estava o zumbido aguardando por ele em sua casa. Naquela noite, entretanto ele estava disposto a acabar com aquela aporrinhação, resolveu colocar a casa de pernas para o ar e não descansaria enquanto não encontrasse o responsável pelo maldito zumbido. Arrastou móveis e procurou por baixo e por trás destes. Fuçou armários, revirou gavetas, até debaixo do tapete procurou sem sucesso. Infeliz, resolveu ir dormir na casa da mãe que ficava duas ruas adiante da sua.
         Ao chegar à casa materna, mal se queixou do barulho para ela e, para seu desapontamento, percebeu que zumbido o havia ido junto. A mãe foi incisiva:
— Este zumbido é no ouvido!
— Será? – perguntou-se Raimundo Nonato aflito.
         No dia seguinte, não deu outra. Correu para ver o médico de ouvido. Foi o primeiro a ser atendido. O doutor Pereira tinha o olhar cansado e era um daqueles sujeitos que gostava de falar pelos cotovelos. Quando Raimundo Notado descreveu o seu zumbido, o médico lhe disse que isto poderia acontecer por diversas razões. Em seguida, começou a falar de sua recente viagem de passeio a Aracaju e de como aquela cidade era limpa e organizada. Contou como o povo sergipano era cortês e educado. Falou de suas bonitas praias e de como um Estado tão pobre estava em melhor situação que a Bahia. Aquela lenga-lenga não tinha mais fim e parecia que o doutor tinha esquecido o motivo que levava o paciente até seu consultório.
         Finalmente o doutor se deu por satisfeito com a sua preleção sobre Aracaju e pediu que Raimundo Nonato fosse sentar-se na cadeira de exame que era muito semelhante à do barbeiro. Em seguida, olhou para dentro do ouvido do rapaz com a ajuda de um aparelho apropriado para aquele procedimento. Entretanto, nem Raimundo Nonato esquentou o assento da cadeira e doutor deu a análise por concluída. O ouvido do rapaz era perfeito, nada havia de errado com ele.
         — Seu ouvido está ótimo! Você não ouve o zumbido quando está na rua porque o barulho exterior o camufla. Faça uma experiência, ligue a TV quando chegar em casa e note como seu zumbido desaparece.
         — Mas porque meu ouvido está zumbindo?
         — Como eu lhe disse, meu caro, tais zumbidos são um mistério. A causa pode ser qualquer coisa ou simplesmente nada. – sentenciou o doutor.
         — Mas o que faço, doutor? Este zumbido vai me deixar louco. Não tem um remédio?
         — Meu caro, o único remédio que posso lhe prescrever é o seguinte conselho: Faça do zumbido o seu amigo. – deu por encerrada a consulta.

Rio Vermelho, 25 de março de 2013.

         

domingo, 10 de março de 2013

Pior Que Tosse de Cachorro

Outro dia, comentava satisfeito aqui em casa: este ano, a minha tosse não veio. Todo verão, tenho uma tosse esquisita, horrível mesmo, que vem, quase acaba comigo e depois some, só retornando no ano seguinte. Dois dias depois, não deu outra, comecei a tossir. Veio de forma discreta, como faz sempre, e foi evoluindo e se instalando, tomando a força de uma besta! Tossia o dia inteiro e, por vezes, era acometido de acessos violentos, curvando-me sobre o corpo, quase cuspindo fora os pulmões. Tudo, então, ficava escuro como num apagão e eu só enxergava flashes de luzes que piscavam como num curto-circuito. A voz ficava cansada e sumia por horas. Entretanto, nunca me ocorreu ir a um médico por causa dessa tosse besta.
            Uma querida amiga de São Paulo, a passeio em Salvador, veio me visitar. Ao testemunhar minha tosse, sugeriu-me um xarope fitoterápico milagroso, cujo nome passou-me num pedaço de papel. Corri até a farmácia, depois que foi embora, e comprei aquela maravilha curativa cuja fabricação era numa cidade da Bahia de nome sugestivo: Santo Antônio de Jesus. Entretanto, passados dois dias e de ter consumido todo o frasco, minha tosse continuava firme e forte.
Aquele meu estado enfermo começava a despertar a atenção e preocupação de amigos. Um amigo italiano, impressionado, veio trazer óleo de hortelã, que faria a tosse sumir. Colocou duas gotas na palma de minha mão e mandou que eu as friccionasse uma contra a outra e as levasse à minha boca em forma de concha, aspirando fundo. A sensação mentolada foi muito agradável e refrescante, mas aquela tosse dava demonstrações de que não desistiria de mim assim tão fácil. Um vizinho árabe, de quase noventa e meio cego, trouxe-me um unguento para passar na garganta. A sensação era agradavelmente gelada, muito interessante, mas, também, não funcionou. Duas amigas vieram me trazer mel, uma delas trouxe um pote enorme do produto colhido na Chapada Diamantina. Ajudaria a suavizar e limpar as vias aéreas, ela disse. Muito delicioso aquele mel, inclusive com um pedaço de pão, mas a tosse não foi embora. Mastigue uns pedaços de gengibre, sugeriu um. Aspire álcool, disse outro. Já tentou um chá de cascas de limão com alho, cravo, mel e canela? Não falha nunca! Pois é, comigo nada disso deu certo.
Certo dia, acordei mal. Hoje vou juntar-me ao Criador, pensei. Lá pelas tantas da tarde, me dei por vencido. Procurei na internet por um médico e, por ventura, encontrei um não muito longe aqui de casa. Depois de uma conversa sofrida, entrecortada por acessos de tosse e perda de voz, o atendente, do outro lado na linha, informou-me que a médica só teria horário no dia seguinte. Tarde demais, implorei, melhor chamar o padre agora. Impressionado, o rapaz disse: “se o senhor vier agora, será o próximo a ser atendido.”
O consultório ficava a apenas três quilômetros e meio de casa, fui a pé, andei rápido. De carro, jamais chegaria a tempo, por causa do interminável congestionamento das 15hs. O consultório ficava num prédio estalando de novo e muito chique, lembrei que não tinha perguntado o preço da consulta, estava na cara que iria doer no bolso. Subi até o quarto andar, ao entrar na sala de espera, me deparei com uma multidão, havia gente sentada e de pé. Ao me apresentar, o rapaz tomou os meus dados pessoais e me mandou direto ver a medica. Não me senti culpado de estar furando a fila, um moribundo tem lá as suas regalias!
Ao entrar no consultório, um lugar branco, asséptico e impessoal, uma jovem e bela mulher com a mesma descrição da sala, levantou-se de sua cadeira por de trás de uma mesa vazia, exceto por um monitor de computador e teclado, veio me cumprimentar. Vestia um desses jalecos grossos, longos e brancos como a neve. A pele não era menos branca e os cabelos longos, lisos e pretos contrastavam com o resto do cenário. Não usava maquiagem, joias ou qualquer adereço, não havia nela nenhum apelo sexual, ao contrário, parecia assexuada. Era muito formal e parecia desconfortável na presença de estranhos.
— Como tem passado, doutora? – estendi-lhe a mão.
— Muito bem. E o senhor?
— Não tão bem e é isto que me traz aqui. – respondi sentando-me na cadeira disponível.
— Conte-me o seu sofrimento. – ela pediu.
— Eu estou sofrendo de amor, doutora. Mas o que me traz aqui é essa tosse.
Enquanto eu descrevia a minha tosse, ela digitava e não tirava os olhos do monitor do computador. Eu não poderia dizer se ela estava atualizando o seu “feed de notícias” do Facebook, twintando sobre a minha consulta, ou pesquisando no Google um diagnóstico sobre os sintomas eu lhe descrevia com riqueza de detalhes literários. Talvez houvesse um médico de verdade do outro lado e ela fosse apenas uma intermediária. Depois de ela me fazer várias perguntas e eu de respondê-las, ela pediu-me que a acompanhasse na sala ao lado, para me examinar.
Sentei-me numa maca e, para minha surpresa, ela dispensou o tradicional “coloque a língua pra fora e diga A”. A medicina moderna deve ter banido este ultrapassado procedimento, pensei. Ao contrário, ela me mandou levantar a camisa, que preferi tirar, e foi auscultar meus pulmões pelas cotas, com a ajuda de um estetoscópio. Mandou tossir, respirar fundo, tossir de novo seguidamente. Fez isto minuciosamente e demoradamente que me preocupou. Examinado as costas, fez o mesmo pela frente. Pude ver de perto a sua pele perfeita e branca. Os olhos eram azuis e gélidos, quase sem expressão. Senti a maciez de sua pele quando me tocou, desejei aquela boneca de plástico.
— Pode vestir a camisa. – ela disse concluindo.
— Doutora, não vai querer examinar a minha próstata? – lancei-lhe um olhar languido.
— Isto é desnecessário. – respondeu surpresa.
— Mas eu faço questão! – insisti.
Ela deu as costas e voltou para a primeira sala e eu a segui logo atrás. De volta à minha cadeira, perguntei-lhe:
— Quantos dias ainda tenho, doutora?
— O senhor ainda vai viver até os cem! – sorriu pela primeira vez.
Em seguida, ela tentou dar um diagnóstico. Indicava que havia alguma coisa inflamada entre a minha cabeça e os meus ombros, mas não precisava ao certo do que se tratava. Chamou isto de uma traqueíte e depois de outra ite, enfim, voltou-se para o computador e foi digitando novamente e depois imprimiu. Era a receita.
— Mas que letra bela e legível. – eu brinquei, mas ela não achou graça.
Prescreveu-me umas gotinhas maravilhosas para fazer o nariz parar de escorrer, um poderoso antibiótico, também muito utilizado para curar dor de dente de elefante e outro comprimidozinho que, se não fosse tomado na dose e tempo certo, poderia trazer-me complicações no fígado, rins, visão ou me fazer andar de cadeira-de-roda pelo resto da vida.
— Eu lamento ter de lhe passar este remédio, mas para o seu caso, não tenho alternativa. – disse a doutora solenemente.
Despedi-me. “Obrigado, doutora. Espero não revê-la nunca mais.” Fui embora.
Voltei para casa andando, no caminho, passei na farmácia e comprei os medicamentos. Lá mesmo, já tomei o primeiro comprimido, seguindo ordens médicas. À noite, tomei mais uma dose e já sentia os efeitos da medicação, podia tossir sem ter a impressão de que a cabeça explodiria junto.
Em situações como esta é que agente descobre os amigos que tem, eu melhorei da tosse dias depois, graças ao carinho, zelo e solidariedade dos amigos que continuaram me telefonando para saber de minha saúde e me sugerindo remédios caseiros milagrosos e, provavelmente, também, por causa dos remédios prescritos pela doutora.

Rio Vermelho, 10 de março de 2013.

domingo, 3 de março de 2013

A Dúvida Cruel


Fui dar minha caminhada na orla como faço diariamente, mas, neste sábado, troquei o final de tarde pela manhã, pois o dia era convidativo a tomar um saudável banho de sol logo bem cedo. Ao passar em frente à praia da Paciência, não resisti aos seus encantos para que eu fosse dar um mergulho, pois a água estava cristalina como a piscina de um clube grã-fino e serena como as águas do Caribe, além de que, totalmente deserta, exceto por um vulto que eu via de longe banhando-se tranquilamente. Dei por finalizada a caminhada e desci a escada que levava até a areia, e, depois de me desfazer de roupas e tênis, mergulhei na água que estava deliciosamente gelada.

         Não muito distante de onde eu estava, pude ver de perto o vulto o qual eu enxergara da balaustrada. Era uma senhora gorda e de expressão alegre que me cumprimentou com um jovial bom dia, ao que eu retribui com o mesmo entusiasmo. Perguntou-me se eu era morador do bairro e respondi-lhe que desde que eu usava fraudas. Ela disse também que sim e apontou-me onde morava, um prédio antigo erguido exatamente em frente à praia. Então eu lhe disse que ali morara uma antiga professora dos tempos do primário, ao que ela falou o seu nome, dizendo que a conhecia desde menina.

         Fulana de tal tinha sido minha professora dos meus 11 aos 15 anos e guardo dela boas recordações. Ela era, então, muito jovem, na flor da idade, uma dessas legítimas louras de farmácia com todos os seus atributos, muito atraente. Gostava de usar roupas justas com decotes que mal conseguiam conter os seios grandes, os quais eram legítimas criações da natureza, além de um punhado de brincos, colares e pulseiras coloridos que chacoalhavam harmoniosamente quando ela caminhava, pois o seu gracioso rebolado era como o de uma musa andando nas areias mornas da praia de Ipanema. Aquele seu jeito sensual chamava muito a atenção dos garotos da escola que agitavam-se quando ela passava pelo pátio e estes  expressavam a sua admiração de forma escondida por debaixo das calças, a ponto de causar-lhe dor e fazê-los andar de ladinho. Eu, também, a admirava muito e, em meus momentos de solidão e a abandono, tinha nela a minha fonte de inspiração...

         Como esta senhora parecia realmente ser uma antiga moradora do bairro, perguntei-lhe se conhecia Fulano de Tal, meu vizinho de sempre, ao que ela respondeu:

         — Lógico, muito meu amigo. – ela respondeu. Em seguida, acrescentou. – Ele morreu.

         — Realmente ele se foi. Que saudades que ele faz. – eu disse.

         — Sou muito amiga, também, de Fulaninho, seu filho.

         — Sim, Fulaninho...

         — Que coisa horrível, Fulano foi morrer justamente no dia do aniversário de Fulaninho. Isto traumatiza qualquer filho.

         — É verdade. – eu disse. – Mas ele vai superar isto, afinal ele é um homem de quase 70 anos.

         — Com tantos dias durante o ano, Fulano foi escolher morrer logo no dia do aniversário do filho! – ela disse com um pingo de indignação.

         — Infelizmente, nem sempre é possível se escolher o dia que se vai encontrar o Criador, não é mesmo?

         — Uma das coisas que Fulaninho mais gostava era fazer uma festa no dia do seu aniversário... Ele convidava todos os amigos, inclusive eu. Tinha tanta comida, bebida e música. Fulaninho sabia como dar uma festa... – ela disse meneando com a cabeça em tom de pesar.

         — Fazer o quê, né? – eu disse sem ter o que dizer.

         — Veja só, mas que situação: no dia que Fulano morreu, Fulaninho não sabia se comemorava o aniversário ou se enterrava o pai. – disse lamentando.

         — Realmente, está é uma dúvida cruel. – respondi perplexo.

Rio Vermelho, 3 de março de 2013.
        
         

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cadê o Romantismo?

As redes sociais buscam sempre se renovar inventando novas modas que vão revolucionando os costumes conforme a boa aceitação da freguesia, e não poderia ser o contrário, pois, terminariam matando de tédio os seus milhões de já entediados usuários. A bola da vez é um programinha que encoraja seus usuários a escolher, dentre os amigos de sua lista de contatos, aqueles com quem gostaria de fazer sexo. Muito criativo, não? Se, por uma coincidência, um dos amigos escolhidos pelo usuário também o tiver incluído em sua própria lista... Bingo! Habemus Transa! “Chega de papo furado e vamos ao que interessa”, diz o slogan do dito programa. Tudo isto, no mais perfeito sigilo e discrição.

         Como ferramenta para quem busca sexo unicamente pelo sexo, ela é bem mais prática que ir de carro até o centro pegar uma prostituta, – ou prostituto – além do que, o serviço é oferecido inteiramente grátis. Precisamos admitir que já chegamos ao final dos tempos, e que há uma banalização de tudo, desde a violência física até aquela que deveria ser a mais pura manifestação de romance entre dois seres humanos. Os parceiros de sexo foram coisificados, estão substituindo o encontro olho no olho pelo desejo através da tela do computador, basta “postar” uma boa foto.

         Onde foram parar as trocas de olhares cobiçosos, disfarçados em desinteresse, as palavras gentis e elogiosas para conquistar a simpatia da pessoa que é o objeto do desejo, a paquera, a descoberta maravilhosa do outro? Este tal programa de computador ignora que a importância da corte não reside apenas em conquistar a pessoa de nosso interesse, mas de saber praticar relações pessoais de forma civilizada e dentro dos princípios de uma ética, do contrário, estaremos banalizando muito algo que tem sido a maior expressão de romantismo do homem de todos os tempos, nos igualando aos quadrupedes.

Qual jovem habitante do mundo cibernauta saberá o prazer da experiência de ser cortejada e seduzida e de ouvir uma romântica declaração de amor como a que fiz, certa vez, a uma linda mulher e jamais fui respondido? Sim, porque este jogo real do amor nos ensina, também, a lidar com as frustrações da vida cotidiana, pois nem tudo na vida é obtido de maneira tão fácil e descartável como fazer sexo com pessoas escolhidas de uma lista de um programa de computador. Vivemos numa época em que só o que vale é ter sucesso na vida e esquecemos que aprendemos muito mais com as nossas falhas.

O sucesso estrondoso deste programa vem apenas confirmar a fragilidade a que chegou as relações amorosas e que estas se tornaram efêmeras e descartáveis. O romantismo está sumindo e adquirindo feições de uma peça empoeirada de museu que muitos jovens já desconhecem a importância em suas vidas. Em vez do ser humano agregar valores superiores com os avanços da modernidade, ele se desvaloriza cada vez mais.

Rio Vermelho, 24 de fevereiro de 2013.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sobre Peitos Duros e Fartos, Um Inconveniente Bigode e Um Ato de Bravura!

Ao ler numa revista semanal a matéria sobre a nova mania nacional dos seios grandes e fartos – nós, brasileiros, outrora, sempre tivemos profunda admiração pelo derrière avantajado, – lembrei que, no passado, era costume tê-los pequenos, como uma fruta delicada à espera de ser chupada. Muitas mulheres, então, as que tinham os seios fartos graças a um capricho da natureza, cuidava de reduzi-los para que estes deixassem de ser objeto de atenção e cobiça de olhares maldosos, e, porque era feio mulher de peito grande! Para onde iriam aquela porção que fora extirpada do corpo feminino, eu me perguntava intrigado, haveria algum banco de peitos que os doava para as outras desafortunadas que os desejavam maiores do que os que o Criador as proveu? Para o conhecimento da cara leitora, eu sempre fui uma pessoa discreta e modesta, cuja preferência sempre foi pelo tamanho pequeno e que caiba exatamente na palma de uma mão.

            Toda esta falação sobre mamas me fez recordar de minha infância e buscar naquele período uma explicação que justificasse a minha predileção pelos tamanhos pequenos e discretos. Eu, então, deveria ter pouco mais que doze anos de idade, quando na aula de educação física, dei um jeito na perna que passou a me incomodar na articulação à altura do quadril, dias depois. Fui me consultar com um ortopedista cujo sobrenome lembrava uma marca famosa de descarga fechaduras: Goldsmith.

            Depois da breve consulta, ele prescreveu-me sessões diárias de “forno” durante o período de duas semanas. O dito “forno” era uma estufa cujo formato assemelhava-se a um grande cilindro cortado ao meio e colocado sobre uma cama sobre a qual deitávamo-nos para que este fosse posicionado na altura da lesão que, ao ser ligado, emitia ondas de calor que prometiam livrar o paciente de seu tormento.

            Na primeira sessão, que começou logo no dia seguinte, fui atendido pela enfermeira, uma negra retinta do corpo forte e largo e, também, possuidora de um par de seios enormes que pareciam querer saltar fora do apertado uniforme. Entretanto, não foi o tamanho avantajado de suas mamas que me chamou a atenção, e sim um fino bigode acima de seus lábios, cuja fartura de pelos gritava aos olhos. Eu jamais vira em toda minha vida uma única mulher com um bigode igual, e aquilo me causou antipatia.

            As sessões de fisioterapia ocorriam depois da escola, que era no turno vespertino, e a noite já tinha caído quando eu chegava à clínica. Como eu era o último paciente do dia, só ficávamos eu e a enfermeira de bigodes. Na primeira sessão, ao entrar na pequena sala onde estava o “forno”, ela pediu-me gentilmente que tirasse as calças e deitasse na cama em decúbito dorsal. Em seguida, moveu a estufa até a altura do meu quadril e ligou-a, deixando-me sozinho cozinhando. A Sra. Bigodinho, como eu, gentilmente, a apelidei, controlava o tempo através de um pequeno aparelhinho redondo que lembrava um chaveiro e que o deixava sobre a cama ao meu lado. Quando terminava o tempo, este emitia um alto e estridente zumbido e ela, então, reaparecia para desligar a estufa para que eu me levantasse.

            Na terceira noite, ao final da sessão, algo surpreendente aconteceu. Eu estava vestindo as calças, de pé, ao lado da cama, quando a enfermeira aproximou-se, oferecendo ajuda. Apesar de minha recusa, ela foi insistente. Depois de ajudar-me, ela, então, foi empurrando o seu forte corpo contra o meu até me deixar preso entre ela e a parede, sufocando-me entre os seus enormes peitos e o sorriso de seu bigode o qual me causava aflição. “O garotinho gosta de mulher?” Eu, assustado com aquela novidade, apenas respondi: “Ainda não provei.” E, conseguindo desvencilhar-me dela, corri aturdido para a porta de saída, indo embora em disparada.

            Na sessão do dia seguinte, mal pude olhar para ela, achanado que estava, mas vi o suficiente para notar que ela usava um uniforme cujo decote mostrava até a altura do umbigo. Senti o estomago embrulhar Ela veio até a salinha e, num tom que era mais uma ordem que um pedido, mandou que eu tirasse as calças. De olho no meu cacete, que jazia acanhado por dentro da cueca, ela perguntou assim com o seu bigode: “Você tem namorada?” Respondi que não. “Você já usou essa coisinha numa mulher?” Não respondi.

Ao final da sessão, quando o aparelhinho zumbiu, ela voltou até a sala onde eu estava e me imprensou novamente com seu corpo grande e forte contra a parede, fazendo o meu rosto quase sumir entre os seus peitos. “O bebê não quer mamar? Mama um pouquinho na titia vai.” Disse aos sussurros esfregando os peitos grandes quase nus no meu rosto ainda virgem. Eu não sabia o que era pior, seus peitos em minha cara ou a visão tão próxima de seu bigode. “Não obrigado, eu tenho intolerância a lactose.” Respondi com o coração quase explodindo de medo e escapulindo de suas garras.

            Aquelas sessões de fisioterapia se, por um lado, estavam fazendo um bem à minha perna, por outro, me deixavam aflito a cada vez que tinha de reencontrar a Sra. Bigodinho. Na sessão do dia seguinte, eu já tinha uma estratégia preparada para me livrar dela. Antes de o aparelhinho zumbir para que ela viesse ao meu encontro, eu já tinha me vestido novamente e ido embora em disparada, para o seu desapontamento.

Mas ela era esperta demais, porque na sessão seguinte, ela não deixou ao meu lado o aparelhinho que contava o tempo, deixando-me totalmente desorientado. Deste modo, eu não podia me antecipar a ela. Quando a sessão terminou, ela apareceu na sala com um sorriso maligno em seus lábios por baixo daquele bigode ridículo. Mas eu já estava preparado para ela, depois de ela ter ligado o forno e saído, eu dei um jeito de pular fora da cama e vestir novamente as minhas calças, fazendo aquela sessão vestido. Quando ela retornou, ao mover o forno para que eu saísse e percebeu que eu estava de calças, ela deu um sorriso sínico. “Espertinho, heim?”. Ali, na beirada da cama, ela me bloqueou a passagem com seu corpo sólido e, sabendo qual era as suas intenções, corajosamente, enchi minhas duas mãos com seus peitos que eram maiores do que eu conseguia segurar, e os apertei com força sentindo a sua dureza até ela fechar os olhos e soltar um gemido em êxtase. Como se não bastasse, ela ainda foi aproximando a sua boca da minha com aquele bigode repulsivo. “O bigode não, assim já é demais!”, gritei para mim mesmo. Transformei os meus polegares e indicadores num alicate e apertei os seus mamilos com o que me restava de força até ela soltar um ganido voluptuoso e pular para trás. “Assim você me mata, menino!” Aproveitei a deixa e fugi daquele consultório o mais rápido que pude. Depois daquele dia, me dei por curado e me dei alta, nunca mais voltei àquela câmara de torturas! E esta é, provavelmente, a causa de minha predileção pelos peitos pequenos.

Chapada Diamantina, 9 de fevereiro de 2013.
           
            

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As Voltas Que Mundo Dá


Ontem, corri incansavelmente pelas óticas do shopping à procura de uma armação do meu agrado e, vencido pela frustração, fui buscar conforto numa livraria, onde comprei um romance para ler durante o feriado de Carnaval, o qual me refugiarei no bucolismo e nos banhos de cachoeira da Chapada. Livrarias são sempre ótimos lugares para encontrar casualmente amigos ou, quem sabe, fazer novas amizades. É como se o ambiente dos livros possuísse o mágico poder para despertar nas pessoas o seu lado mais interessante e civilizado. Foi quando tive a grata satisfação de reencontrar uma amiga que não via há anos e por quem já nutri uma secreta paixão.
Não consigo precisar quanto tempo faz que a vi pela primeira vez, mas lembro-me de como os nossos caminhos se cruzaram, em dois episódios que envolviam desilusão amorosa e sofrimento. Quando a vi pela primeira vez, fiquei encantado com a sua beleza, uma jovem mulher de formas clássicas, cabelos loiros geneticamente coerentes e feições finas e delicadas, dona de uma voz firme e nasalada, mas que eu só vim a ouvir quando conversamos finalmente na segunda vez que a vi.
Recordo-me, agora, como se fosse antes de ontem, a primeira vez que a vi, num pequeno bistrô especializado em cervejas importadas. O lugar estava quase entregue às moscas, só havia duas mesas ocupadas. Eu estava numa, sozinho, e, não muito distante, estava ela na outra, acompanhada de um rapaz; éramos três naquele lugar esquecido. De minha mesa, eu podia observar, sem ser percebido, o casal sentado, um de frente para o outro, falavam tão baixo que eu não podia ouvir palavra, um martírio para mim, que sou um grande prestador de atenção da conversa alheia, nada me ensina mais que a vida dos outros, entretanto vi o suficiente para entender do que se passava.
O rapaz entregou discretamente à moça um cartão, destes que se usa para ocasiões especiais como aniversários e felicitações. Ironicamente, aquela não me parecia ser uma situação para festejar. Reinava um clima desconfortável entre os dois. Ela, então, o leu como se não esperasse por outra coisa que não aquelas palavras contidas em seu interior. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela conteve o choro enquanto ele a reconfortava segurando-lhe a mão ternamente. Não fez escândalo ou uma cena. Eu testemunhava o fim de um relacionamento. Ao contrário de ele lhe falar, preferiu o uso da palavra escrita, escondendo-se por traz de um cartão barato. Ah!, como é difícil para alguns falar a outrem certas coisas que vão no coração. Eu observava o casal enternecido, percebia o estado daquela moça em sua forma mais fragilizada, podia imaginar o machucado do seu coração e do seu sofrimento. Tive vontade de ir até a sua mesa para tomá-la nos braços, reconfortá-la e dizer-lhe que a sua vida não acabara ali, que nem tudo estava perdido e que o mundo dava muitas voltas, seja lá o que isto significasse para aquela situação. Nunca apaguei da mente aquela cena tão discreta e tão forte.
Anos depois, a reencontrei novamente e logo a reconheci, embora ela realmente jamais soubesse quem eu fosse, foi quando trocamos palavras pela primeira vez. Uma amiga moderninha aniversariava e fomos festejar na boate gay da moda, escondida numa área decadente do centro da cidade. Eram épocas em que ser gay não era razão para se comemorar com fogos de artifício, como acontece hoje em dia. Ao nos encontrarmos na apertada pista de dança, foi como se ambos se sentissem na obrigação de dar satisfação ao outro por estarem ali naquele lugar ao qual não pertencíamos. Eu disse-lhe que comemorávamos o aniversário de uma amiga e ela explicou-me que estava namorando um colega de trabalho, mais tarde soube que era seu chefe, e que a empresa para a qual trabalhavam tinha regras rígidas sobre funcionários namorarem entre si e que isto era causa de demissão na certa. Por isso, os dois amantes frequentavam lugares alternativos onde a probabilidade de se esbarrarem com agentes da Santa Inquisição da poderosa empresa fosse nenhuma.
Não muitos dias depois, a reencontrei no café de uma livraria, desta vez, desacompanhada. Sentamos juntos numa mesa e ela abriu o seu coração para mim; tenho este dom que nunca quis ter, desperto nas pessoas o seu lado confessional: o romance com o chefe tinha terminado e ela simplesmente não aguentava o sofrimento de vê-lo todos os dias, pensava em pedir demissão do promissor emprego. Seus olhos encheram-se de lágrimas enquanto sufocava o choro, e fui eu quem, desta vez, segurei a sua mão para reconfortá-la.
Depois daquele encontro, conversamos algumas vezes ao telefone e nunca mais soube dela. Certa vez, muito tempo depois, fui surpreendido com um simpático cartão de Natal e um bilhetinho. Neste tempo todo que se passou, me perguntei por onde andava ela, a que outras decepções amorosas teria sobrevivido e se, sobretudo, ela era feliz agora. Ela me parecia uma dessas figuras femininas à procura constante do verdadeiro amor, – só existente nos romances açucarados que ela leu – e que mergulham cegamente de ponta cabeça numa paixão, mas nunca encontrava o príncipe encantado.
Nosso reencontro na livraria foi uma alegria. Ela estava mais velha e mais bela. O marido iria presenteá-la com um desses computadores portáteis caríssimos e ela estava lá escolhendo marca e modelo. Tinha filhos, muitos deles, estava feliz no casamento e realizada profissionalmente, o que mais podia desejar. Fiquei feliz por ela ter reescrito a sua historia com um final feliz. Não a invejei, mas desejei algum dia conhecer semelhante felicidade. A vida existe para isso, para que continuemos tentando, tentando mais uma vez, e de outra maneira, esforço sem o qual não vale a pena a existência, até dar finalmente certo.
Rio Vermelho, 28 de janeiro de 2013.