segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Feia de dar gosto.


Era feia como a necessidade. Mas ninguém jamais teve a ousadia de dizer-lhe pessoalmente, ou anonimamente por carta. E nem mesmo ela dispunha daquela qualidade invejável que as pessoas de bom senso costumam chamar de autocrítica, não pelo menos em quantidade o suficiente para ela se dar conta de sua inominável feiura. Entretanto, ela tinha coragem de sair de casa à luz do dia, e ia para o emprego num salão de beleza.

         Elindinalva não era nem um tiquinho bonita e nem mesmo o seu ridículo nome ajudava a melhorar as coisas, parecia também uma incoerência que uma pessoa tão desprovida de tais atributos físicos trabalhasse num lugar onde era um templo de veneração à beleza física. Mas tal concessão se explicava por sua inequívoca habilidade: ela tingia cabelos como ninguém. Não havia outra pessoa que soubesse tingi-los igual a ela e ainda assim fazê-los parecer tão naturais, não era por menos que ela era considerada o Michelangelo das tinturas, um verdadeiro gênio no assunto. A morena que entrasse pela porta do salão e sentasse em sua cadeira era transformada numa loura tão autêntica quanto a verdadeira, sendo uma façanha fazer uma distinção entre a de verdade e a sua criação.

         Mas por causa de seu infortúnio, Elindinalva nunca teve um único namorado, jamais foi beijada, nunca houve um homem, nem mesmo um desses que proclamam com ares de superioridade que beleza não é tudo, capaz de cortejá-la. No caso de Elindinalva, nem mesmo o mais benevolente dos corações masculinos era capaz de um ato de heroísmo. Ela era feia mesmo e ponto final. Sendo assim, o único amor que ela conhecia era o de pai e de mãe, e até estes se perguntavam como puderam ter trazido ao mundo uma criatura tão feia. Diante desses fatos, não era surpresa alguma que ao completar trinta anos Elindinalva ainda fosse moça.

         No entanto, contrariamente aos fatos, Elindinalva era uma mulher alegre e cheia de si, bem humorada e capaz de fazer piada de sua condição. O que lhe faltava de atributos físicos sobrava-lhe em simpatia e modos cativantes. Ela era capaz de encantar as pessoas e fazê-las gostar dela, em termo de amizade, para ser específico.

         Certo dia, um fato inesperado transformou a vida de Elindinalva para sempre. Ao atravessar a rua indo para o trabalho, teve o infortúnio de cruzar em seu caminho uma dessas dondocas cuja vida não poderia ser menos vazia se não houvesse os celulares e uma conversa frívola que lhe ocupasse o tempo enquanto dirigisse. O carro ia a alta velocidade e distraída não percebeu o sinal vermelho e nem a mulher que atravessava solitária à sua frente. Do encontrão, resultou em dor e sofrimento para a pobre Elindinalva que foi arremessada longe enquanto a outra, sem querer interromper o seu bate-papo e se atrasar para o horário no salão, seguiu em frente sem se dar ao trabalho de olhar para trás.

Mas por um milagre, Elindinalva sobreviveu ao trágico acidente, apesar dos machucados. Além das costumeiras fraturas e pele lacerada, seu rosto foi desfigurado, pelo mesmo foi isto que concluiu o paramédico ao deparar-se com aquela feiura, aquilo só podia ter sido causado pelo acidente. Para concertar aquele estrago, foi chamado um brilhante e vaidoso cirurgião plástico, ele mesmo tão belo como uma criação divina, que resolveu exibir-se recriando o rosto de Elindinalva à perfeição.

Quando ao cabo de uns dias tiraram-lhe as ataduras e colocam à sua frente um espelho, Elindinalva deu um grito de pavor ao deparar-se com aquela criatura cujas feições eram iguais à da boneca Barbie, ela não se reconhecia, estava totalmente desfigurada, quem era aquela coisa horrorosa no espelho? Depois de chorar convulsivamente e deixar-se sedar pelas enfermeiras condoídas com o seu sofrimento, ela dormiu feito um anjo. Quando despertou daquele sono induzido, descobriu que não fora tudo um pesadelo como imaginara. Mandou vir o exímio cirurgião e exigiu de volta o seu antigo rosto.

O habilidoso cirurgião aceitou o desafio e depois de uma demorada e delicada operação, protagonizou o milagre de devolver Elindinalva à sua feiura habitual. Entretanto, o tirar as ataduras, dias depois, o médico, acostumado a ter sob a mira de seu bisturi as mais belas e vaidosas mulheres, impressionou-se com a feiura natural de Elindinalva. Considerou-a algo sublime, mas que aos olhos do leigo e do acostumado ao gosto popular era invisível, uma beleza extraordinária, uma verdadeira Vênus da modernidade ao contrário. Elindinalva foi-se embora para casa satisfeita, levando consigo a sua feiura e deixando o cirurgião plástico com o seu rosto guardado na memória e sinceramente encantado.

Semanas depois, já completamente curada e de volta ao seu posto no salão de beleza, não sem tempo, pois a sua presença se fazia mister, uma vez que o prazo de validade de muitas louras, ruivas e acajus havia se expirado transformando a vida daquelas madames numa polvorosa crise de identidade. Em meio às tinturas e apliques, Elindinalva teve o seu serviço interrompido para receber um lindo buquê de rosas vermelhas com um convite do apaixonado cirurgião para um encontro.

Rio Vermelho, 10 de setembro de 2012.

         

domingo, 2 de setembro de 2012

NÃO FOI AINDA A SUA VEZ OU A ESTÓRIA DO MÉDICO QUE FICOU ALIVIADO.


Ao apalpar-se certa manhã durante o banho, sentiu um caroço. Podia ser apenas um fibroma sem importância, contemporizou; ou coisa bem pior... Teve um calafrio. Médico experiente que sempre foi, um caroço naquela região do corpo não devia ser negligenciado. Ficou angustiado ruminando aquela insensatez ao longo do dia e resolveu procurar a ajuda de um especialista imediatamente.

O seu colega só cobrou metade da consulta, ainda assim o outro achou caro, fazer o quê. Depois de algumas apalpadelas, o caríssimo especialista fez uma expressão grave, pediu um exame de imagem igualmente caro como a sua consulta, coisa de última geração. Aconselhou o paciente a não dirigir automóvel, operar máquinas perigosas, não praticar esportes e abster-se de luxúria até terem o resultado do exame.

O médico largou o carro no estacionamento e voltou de taxi para casa, no caminho, teve vontade de espirrar e, desesperado, temeu por consequências trágicas, não lembrava de o especialista ter restrito esternutações. Chegou ao lar sorumbático, todo borocoxô. Pensou com sigo mesmo, “tô fudido”.

De sua casa, marcou o tal exame. Só daqui a três dias, lhe disseram, não dava para ser nem em um ou em dois dias antes, e o pagamento era feito em espécie e sem conversa mole, que médico pagava o mesmo que os outros pacientes, ninguém tinha privilégios naquele lugar, fazer o quê.

Aquela semana foi a mais longa de toda sua vida, três dias pareceram trinta. Preocupado, o médico não foi trabalhar. Precisava organizar a sua vida antes que fosse tarde demais. Fez as contas de tudo quanto devia e separou o dinheiro, passou algumas procurações para a esposa e escreveu um sucinto testamento de próprio punho. E tanto ainda por fazer, lamentou-se. Sentiu-se impotente e injustiçado ante a grave moléstia; logo ele, um brilhante médico, considerado por todos um gênio, um médico desses de ressuscitar defunto de três dias. Como a sua vida lhe pareceu frágil, o homem que se achava um Deus agora se sentia como um reles mortal. Percebeu como era difícil e doloroso ser o paciente, agora que o seu destino estava nas mãos de outro jaleco branco, um homem insensível e de olhar duro.

Naqueles três longos dias que se sucederam, e que lhe pareceram uma eternidade, lembrou que já era tarde demais para ir ao Nepal como sempre sonhara. E nem nunca lera além do prefácio de “A Montanha Mágica” ou escrevera o seu próprio livro policial usando aquela ideia genial que certo dia teve. E a sua longa lista de mulheres com quem sonhava transar algum dia, estava cancelada. Suspirou. Lamentou pelos poemas de Drummond e Pessoa que nunca leu para a amada esposa, mãe de seus filhos pequenos, os mesmos filhos que não veria crescer, embora ele raramente os visse, pois ele vivia para o trabalho, para dar a sua família uma vida confortável sem que lhe faltasse nada.

Na véspera do exame, ele foi ver a amante e despediu-se com uma tarde de pecados inconfessáveis, deu-lhe de presente uma linda e cara joia que ela poderia vender, numa hora de aperto. Na manhã seguinte, no dia fatídico, amou a esposa antes do café da manhã como há muito não o fazia, fazendo-a até apaixonar-se de novo pelo marido e ponderar livrar-se do jovem amante. Beijou os pequeninos e foi enfrentar a ressonância magnética.

Ele que prescreveu tantas vezes a seus pacientes aquele exame, nunca imaginou como o mesmo fosse tão incômodo. Foi entupido de contraste pelas atendentes e esperou tantas horas quanto foi preciso até ser metido numa fina túnica e daí seguiu para dentro de um tubo que temeu ser o prelúdio de sua tumba. Enquanto era mantido imóvel dentro daquela terrível cápsula que examinava cada uma de suas células, apelou para a salvação divina ensaiando um mal engendrado “Pai Nosso que estás no céu”, mas terminava sempre se enrolando em algum lugar entre o “vem a nós o vosso reino” e o “pão nosso de cada dia”. Terminou por rezar o Hino do Bahia, cuja lembrança era mais vívida em sua memória por ser um devoto fervoroso e, com o qual esperava obter, de qualquer jeito, a mesma graça divina.

Quando o exame ficou pronto, o doutor correu levando-o para o seu caríssimo especialista cujo documento leu com uma expressão de constipação crônica. E sem dizer mais nada, o especialista colocou 16 gotas de uma mágica porção em meio copo de água que serviu ao seu paciente que o bebeu feito um cordeirinho, dando por encerrada a consulta. O famoso médico deixou o consultório com um sorriso de felicidade e, caminhando lépido em direção ao automóvel, já no pátio do estacionamento, soltou um sonoro e vigoroso peido que o fez sentir-se aliviado. Foi o efeito da porção mágica, tudo não passou de gases. Estava curado!

Rio Vermelho, 2 de setembro de 2012.