quinta-feira, 27 de março de 2014

Sobre a arte de tirar proveito da vaidade humana

Outro dia, uma moça bonita, minha conhecida, sorriu para mim. Notei que o seu sorriso, daquela vez, estava colorido por pequenas miçangas azuis colocadas entre um dente e outro. Achei aquilo curioso, deveria ser mais algum tipo de moda bizarra. Ora, se há quem espete piercings nas partes íntimas do corpo, porque não haveriam de adornar os dentes, que estão postos em local bem mais a vista, refleti. Entretanto, ela me explicou, estava fazendo um tratamento dentário e aquelas contas azuis era borrachas colocadas para abrir caminho para um futuro aparelho ortodôntico. Seu dentista lhe disse que ela precisava muito daquilo. Eu fiquei matutando como esta moça conseguiu sobreviver até os trinta anos de idade sem a ajuda de tal imprescindível aparelho.
         Este episódio me fez lembrar de outro de minha adolescência. Eu tinha uma professora cujos peitos eram enormes e formosos, verdadeiras maravilhas da natureza e fonte de inspiração dos garotos da turma. Certa vez, ela ausentou-se por motivo de saúde e quando retornou à classe, semanas depois, ela estava mudada, parecia que tinha encolhido de tamanho. Perdera aquele magnetismo que nos fazia prestar atenção à sua aula, ou melhor dizendo, ao seu decote. Ela submetera-se a uma cirurgia de redução dos seios. Uma grande perda, uma tristeza para nós meninos. Conheci outras mulheres que fizeram o mesmo. Eu ficava imaginando se haveria algum banco de peitos para onde aqueles pedaços de mamas extirpados eram doados para serem reaproveitados em mulheres menos afortunadas. Então, diminuir o tamanho dos seios era a moda do momento naquela época, uma invenção dos cirurgiões plásticos para aquecerem os negócios.
         Na mesma época, os ortopedistas descobriram que as meninas estavam fora do prumo e por isso as coitadas eram submetidas ao uso de umas armaduras de metal que as faziam ficar eretas e de pescoço duro. Na minha escola havia mais de uma dezena delas. Era o tempo da ditadura militar, aquelas as meninas estavam longe se serem consideradas subversivas, mas eram torturadas mesmo assim com o uso daquela coisa horrível.
         E quando não sobraram mais seios para serem reduzidos de tamanho, Deus criou as próteses de silicone para dar mais autoconfiança às mulheres cujos peitos eram pequenos. A vez delas tinha finalmente chegado. A moda era aumentá-los de acordo com o tamanho da falta de autoestima de cada freguesa, havia aquelas comedidas que precisavam deles só um pouquinho maior para caberem num modesto sutiã e outras exageradas que faziam o queixo sumir entre os peitos novos, a provocar nos homens pensamentos impróprios. Um dia eu vi um programa de TV no qual um cirurgião plástico, usando uma bandana colorida cobrindo a cabeça, similar às que o cantor Bel Marques costuma usar, explicava ao repórter que iria adicionar mais silicone aos peitos já super siliconados de sua paciente, uma bela dançarina stripper, como uma forma de conferir mais dramaticidade a eles. Eu não sei quanto à dramaticidade nenhuma, mas certamente os seus peitos ficaram enormes de tirar o fôlego. E sobre a bandana na cabeça, é sabido que a do Bel tem como propósito ocultar a sua extensa calvície, enquanto à do cirurgião, certamente, esta serve para esconder a sua completa falta de ética.
         Ah....(um suspiro) a vaidade humana é porta de entrada para toda espécie de artifício para acalentar a insatisfação das pessoas com a sua própria aparência. Os médicos, dentistas e outros profissionais da saúde conhecem muito bem esta fraqueza humana e as manipulam conforme a sua ambição, uma pena.

Rio Vermelho, 26 de março de 2014.
          

sábado, 15 de março de 2014

Visita à Cidade Grande

A filha recebeu a visita do pai que veio do interior e ficou muito satisfeita. Sentia saudades dele e de todo o resto da parentada que deixara para trás na pequena cidade natal. Raríssimas foram as vezes que seu Herculano se aventurou a sair da tranquila roça em C... para vir até Salvador. Isto foi para ele uma aventura tão grande como a do primeiro homem a pisar na lua.
         A filha foi recebê-lo com todo o carinho na rodoviária e lhe cobriu com mimos durante a sua estadia, lhe preparou os pratos favoritos que a mamãe fazia quando era viva. É claro que a galinha de cabidela feita com frango congelado de supermercado não se comparava à galinha pé duro que o pai criava no sítio. O sangue para o molho, este, então, foi uma complicação danada para consegui-lo, pois não era encontrado em nenhum supermercado ou mercearia. Pediu para a empregada arranjar no terreiro que ela frequentava e onde galinhas eram sacrificadas para se fazer trabalhos. Mas o pai reconheceu o esforço da filha e comeu com gosto e sem fazer cara feia.
         No dia seguinte, o velho resolveu sair sozinho e fazer um turismo pela cidade enquanto a filha trabalhava. Vestiu sua roupa domingueira e pôs um paletó, parecia um crente indo para o culto. Saindo do apartamento da filha, preferiu descer os três lances pela escada ao invés de se aventurar pelo elevador, que era um lugar muito pequeno e abafado. Caminhou até o ponto de ônibus mais próximo e viu um que acabara de encostar. O letreiro dizia o destino: Vale das Pedrinhas.
         Aquele nome trouxe bonitas recordações a seu Herculano. Um vale verde e bonito, um riozinho no meio correndo alegre com suas águas límpidas cheias de peixinhos. Pedrinhas nas margens. Não teve dúvidas, embarcou no ônibus rumo àquele lugar encantado.
         A viagem foi tão demorada que imaginou estar indo para outra cidade, mas logo foi tranquilizado pela moça ao lado que disse se tratar de um bairro de Salvador. O ônibus andava de vagar, parava a todo minuto sem ter chegado a um ponto, seguia uma fila infinita de automóveis. Quantos carros, lamentou seu Herculano. Finalmente chegou ao Vale das Pedrinhas e desceu no segundo ponto.
         Olhou em volta com o olhar triste. Viu pequenos casebres espremidos uns contra os outros subindo morro acima. Alguns eram tão toscos que pareciam que iam cair a qualquer instante. Umas construções tinham reboco e outras não, que feiura. O lixo se amontoava por todos os lados, o lugar fedia a mijo. À sua frente, havia um canal aberto ladeado por concreto onde, além de lixo jogado lá embaixo, passava uma água escura e fétida. Nem sinal do riozinho de águas límpidas e das pedrinhas encantadas que imaginara.
         Desolado, seu Herculano atravessou a rua para pegar o ônibus de volta. Enquanto aguardava, um garoto que tinha a idade de seu neto de quinze anos aproximou-se com o seu nariz escorrendo de catarro, mostrou-lhe um canivete e pediu-lhe a carteira e o celular. Nunca tive isso, disse seu Herculano e entregou-lhe a carteira com pouco dinheiro. O menino lhe lançou um olhar ameaçador e num gesto rápido lançou-se com o canivete contra o velho. Mas este foi mais rápido ainda, fez como se agarrava um novilho, deu um garrote no pescoço do menino. Com o outro braço tirou de sua mão a faca que fez desaparecer na água escura do canal. Sentindo-se seguro, soltou o garoto que saiu correndo até sumir pelos labirintos da favela praguejando, por esta ele não esperava.
         Que tristeza isso aqui, pensou seu Herculano embarcando no ônibus de volta para a casa da filha com uns trocados que lhe restara no bolso. Não tinha rio algum, nem vale e nem pedrinhas e as crianças agiam como adultos perigosos. Não entendia como a filha tinha gosto em morar na cidade grande.

Rio Vermelho, 15 de março de 2014.

terça-feira, 4 de março de 2014

O Novo Vizinho

As noites frescas do verão tornaram-se bucólicas nas últimas semanas aqui na Rua Ilhéus. Tenho a impressão de que voltei a morar no campo. (Não que eu tenha realmente morado no campo alguma vez, mas o fato de já ter passado um fim-de-semana inteiro numa fazenda, me faz sentir credenciado para me considerar um homem da natureza!) O motivo de tal atmosfera campesina, foi a súbita chegada de um novo vizinho. Um sapo fixou residência na boca-de-lobo que fica logo em frende à nossa casa. Coaxa a noite inteira sem parar, alto e forte como o timbre de um bem nutrido barítono. Ele começa o seu canto ribeirinho ao escurecer e quando eu levanto no meio da noite por qualquer motivo, lá está ele cortando o silêncio da madrugada com a sua balada que parece mais um lamento triste e solitário.
         Bonito, não? Imagine ter um sapo em baixo de sua janela coaxando a noite inteira sem parar, noite após noite. No início, isto foi curioso e encantador como qualquer novidade. A natureza invadiu a minha casa, me regozijei Até pensei em tirar uma foto ao lado do bichinho para pôr no Facebook. Entretanto, depois do terceiro dia consecutivo, o sapo tornou-se uma chateação ecológica, rasguei o meu diploma de homem do campo. Só no que eu pensava era transferir o domicílio do batráquio para a porta de outro vizinho bem longe daqui.
De onde veio esta criatura, eu me perguntei. No entanto, é fácil de entender porque isto está acontecendo. A nossa casa foi construída sobre um aterro onde antes existiu um charco, habitat natural dos sapos, nas margens do rio Lucaia, que fica a poucos metros de minha casa. Eu me lembro quando ainda se podia pescar ali quando eu era criança. Em dias de maré cheia, a água do mar invadia o rio e os pescadores jogavam tarrafas para capturarem minúsculos peixes de nome pititinga. Naquela época, o rio ainda não era o sombrio esgoto em que foi transformado nos dias de hoje e que, em breve, será um canal fechado com placas de concreto sobre o qual uma avenida ou área de lazer será construída. Finalmente, o moribundo rio, cujo fedor, nos lembra , noite e dia, de sua decadente existência, será sepultado. Tentar revitalizá-lo é uma solução impensável para o governo que despreza soluções ecológicas baratas em favor daquelas que doam para as suas campanhas eleitorais, as empreiteiras.
A verdade é que as cidades nascem e crescem em espaços onde antes dominava a natureza e, embora as edificações humanas ponham abaixo a vegetação deixando sem moradia os animais nativos da região, enxotando-os dali, algum dia, movidos por uma força invisível, eles voltam para reconquistar o seu antigo lar. É a natureza querendo de volta aquilo que lhe foi tomado.

Rio Vermelho, 3 de março de 2014.