domingo, 31 de dezembro de 2017

Nem tudo está perdido

Ontem – dia 14 – o bar de Ana estava em dia de festa. Era o dia do caruru anual oferecido a Santa Bárbara, a protetora contra os raios e tempestades, a Padroeira dos soldados, dos mineiros e de todos aqueles que trabalham com o fogo. Ana trabalha com o fogo, em frente do fogão. Ela é uma cozinheira de mão cheia que conquistou a clientela com a sua simpatia e seus pratos saborosos. Uma negra preta como carvão, do vozeirão alegre e bunda tão grande quanto o seu coração generoso. Sobre o nariz achatado, ela ostenta um par de óculos estiloso branco que se sobressai na negritude de sua pele lisa, e brilha em seu rosto juntamente com os dentes alvos como o branco do açúcar, doce como o seu sorriso.

A parte interior do bar de Ana é um lugar apertado e abafado, por isso as cadeiras e mesas ficam do lado de fora, num pequeno pátio a céu aberto e se estendem pela impessoalidade da calçada e da rua. O bar é uma daquelas construções que vão sendo feitas e recebendo melhorias aos pouquinhos ao longo dos anos, no improviso do dinheiro curto e sem conhecimento técnico. Uma viga de concreto muito baixa e que não precisava estar ali foi recentemente coberta de azulejos brancos por um pretendente de Ana, mas aquele serviço gratuito de pedreiro não foi suficiente para conquistar o seu coração desconfiado. Nos fundos do bar, um grande nicho iluminado com lâmpadas coloridas acolhe a imagem de Santa Bárbara de quase um metro de altura.

A clientela vai chegando e se cumprimentado, perguntam por fulano e cicrano, em sua maioria é gente da vizinhança que se conhece há tempo. Os frequentadores do bar são afeiçoados ao estabelecimento, pois ali eles se sentem como se estivessem em sua própria casa. É pra lá que vão depois de um dia longo de trabalho tomar uma cerveja geladinha para relaxar, é lá que assistem a partida de futebol do campeonato, num televisor ainda de tubo. É lá que marcam os seus encontros com amigos para levarem aquele papo. E quando aparece algum novato que não bate com o santo de Ana, ela passa a servi-lo com cerveja quente para que ele não volte mais, pois ali a arrogância e a impaciência são visitantes que não são bem-vindos. Uma placa de madeira pendurada à parede avisa: Traga a carne que o churrasco é de graça! É assim o clima do lugar. As poucas cadeiras e mesas não acomodam tantos convidados, então muitos ficam de pé do lado de fora formando grupinhos de conversa animada até a comida ser servida.

Já se foi o tempo dos carurus de preceito que os convidados só precisavam levar a fome e a gula, estes se tornaram raríssimos e muitos agora são apenas lenda. Para comer o caruru de Ana, o convidado tinha de aparecer com um quilo de alimento não perecível, mas este não era para abastecer a dispensa de Ana ou compensar-lhe pela despesa, que um quilo está longe de pagar todo aquele trabalho e despesas. Todo aquele alimento tinha um destino para uma causa nobre. Uma casa de acolhimento de crianças pobres do interior que vem a tratamento de câncer em Salvador foi adotada por Ana. O gesto pode ser uma gota de água no oceano, mas para aquelas crianças e suas famílias, aquele é um ato de amor ao próximo e de compaixão. Num país que vive o desencanto e espanto por seus líderes políticos, onde malas de conteúdo suspeito são carregadas às escondidas de um lado para o outro, onde se entra na carreira política para fazer carreira no ilícito, é um alento que à parte deste pântano que se tornou o ambiente político nacional, existam cidadãos que dão o exemplo que falta àqueles que jogaram no lixo o nosso voto. Obrigado, Ana, por me mostrar que nem tudo está perdido. Feliz ano novo a todos!


Rio Vermelho, 31 de dezembro de 2017.