sábado, 5 de fevereiro de 2011

Crônica de um pé de laranja lima

No terreno do fundo da casa dos Pereiras, como aliás em quase todas as pequenas propriedades daquela região, existe plantado um desajeitado pé de laranja lima cuja existência é tão antiga quanto alguém pode se lembrar. Quando os atuais ocupantes lá se estabeleceram há muitos anos, o pé de fruta já habitava o terreno como morador mais antigo e por uso capião. Quando a casa foi erguida, os novos moradores acharam simpático a ideia de tomar suco de laranja todas as manhãs no café, bastando para tanto apenas colher a fruta no próprio quintal, razão pela qual o pé foi mantido onde estava e a casa construída um pouco mais para frente do terreno. No entanto, como mais tarde todos descobriram, a árvore jamais deu coisa alguma além de sombra, para o desapontamento dos Pereiras e, por isso, ela caiu no completo esquecimento de todos. A única pessoa da família a perceber algo de especial naquela árvore estéril e desengonçada foi uma pequena menina de oito anos, a filha caçula do casal.
A casa dos Pereiras ficava num bonito vale descampado à beira de um riozinho onde famílias de camponeses cultivavam o suficiente para a sua sobrevivência e mais algum extra que era vendido na feira livre, como forma de reforçar o orçamento doméstico. Assim, visto de longe, o vale lembrava uma colcha de retalhos de variados tons de verde onde as plantações cresciam alimentadas pelo rio que corria discretamente mais adiante abrindo os campos sem pedir licença para chegar até ninguém sabe onde. Alguns poucos bois e vacas pastavam no capim à beira do rio que servia também de via para quem fosse de barco rio acima ou rio abaixo, sem pressa alguma, igual ao curso da vida naquele tranquilo e remoto vale. A vida seguia harmoniosa o seu curso naquele pequeno paraíso.
Sofia, a caçula, se afeiçoara àquela árvore desde pequena, de forma incompreensível aos olhos dos adultos. Mesmo antes de ela já poder andar com firmeza com suas perninhas tortas de principiante no ato de caminhar, ela já ensaiava subir em seus galhos quando era levada a brincar no quintal. Para satisfazê-la, a mãe a erguia até o galho mais ao seu alcance e a colocava lá sentadinha sem, no entanto, se desgrudar dela para que não caísse. E foi assim que a menina pegou intimidade com o pé de laranja lima e fez dele o seu amigo mais fraterno. Sofia subia na árvore com tanta destreza e no galho mais alto fazia um ninho amigo onde lá de cima observava o vale que se estendia placidamente lá em baixo, conversava com a planta, fazia brincadeiras infantis e lia livros de estórias infantis em voz alta para que o amigo compartilhasse daquela maravilha. Era brincando na árvore que ela passava os seus melhores momentos de criança quando estava em casa e estas seriam as suas melhores lembranças de sua infância.
No dia que os pais anunciaram sua intenção de por a infrutífera árvore abaixo, para em seu lugar plantar uma horta, a menina reagiu feito uma loba protegendo a cria, gritou e chorou para que não o fizessem, que o pé de laranja lima era seu melhor amigo. E não houve argumentação que a demovesse de sua insistência em manter a árvore. Os pais, surpresos com a reação tão protetora da menina, tiveram compaixão e resolveram adiar a ideia da horta por mais algum tempo. Crianças são assim, quando encasquetam com uma coisa é impossível tirar-lhes da cabeça. E, afinal, que mal tinha em ela gostar de uma árvore e de tê-la como uma amiga, até porque as árvores são realmente nossas amigas, até mesmo aquelas que não dão frutos quando se esperaria justamente o contrario.
O dia começara cinzento quando certo dia Sofia empoleirou-se em seu ninho no pé de laranja lima e não notou que pesadas nuvens se formaram vindo em direção ao vale e começaram a se precipitar em diminutas gotas de água. A menina estava tão entretida lendo um livro que não percebeu quando começou a chover de verdade. Tudo aconteceu muito rápido, a água simplesmente começou a jorrar do espaço em abundancia e Sofia resolveu então ficar onde estava até a tempestade passar, uma vez que as folhas da árvore impediam que ela se molhasse e, mesmo que quisesse ir correndo para dentro de casa, não poderia, pois, o caminho tinha se transformado num lamaceiro espesso e escorregadio. A água não parava de cair fazendo um estardalhaço e tornando o ar pesado e úmido e transformando o dia em breu. Lá embaixo no vale, o rio de águas serenas mostrou sua fúria até então desconhecida inundando tudo e arrastando o que encontrava pela frente. O vale foi se transformando num enorme lago à media que as águas subiam e não demorou muito até que ela chegasse até a porta da casa dos Pereiras e a invadisse, atormentando e expulsando os seus moradores. Os pais de Sofia correram para o quintal em meio ao aguaceiro e com a água batendo-lhes na altura dos joelhos gritando desesperados pela menina. Mas ela poupou-lhes de mais aflição gritando do alto do pé de laranja lima “subam aqui”. E como não havia mesmo outra alternativa, uma vez que a água engolia tudo diante de seus olhos impotentes, treparam os pais no pé de árvore e lá se refugiaram nos galhos mais altos e fortes. Lá em baixo, tudo fora tomado por uma água pesada e barrenta. A árvore que não resistiria a golpes de machado, enfrentou a inundação com firmeza graças à suas raízes que eram profundamente agarradas na alma da terra e o seu tronco era forte e viçoso, embora uma única fruta jamais brotara de suas flores. Não demorou muito até a água cobrir tudo levando rio abaixo o sonho daquele vale. Uma vaca passou arrastada pela correnteza das águas seguida de um automóvel e depois de um sofá. A paisagem se transformara num verdadeiro espetáculo trágico e belo, a natureza impondo-se à petulância do homem, o mundo parecia que iria se acabar. Mas os Pereiras estavam livres de serem levados pela enxurrada, protegidos pelo pé de laranja lima que lhes deu abrigo e conforto como se fossem eles de sua própria família. O medo uniu pai, mãe e filha que se abraçaram se protegendo mutuamente e ficaram assim até finalmente a chuva terminar de fazer o seu estrago e a água baixar.
Depois da chuva o que restou foi um cenário triste e desolador. A colcha de multitons de verde se dissolvera na água ou fora levada pela enxurrada. Mas nem tudo estava perdido, havia alguma esperança, um estéril e desajeitado pé de laranja lima resistira à força da natureza e salvara algumas almas.

Rio Vermelho, 31 de janeiro de 2011