domingo, 19 de junho de 2011

Sobre pedaços de mamão e banana... e a natureza.

Para D.G.M.C. com carinho.

Fui subitamente retirado de meu sono certa manhã, antes da hora de eu habitualmente me por de pé. Justamente neste que é o mais gostoso dos sonos, por que este é o intervalo entre a vigília e a consciência, o que nos faz sentir uma agradável sensação de preguiça e de desejo de prolongar aquele momento de bem estar até o infinito. Acordei porque alguém ousava dar batidas em algum lugar lá fora pelas cercanias. Eram como suaves marteladas sobre a madeira verde, mas ainda assim irritavam. Batia duas vezes e parava, e depois reiniciava com uma só batida de cada vez entre breves intervalos. Eram batidas irregulares que começavam e se interrompiam, para depois de alguns instantes reiniciarem novamente, alguém lá fora não sabia cravar um prego. Praguejei contra aquele miserável que resolvera trabalhar naquela preciosa hora da manhã. E como o renitente barulho parecia não ter fim, levantei-me, a contragosto, para ver o que se passava e me arrastei até a janela do meu quarto, que naquela noite tinha dormido fechada, o que contrariava o meu hábito de deixa-la escancarada. Eis que me surpreendi ao ver a figura do meu inconveniente martelador pousado no parapeito bicando o vidro da janela, um pica-pau. Sem saber o que fazer, uma vez que qualquer reclamação verbal seria inútil dada à falta de compreensão que um pica-pau tem da linguagem humana, mesmo que este fosse um poliglota, resolvi apenas abrir a janela para que ele não bicasse mais o vidro. Dei o assunto por resolvido e voltei para onde eu estava e tentei voltar ao sono merecido.

Acordo todas as manhãs com o gorjeio dos pássaros anunciado o início de um novo dia, apesar de eu morar no coração da cidade e não no meio do mato. Pássaros e outros pequenos seres do mundo animal visitam livremente a nossa casa e vem e se vão a toda hora e por isso me sinto um bem afortunado por tais visitas. Nunca lhes faltam pedaços de mamão ou banana espalhados pelo jardim para saudar tão ilustres visitantes, graças aos cuidados de minha mãe que faz assim desde que me entendo por gente. Meu pai, quando andava nesta terra, tinha o mesmo hábito e não me recordo se isto foi invenção dele ou dela, coisa de gente que nasceu e se criou em fazenda. Os passarinhos são os primeiros que chegam, fazem o seu banquete até se fartarem e depois alçam voo para outras vizinhanças, em seguida, aparecem bandos de saguins que vem trepando pelos fios elétricos e depois pulam para as árvores aqui de casa e vão descendo de galho em galho até alcançar os pedaços das frutas bicadas que depois de comer bastante vão se embora para que lagartixas e calangos tenham a sua vez, sim porque do homem até as diminutas formigas comem daquelas frutas. À noite, no silêncio e no breu entre os galhos das árvores e plantas, surgem silenciosamente morcegos frugívoros que põem fim ao que sobrou, nada é desperdiçado nesta cadeia alimentar formidável.

Eu nem bem pregara os olhos de novo e senti sobre o rosto algo caído do teto e ao olhar procurando pelo o que se passava lá em cima me surpreendi com o mesmo pica-pau da janela fazendo seu ninho entre as ferragens da luminária logo acima de minha cama. Não quis entrar numa polêmica com a ave e achei mais sensato apenas empurrar minha cama para o outro lado e tentar continuar o meu sono. Os bichos circulam livremente por fora e dentro de casa, no meu quarto entrou este e fez um ninho mas não foi o único. Na ausência de gente na cozinha, pela porta que dá para o quintal, entram pássaros e lagartixas procurando por migalhas; os saguins arriscam-se até o peitoril da janela onde alguém esqueceu um pedaço de fruta ou biscoito. Até os morcegos erram o caminho no meio da noite e voam janela a dentro sobre nossas cabeças na sala procurando pela porta de saída. Certa noite, vi maravilhado uma imensa coruja branca empoleirada num galho da árvore em frente à minha janela, que alçou voo com suas compridas asas ao me olhar olho no olho. Acho que isto é o mais bucólico que se pode conseguir ao se viver num centro urbano onde, aqui em casa, gente e bichos convivem harmoniosamente, desfrutando da presença do outro, nós humanos por termos o privilégio da companhia de criaturinhas de Deus e elas por terem quem as alimente com frutas frescas.

Aquela noite, dormi de janela aberta para não ser acordado para abri-la de madrugada pelo pica-pau. Mas quando me levantei, percebi que ele não aparecera. Não veio também no dia seguinte, o que me deixou preocupado com a sua súbita ausência, será que ele se ofendeu com alguma coisa ou foi o meu ronco que o afugentou? Ou será que ele mudou seu horário de trabalho? De uma coisa eu estava certo, ele não voltara mais, apesar de minha janela estar sempre aberta para ele e ele ser bem-vindo. Percebi que a construção de seu ninho tinha sido deixada para trás inacabada. Lamentei e fiquei matutando o que teria acontecido ao bichinho.

Quando eu venho do banho de mar, tenho por hábito de tirar o sal do corpo no quartinho lá dos fundos por que a água de lá cai deliciosamente forte e fria como uma bica e completa toda a experiência de uma agradável manhã na praia. Ao abrir a torneira, a água bateu forte sobre o piso fazendo um estardalhaço e provocando uma agitação sobre a minha cabeça. Olhei para cima e vi no buraco da fiação elétrica onde fica o bocal da luz um ninho habitado e em volta dele voava o famoso pica-pau. Imediatamente fechei a água e saí de lá para não assustar aquela pequena família. O mistério do sumiço do pica-pau estava desvendado, que foi construir o seu ninho onde houvesse mais privacidade. Enquanto escrevo estas mal traçadas linhas, no final de uma tarde de domingo depois da chuva, ouço um trinado ao longe... bem-te-vi, bem-te-vi!

Rio Vermelho, 19 de junho de 2011.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sobre germes e colheres de pau.

Assisti a uma cena curiosa. Um senhor lavava as mãos. Mas ele o fazia de forma tão diligente e cuidadosa que não pude deixar de prestar atenção naquele gesto que era mais que um corriqueiro cuidado com a higiene pessoal. Primeiro, ele tirou do pulso o pesado relógio de metal que pousou cuidadosamente sobre a bancada da pia e, em seguida, encheu com sabonete líquido as mãos que se uniram em concha debaixo da torneira que jorrava água em abundância. Esfregou uma mão contra a outra demoradamente e depois cada dedo vigorosamente para, em seguida, ensaboar os braços até a altura dos cotovelos e depois enxaguá-los. Ao final, exibiu uma expressão de satisfação ao se secar num daqueles secadores barulhentos de ar quente. Eu diria que aquele senhor seria um neurocirurgião prestes a entrar na sala de cirurgia para realizar o milagre de salvar mais uma vida, se aquela patética cena não tivesse acontecido num banheiro de um shopping center.

Como comprovei em seguida, aquele senhor assistira uma recente reportagem de TV sobre germes e que ensinava como lavar as mãos corretamente. Ele não lava as mãos de outra maneira desde então, contou-me satisfeito. Acho engraçado como a televisão tem certa influência sobre a vida das pessoas e como elas acreditam em tudo o que assistem. Ora, a humanidade chegou até aqui sem precisar gastar tanta água e sabão para manter as mãos limpas e nem por isso sumiu da face da terra. O mundo nunca esteve tão asséptico, não desde que a indústria de material de higiene e limpeza descobriu as temíveis bactérias. Todos estão preocupados em acabar com elas onde quer que elas estejam, e haja bactericidas e água!

Existe, hoje em dia, uma infinidade de produtos de limpeza domésticos oferecidos nas prateleiras de supermercados que prometem nos livrar dos incômodos germes e bactérias, desde o tradicional sabão até gels perfumados em embalagens sofisticadas ou sprays que vão caçá-los flutuando no ar. Nunca o aparato foi tão grande e variado para combater estes invisíveis inimigos e as pessoas estiveram tão preocupadas em se livrar deles, como se estes fossem um incômodo que realmente perturbasse o nosso sossego e minasse a saúde. Faltou ainda inventarem um germicida para o beijo na boca, sim porque esta expressão amorosa de troca de salivas deve, indubitavelmente, conter germes e outro para o sexo buco-genital, por razões óbvias, é claro. Imagine a cena nada sensual, os amantes, pouco antes de se beijarem, gargarejam o produto que é cuspido e depois tascam o beijo! E quanto à outra forma... bem, dá pra imaginar, né? Eu, particularmente acho que essas coisas são como o sarapatel, se lavar demais, perde a graça...

Eu fico me perguntando o porquê de tanta preocupação com as pobres das bactérias e germes – elas são a mesma pessoa com nomes diferentes? – e se são elas mesmo que nos preocupam tanto. Não me refiro às boas práticas com a higiene mas ao zelo excessivo que afeta nossa rotina e nos deixa tão preocupados. Sem nos darmos conta, tais preocupações vem nos tornando indivíduos assépticos que evitam de se tocar para não se contaminar, começamos a desenvolver nojo por tudo. Aonde iremos parar com tanta limpeza? Do que temos tanto medo, mesmo?

E nesta febre contra os temíveis germes e bactérias, um restaurante abriu suas portas com uma novidade bizarra. Armou todos os garçons com colheres de pau que serviam como extensão de suas mãos ao servir a clientela, pareciam o Edward Mãos de Tesouras. Deste modo, suas mãos infectadas com o inimigo não tocariam em nada. Fui lá almoçar, o lugar estava estalando de novo. Pedi um ‘peixe delícia’, que é aquele que vem acompanhado de bananas fritas por que eu gosto muito dessa combinação. Ao provar o peixe, percebi pelo sabor que era um de água doce. E para confirmar minhas suspeitas, perguntei ao garçom que me servira e passava batido por minha mesa. “Pirarucu?” apontei para o prato, ao que ele respondeu sem parar: “Tiraram, sim, senhor!”

Ao final da deliciosa refeição, fiz um elogio.

— A comida estava uma delícia!

— Obrigado senhor, vou repassar esta informação ao nosso chef.

— Fiquei impressionado com a habilidade de vocês para manusear tudo com estas colheres de pau, vocês são muito higiênicos, nunca vi igual.

— O patrão é muito exigente quanto à limpeza. Imagine o senhor que até temos um cordãozinho amarrado no zíper da calça para não tocá-lo com a mão ao ir ao banheiro.

— É mesmo? Hum... E como é que vocês fazem para colocar o pau de volta dentro da calça? - perguntei educadamente.

—Ah! Para isto, usamos as colheres de pau! — respondeu orgulhoso o homem.

Rio Vermelho, 8 de junho de 2011.