segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O traje faz o homem.

Não há sensação banal mais agradável que a de sentir-se asseado depois de um bom banho e depois vestir-se com roupas limpas e macias. Embora seja questionável que o modo como uma pessoa se vista diga realmente algo sobre ela, uma roupa pode, no entanto, alterar o seu ânimo e ajudá-la a adquirir autoestima.

Aqui no Rio Vermelho havia um “maluco”, assim como é comum a cada bairro possuir o seu, personagem quase invisível à nossa percepção e que ninguém sabe a sua origem ou a sua história. E para que este não fique totalmente no anonimato, colocam-lhe um apelido ou batizam-no com um nome qualquer. Certa vez ouvi chamar o nosso pela alcunha de “Coronel” e foi assim também que passei a denominá-lo desde então. Ele caminhava a esmo pelas ruas do bairro com passos arrastados e vagarosos como os de um ancião embora não devesse ter mais que cinquenta. O olhar era triste e perdido e a postura curva e cabisbaixa como se carregasse toda a vergonha do mundo. Ouviam-no resmungando o tempo todo estórias incompreensíveis de seu universo e que provavelmente só a ele faziam sentido. Mas a coisa que mais nos incomodava era vê-lo de roupas imundas e com o aspecto de quem carecia de um banho com muita água, sabão e uma esfrega, não só por medidas profiláticas, mas para também livrá-lo do terrível mal cheiro que para nós era motivo de desprezo.

Eis que certo dia, o meu vizinho JR teve uma luminosa ideia que a nenhum de nós jamais ocorrera. O “Coronel” bateu à sua porta pedindo-lhe água, como era costumeiro, e este o convidou a entrar conduzindo-o até os fundos da casa onde havia uma ducha, sabão perfumado, bucha e toalha à sua espera. Com um gesto elegante, JR convido-o a entrar no recinto e banhar-se à vontade, ao que ele, depois de um olhar desconfiado e de um instante de hesitação, deu um largo sorriso aceitando a oferta.

Enquanto o “Coronel” tomava o seu merecido banho, JR foi até ao armário procurar por uma roupa para doá-la ao visitante e de lá tirou seu antigo uniforme de gala do Tiro de Guerra, o qual não lhe valia mais de nada a não ser pelo valor sentimental. Depois de asseado, o “Coronel” vestiu o uniforme e quando se olhou no espelho de banho tomado, cabelo e barbas penteados assustou-se ao deparar com aquele novo homem que parecia uma verdadeira autoridade e terminou por encantar-se com a sua nova imagem. Agora sim ele parecia um coronel de verdade! Estufou o peito, empertigou-se, levantou o queixo e, altivo, saiu caminhando a passos largos e firmes como nunca se vira antes. O homem curvo e cabisbaixo que andava arrastando-se dissolvera-se na água do banho e em seu lugar surgiu um outro totalmente diferente que víamos marchando pelas ruas do Rio Vermelho comandando exércitos invisíveis.

Rio Vermelho, 25 de setembro de 2011.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Chega-se a Boipeba até de helicóptero, mas não é tão divertido assim.

Nada como um programinha alternativo bem longe de casa para variar a rotina e fazer-nos desejar voltar ao conforto e segurança do lar, para a nossa vidinha de sempre. Minha querida sobrinha entrou de férias e me convidou a passar uns dias em Boipeba em companhia de sua família, e como eu sempre quis mesmo conhecer o lugar, não pensei duas vezes antes de aceitar. O passeio também me ajudaria a curar feridas no coração, causadas involuntariamente por alguém que foi dançar o tango com um felizardo nas frias noites portenhas. Triste de mim que mal sei só dançar o twist.

Para quem nunca esteve ou ouviu falar de Boipeba, apenas digo que é uma paradisíaca ilha localizada na Costa do Dendê no litoral sul da Bahia, plantada no que ainda restou da Mata Atlântica, região de extensos manguezais e recifes de corais que a tornaram reserva ecológica. O lugar ainda não descobriu o débito em conta ou o cartão de crédito, mas já tem banda larga e luz elétrica. Suas ruas são estreitas e muitas delas já pavimentadas com pedras de cantaria, destinadas ao trânsito exclusivos de pedestres porque em Boipeba não existem automóveis, mas para se chegar aos vilarejos e praias vizinhas recorre-se ao transporte de tratores que rebocam jardineiras ou ao lombo de burro ou de cavalo ou, para quem tem disposição, vai de pé mesmo.

Mas chegar até a ilha de Boipeba é que é o grande barato da viagem, porque o lugar fica bem lá no fim do mundo onde o vento faz a curva, e o modo mais em conta de se chegar lá acontece que é também o mais divertido e que faz o passeio valer a pena, depois que pensamos sobre o assunto, já de volta ao conforto do lar. Então, no dia e hora combinados eu já estava pronto às seis da manhã; não vou dizer aqui que minha sobrinha me deixou esperando e só apareceu com a cara mais limpa do mundo depois das sete e meia. Mas mesmo assim chegamos ao Terminal da França a tempo de pegar a lancha seguinte para Mar Grande, na ilha de Itaparica. O que as pessoas chamam de lancha é, na verdade, uma sólida embarcação de madeira semelhante a um saveiro, movida por um potente motor capaz de carregar em uma só viagem umas duas centenas de almas. O gostoso da travessia é a rara chance de admirar Salvador vista pelo mar que é uma paisagem de encher os olhos. Como o mar estava agitado por causa das marés de agosto, a lancha jogava para os lados e, volta e meia, respingos da água salgada da Baía de Todos os Santos nos abençoava.

Em 35 minutos estávamos em Mar Grande e sem pegar congestionamentos! Uma agitação de “vans” disputava os passageiros que desembarcavam para levá-los a outras praias mais distantes da ilha de Itaparica, mas, para nossa surpresa, nenhuma delas tinha intenção alguma de ir até a cidade de Valença, que era o nosso destino seguinte neste périplo. A ‘baixa estação’, justificaram. A única opção que nos restava era ir de taxi, ou, melhor dizendo, um carro particular que clandestinamente faz o serviço, como nos explicou a autoridade local responsável por coibir tal prática e quem nos sugeriu fechar com um seu sobrinho que tinha um Fiat novinho em folha logo ali esperando na esquina. Ah, o que seria de nós se as leis fossem cumpridas neste justo e belo país... Aceitamos a oferta, mas como nem tudo é garapa, havia mais um perrengue que o dito ‘taxi’ só nos levaria até o terminal do ferry boat em Bom Despacho e de lá teríamos de seguir em outro para Valença a ser providenciado pelo nosso motorista, coisa da mais absoluta confiança, garantiu.

Então, devidamente instalados pegamos a estrada com destino a Bom Despacho que era ali perto, segundo nos informou o motorista, embora me pareceu ser bem mais adiante, mas não nos importamos pois, tudo era novidade, porque estávamos passeando e o tempo era nosso amigo.

Quando finalmente chegamos a Bom Despacho o nosso ‘taxi’ fez um sinal para outro colega à espreita, igualmente clandestino e que por isso foi nos encontrar mais adiante num posto de gasolina, longe dos olhos da fiscalização que esta não era tia de ninguém. Trocamos de ‘taxi’ e não me escapou aos olhos quando o nosso novo motorista deu furtivamente uma graninha para o colega que nos levou, alimentando a cadeia de comissões e propinas na qual havíamos nos metido. E lá fomos nós finalmente para Valença num segundo ‘taxi’, soprados por um vento gostoso que invadia o carro através da janela e foi quando aproveitamos todos para tirar um cochilo, excetuando o motorista, por razões óbvias. Hora e meia depois, chegamos na rodoviária de Valença onde teríamos que aguardar por um ônibus que nos levaria a um lugar chamado Turrinhas. Senti fome e saí investigando pelo pequeno terminal um lugar para comer e achei a única lanchonete disponível que tinha em sua vitrine uma variedade de salgados cuja aparência prometia fazer de nosso passeio um pesadelo, preferi arriscar num pacote de biscoitos. Deus é mais!

E não tardou muito o nosso ônibus chegou. Não me admirei ao ver que era um carro velho de aparência surrada e enlameado por uma terra vermelha que este era batizado com o pomposo nome de ‘Expresso Boipeba’. Pulamos para dentro e logo em seguida ele partiu valentemente transportando-nos ora pela estrada de rodagem e ora cortando pequenas cidades de prédios históricos até cair numa estrada de barro estreita e rica em buracos, mas formidavelmente ladeada pela mata fechada até parar em Turrinhas, que acontece de ser um pequeno e rústico terminal portuário. Todos saltaram do ônibus e me apressaram para andar mais rápido que o barco para Boipeba estava na eminência de partir, mas da distância onde eu estava eu não via embarcação alguma atracada e só quando cheguei ao deck e olhei para baixo vi que uma canoa de madeira com um motor de poupa na qual os passageiros tomavam cada um o seu lugar. Pulei para dentro bravamente lembrando que eu não sabia nadar e em seguida ela partiu conduzindo-nos pelo leito do Rio Grande para dentro da mata virgem com o seu motor tossindo fumaça e quebrando o silêncio da paisagem com o seu barulho renitente enquanto admirávamos os manguezais, crocodilos e hipopótamos – só para enriquecer a narrativa. Depois de quase uma hora ele virou no Rio do Inferno e logo avistamos Boipeba plantada na boca da barra nos aguardando finalmente. Chegamos!

Levamos cerca de seis horas de viagem, mas pode-se chegar à ilha de lancha rápida em menos de duas horas ou de helicóptero em apenas 45 minutos, mas te garanto que o passeio não é tão divertido.

Rio Vermelho, 15 de setembro de 2011.