domingo, 19 de fevereiro de 2012

E a igualdade caiu na folia!

O doutor Ubirajara dos Prazeres, ou simplesmente Bira, como era chamado por sua amada esposa e amigos mais chegados, era um respeitável pai de família, sujeito pacato e de natureza dócil. Um funcionário público exemplar da Procuradoria da Dívida Ativa do Município de Salvador há mais de quinze anos. E casado com dona Elvira, uma mulher que gostava de dar ordens e acostumada a ser obedecida, não apenas pelos serviçais domésticos, mas também pelos filhos e pelo fiel e obediente esposo, cujo temor à mulher era uma mancha em seu currículo, pois os amigos não admitiam como o homem que trazia o pão para a casa, pudesse ser tão submisso à esposa.

No entanto, Elvira tinha um bom coração e, por isso, permitia que o marido encontrasse os amigos às sextas-feiras depois do expediente na repartição, para a tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos. Mas ele que não se atrevesse a chegar bêbado em casa, pois, do contrário, iria passar a noite, de castigo, no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava que o marido brincasse, em companhia da turma de amigos de longas datas, a segunda e terça-feira de carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, localizado no Largo Dois de Julho. Apesar de sua natureza sossegada, existia no âmago de Bira um folião inveterado.

Era o ano da graça do Senhor de 1965 e os carnavais daquela época eram uma divertida brincadeira popular com fantasias de pierrôs e colombinas, serpentinas e confetes, pulados ao ritmo de românticas marchinhas carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca envelhecerem, e nos quais pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas e bailes noturnos até o raiar do sol. E não o poderoso e milionário empreendimento comercial que existe nos dias hoje, no qual o duro é apenas um mero expectador frustrado. Naquele ano, Bira contava os dias para cair na folia vestindo a fantasia de pirata que ele mesmo confeccionara a partir de uma camisa de mangas compridas velha e um chapéu de palha pintado de preto com um lenço vermelho amarrado em volta. Sua maior despesa naquela brincadeira, fora o investimento numa mamadeira infantil, na qual o rum Montilla foi despejado cuidadosamente com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E quando a noite de segunda-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro de Nazaré, onde residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia muita alegria e diversão sadia.

Mal entrou no pátio do clube, foi dominado pelo frenesi provocado pelas marchinhas tocadas pela tradicional e famosa Banda do Maestro Tabajara e Companhia. O pacato Bira então se transformou num homem faceiro e divertido, proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se aos amigos queridos e caiu na folia noite adentro.

Naquele baile os homens se fantasiavam alegremente, mas não usavam máscaras porque não era permitido, ao contrário das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Bira pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não as desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem cansar e se dar conta do tempo que parecia infinito. Quem via os dois naquele estado divertido pensaria que ambos eram par de longas datas. A moça tinha um requebrado e trejeitos que enfeitiçaram como nunca o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, diga-se de passagem, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente, fez gracejos com aquela moreninha da qual só pôde apenas ver os lábios grossos e gordurosos, pois, como todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara colorida e enfeitada. Bira era só alegria, nada da chatice de repartição pública ou de receber ordens da patroa em casa, aquela noite era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas, a magia do carnaval daquela noite começava a desvanecer-se. O sonho acabara. Na despedida, perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la algum dia, quem sabe em outros carnavais.

Do Clube dos Fantoches, desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra feito uns moleques, e foram até o Mercado Modelo para rebater a ressaca com o famoso mocotó de dona Lurdes, cozido magistralmente na apertada cozinha de seu modesto restaurante, em suas panelas sebentas. Lá pelas sete da manhã, ao chegar finalmente em casa vindo da esbornia, entrou nas pontas dos pés e deu de cara com outra, se não o seu algoz que o aguardava mal humorada.

― Até que fim chegou o pé-de-valsa! Então, dançaste com uma fulana de rosto coladinho a noite inteira, heim, filho da puta! – bradou Elvira.

― E como você sabe? – admitiu com coragem, ainda sob o efeito maléfico da bebedeira.

― Ela acabou de me contar. Você dançou foi com a empregada! – disse apontando em direção da cozinha.

Chapada Diamantina, 18 de fevereiro de 2012.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Um tímido de sorte.

A timidez e a insegurança que sempre afligiram J.R. mantinha-o distante das mulheres, razão pela qual ele era um homem triste e solitário. Ao se interessar por uma jovem, em busca do amor, a agradável sensação de gostar de alguém logo se transformava em frustração e amargura, pois lhe faltava coragem suficiente para aproximar-se da moça para cortejá-la com gentis palavras. Esta sua completa falta de habilidade para conquistar o sexo oposto, roubava-lhe a oportunidade de, pelo menos uma vez na vida, experimentar esta coisa de que tanto falam, que é amor.

Certo final de tarde de um bonito dia de verão, no caminho andando de todo dia para a padaria, J.R. passou em frente à agência de passagens do bairro e constatou encantado, ao olhar para o interior da loja através da vitrine, que trabalhava lá uma nova funcionária. Uma bela moça de formas curvilíneas no tronco e nos peitos, cuja pele era alva e os cabelos louros, destes que se vendem nas farmácias, em pó dentro de caixas. Vestia-se com roupas apertadas provocantes e era enfeitada com brincos e pulseiras cintilantes que alegremente lembravam uma árvore natalina fora da estação. Seu olhar era confiante e pelo jeito com mexia a boca sem parar, ele teve a impressão de que ela apreciava muito falar, embora de onde ele a contemplasse, lhe era impossível ouvir a sua voz, que ele a imaginava ser tão bela quanto a sua dona. J.R. logo se sentiu atraído por aquela jovem, pois, apesar de sua timidez e falta de autoconfiança, ele tinha uma tremenda queda por mulheres bonitas e parecia só se interessar por estas. Quem sabe se as suas pretensões fossem mais modestas, ele conseguisse conquistar o coração de uma jovem pobre de atributos físicos, uma vez que ele próprio não era nenhum príncipe.

Desde aquela memorável tarde, J.R. fazia questão de ele próprio ir comprar o pão de sua casa, além das outras vezes que inventava desculpa para passar em frente à loja de passagens só para ter a chance de admirar a bela moça. Às vezes ele parava em frente à vitrine fingindo estar lendo um cartaz de propaganda de pacotes de viagem, quando, na verdade, seus olhos não desviavam da jovem que ele comia com os olhos apaixonados. Não demorou muito, no entanto, ela percebeu que tinha um admirador que ficava lhe espiando com um olhar de peixe morto ou coisa parecida. No entanto, o acanhamento de J.R. era tal que ele nem mesmo jogava-lhe um sorriso ou aceno para marcar presença.

De início, a moça não lhe deu importância, afinal estava acostumada ao assédio masculino que, por sinal, lhe inchava de vaidade, mas como J.R. não ousava entrar na loja com desculpa alguma para lhe falar, aquele seu jeito insistente de ficar apenas olhando para ela começou a lhe dar nos nervos. Passou a irritar-se ao vê-lo do outro lado da vitrine, espionando-a sem dizer ou fazer coisa alguma. Até então, ela fingia não perceber nada, ignorava os seus olhares. Mas um dia perdeu a paciência e o encarou fazendo uma careta de dar medo e esbravejou ensandecida, mesmo sabendo que ele, do lado de fora da loja, jamais a escutaria. No entanto, aquele gesto hostil foi o suficiente para afugentar o medroso J.R., que resolveu não mais dirigir-lhe o olhar, tanto por receio, como por ter se dado conta de seu inconveniente comportamento.

J.R., no entanto, manteve a sua rotina diária de ir comprar o pão no final da tarde, mas não mais olhou em direção à loja de passagens e evitava passar em frente. No entanto, aquele seu sumiço não foi ignorado pela moça. Vez por outra ela desviava sua atenção do serviço para dar uma espiada para o lado de fora da vitrine sem, no entanto, encontrar mais os olhares do pobre J.R. Aquele súbito desaparecimento de seu admirador taciturno causou-lhe melancolia, pois, embora ela se incomodasse com o olhar de peixe morto do rapaz, passou a sentir falta daquela intromissão à sua privacidade, e procurava por seus olhos com ansiedade. Ela não conseguia mais se concentrar no trabalho porque ficava toda hora de olho no lado de fora da loja. Impaciente, ia até a porta da agência e olhava para os lados com a angústia de quem esperava o carteiro que demorava trazendo uma importante encomenda. Ela até tomou o cuidado de ir para o trabalho com roupas mais curtas e provocantes, caprichou no visual, mas nada disso serviu para atrair de volta o J.R. Que fim teria tido ele?

Para a sua surpresa, certo dia, J.R. reapareceu. Passou apressado em frente da agência em direção à padaria. Ao vê-lo, foi assaltada de alegria e excitamento. E como ela já percebera que daquele mato não saía coelho, resolveu que já era hora de ela mesma fazer alguma coisa a respeito. Foi até a padaria encontrá-lo para tirar satisfações sobre o seu sumiço, e usando as artimanhas que são próprias do gênero feminino, provocou um encontro com ele na fila do caixa.

— Você sumiu de lá da loja, não foi? Desistiu de viajar, foi? – perguntou com um sorriso matreiro.

J.R. surpreendeu-se com a voz em suas costas e olhou para trás para confirmar se era com ele que falavam.

— Hã? – foi a melhor resposta que conseguiu articular, surpreendido ao ver a moça que tanto cobiçou com os olhos.

— Nós estamos com uma promoção quase de graça para o Resort da Praia do Forte, tudo incluído. É pra casal.

— É? – enrubesceu.

A moça percebeu a timidez do rapaz. Homem tímido lhe deixava louca de assanhada, que ela gostava de acabar com aquele acanhamento, de corromper o pobre tímido em safado.

— Pois passe lá na loja mais tarde, viu. Venha tomar um cafezinho comigo. Senti a sua falta esses dias, viu. Olha, eu estou louca pra ir à Paria do Forte nesse pacote, mas não encontro companhia...

O que seria do mundo se não houvesse moças bondosas e extrovertidas, dispostas a salvar de sua solidão, os tímidos e inseguros como o nosso amigo J.R., afinal, mulher que esperasse muito por uma ousada atitude de sua parte, certamente morreria na praia.

Salvador, 7 de fevereiro de 2012.