domingo, 25 de dezembro de 2016

O Peru de Natal

Mia foi passar o Natal no belo sítio dos avós, acompanhada da mãe. Mas ela não estava tão contente com a novidade, apesar de que ela adorava os avós e o sítio era muito divertido. É que o pai era aviador, e na noite de Natal, ia atravessar o Atlântico num longo voo levando passageiros. Mas que graça tem em se passar a noite mais linda do ano dentro de um avião, ela se perguntava, inconformada por não estar perto do pai. Como toda criança, ela via magia na noite de Natal, sempre torcia para ganhar muitos presentes e por comer muitas delicias na ceia natalina.

Os avós ficaram radiantes com a ideia de ter pela primeira vez a neta na comemoração. E sabe como são os avós, não queriam perder a oportunidade de mimá-la de todas as formas. Sendo Mia a sua única neta, tinham poucas oportunidades de estarem juntos, separados que estavam pela longa distância.

Quando Mia chegou ao sítio, foi uma alegria para todos aquele reencontro, comemorado com um belo almoço com o prato preferido da filha, frango ao molho pardo, e a sobremesa que a menina mais gostava, o famoso creme de quatro camadas, receita da avó. Depois da confraternização, o avô foi com Mia selar dois cavalos para fazerem juntos um passeio, e na estrabaria uma surpresa a aguardava: um belo potro branco, presente do avô. Mia pulou de alegria ao ser apresentada ao animal, e ela adocicou o coração do velho com beijos e muitos obrigados.

— Ele já tem um nome, vovô?

— Não, querida. Está aguardando para que você lhe dê um.

— Pronto, vai se chamar Branca de Neve! ­ – proclamou orgulhosa da escolha.

O doce avô torceu o nariz para aquele incomum nome para um cavalo, e ainda mais sendo ele um macho, mas lançou à menina um sorriso de aprovação, para não desapontá-la.

No sítio, Mia sentia o que era a liberdade, podia andar para lá e para cá, sem os excessos de proteção dos pais, o campo não era um lugar cheio de medos como a cidade grande. E num de seus passeios investigativos pelo quintal da casa, ela deu de cara com um animal que nunca tinha visto.

— Que pássaro é este, seu Saturnino? – perguntou ao faz-tudo do sítio que alimentava o animal.

— Oxi, nunca viu? Este é um peru! – respondeu o rapaz surpreso.

Até então, Mia só conhecia aquela versão encontrada no freezer do supermercado, já pronta para ir ao forno. A visão da ave viva com a sua exótica cabeça e plumagem a encantou.

— Nossa, é assim que é um peru? – bateu palminhas de felicidade.

— E este é um dos grandes! – acrescentou Saturnino, orgulhoso de o ter alimentado ao longo do ano, para aquela celebração.

— É grande mesmo! – disse a menina impressionada. – Vou tirar uma foto agora mesmo.

Dito isto, foi correndo dentro de casa e voltou com a câmera. Fotografou o bicho de todos os ângulos, para mostrar aos amigos a sua grande aventura. Saturnino até registrou o momento em que ela ficou ao lado do animal, numa demonstração de bravura. E como não podia deixar de ser, batizou de Leopoldo a nobre ave.

Na manhã seguinte, o sol brilhava alegre anunciando uma bela véspera de Natal. Mia acordou feliz e saltitante, ansiosa para que não demorasse muito para a noite chegar para ela abrir seus presentes. Correu até a árvore de Natal para contar os seus presentes, que eram muitos. Da mãe, do pai, da avó, do avó, da madrinha, embrulhados em lindos papéis de presentes com fitas coloridas. Ela aproximou cada caixa do ouvido e a balançou para tentar adivinhar o que havia dentro. A que mais lhe despertou curiosidade foi uma grande em formato de cilindro, embrulhada em papel vermelho brilhante e com um grande laço de fita verde.

Depois do café, Mia foi procurar Leopoldo, o peru, para lhe desejar bom dia.

— Hoje ele vai cumprir a missão dele. – disse Saturnino com um sorriso enigmático ao ver a menina aproximar-se do peru. – Você quer ver como se mata um peru para a ceia de Natal?

O convite chocou Mia. Como se podia matar um animal tão belo? Mas depois ela pensou melhor, afinal, os perus congelados de supermercado já tinham sido iguais ao Leopoldo quando estavam vivos, e se ele não fizesse a parte dele, não haveria ceia de Natal à noite.

— Quero sim! – respondeu com inocente entusiasmo, a imagem de um belo peru assado na travessa lhe veio à mente.

— Venha ver. – disse Saturnino.

O animal, em sua inocência, deixou-se pegar por aquele que o tinha alimentado e cuidado desde então, ele não lhe faria nenhum mal. Saturnino, em seguida, encheu um copo de cachaça que foi fazendo o animal beber às colheradas.

— Para que isso, Saturnino?

— Isso é cachaça, minha querida. Ele não vai sentir dor e a carne vai ficar uma macia, você vai ver!

— Nossa, eu não sabia disso. – disse Mia atenta a cada gesto de Saturnino.

— Veja como ele está bebum! – ele disse soltando o animal que ao sentir-se livre das mãos de Saturnino andou cambaleando feito um bêbado.

— Nossa, ele está bêbado mesmo! – disse Mia dando palminhas de satisfação.

— Agora, é a parte que eu mais gosto! He, he, he – disse Saturnino capturando o animal novamente e levando-o em seus braços enquanto afagava a sua macia plumagem.

Ele carregou a ave até um tronco de árvore serrado e posto na posição vertical como um altar, preparado para aquele sacrifício natalino. E com uma mão, num gesto rápido, deitou-a sobre a parte plana, mantendo-a quieta segurando-a pela cabeça, enquanto com a outra mão desferia um golpe certeiro no pescoço com uma afiada machadinha que faiscava ao sol, surgida não se sabe de onde. A cabeça rolou para o chão sem que o peru tivesse tempo de gritar um “ai!”.  Mia, assustada, soltou um gritinho surpresa e levou as mãos até a boca ao ver o sangue do animal esguichar pelo pescoço feito uma mangueira de jardim. Depois, Saturnino soltou a ave no chão que andou para lá e para cá deixando um rastro de sangue até entregar-se aos fatos, deitando inerte sobre a grama.

— Sangue! Sangue! – gritou Mia correndo até onde estava o peru. – Ele não está se movendo, Saturnino.

— Ele morreu, minha filha. – disse Saturnino. – Agora vá para casa e deixe eu fazer o resto para entregá-lo para dona Ana assá-lo para a ceia de Natal.

Naquela noite, quando a avó pôs o peru diante do avô à mesa, não parecia que algum dia ele tivesse tido uma cabeça. Jazia numa travessa de porcelana branca numa resignação belamente corada, enfeitado com frutas de compota ao redor.

Era difícil dizer qual dos dois estava mais corado, Mia ou o peru, ambos tinham uma bela cor, ambos tinham a mesma aparência brilhante e o mesmo ar esforçado. Mas o corado de Mia puxava para o vermelho e o do peru para o tostado.

O avô pegou a faca e o garfo com um sorriso largo de satisfação e começou a destrinchar o peru.

— Quem vai querer o primeiro pedaço? – perguntou olhando solicito em volta da mesa?
Mia balançou a cabeça em sinal de negação, ficando ainda mais corada.

Rio Vermelho, 25 de dezembro de 2016.






sábado, 17 de dezembro de 2016

A Menina de Patins

Todos os dias de verão, um pouco antes do pôr do sol, como se aquilo já fosse um compromisso combinado, ela surgia na orla do Rio Vermelho, não se sabe vinda de onde. De patins, deslizava graciosamente pela via onde também passavam ciclistas, pedestres com cãezinhos e skatistas apressados. A sua aparência era sempre fresca como de quem houvesse recém saído do banho e posto a roupa de passeio, para aproveitar a última luz do dia. Nos ouvidos, um par de headphones a isolava do resto do mundo com algum tipo de música que a fazia balançar a cabeça e mover os quadris ritmicamente, tornando a cena de sua passagem num espetáculo encantador. Como ela era bela no frescor de sua jovem idade e o seu jeito inocente parecia ignorar aquele fato. O pequeno grupo de senhores que jogava conversa fora, sentados à balaustrada da praia, também naquele mesmo horário, interrompia a conversa para reverenciar a sua passagem. Era o único momento que eles deixavam de discutir receitas para curar as mazelas do país, para admirar poesia.

Naquela tarde, ela usava um vestidinho florido bem curto que esvoaçava a cada sopro salgado do mar, mas ela parecia não se incomodar. Ela estava alegre como de costume, e ouvia a sua música e dançava sobre as rodas sem se deixar perturbar. Como era bom ser jovem e andar de patins para lá e para cá sem se importar com nada mais além do caminho à sua frente.

No mirante da Paciência, ela fez uma pausa para admirar um espetáculo majestoso, o sol dissolver-se no horizonte manchando o céu de tons alaranjados. Como era bonito aquele momento que ela não se cansava de admirar e que enchia o seu peito de uma felicidade infantil, como se ela se comunicasse tão bem com a natureza como com os seu par de patins.

Ela não prestou atenção quando um rapaz jovem e forte se aproximou, e disse-lhe alguma coisa quase sussurrando. Só depois de sua insistência foi que ela tirou o fone do ouvido para escutá-lo. Ato seguido da entrega do aparelho de celular por onde ela ouvia a música e, em seguida, do par de patins. Suas pernas começaram a tremer logo em seguida e se formou uma poça de urina ao seu redor, enquanto o malfeitor corria atravessando o asfalto e sumindo pelo mundo afora. Ela teve impulso de gritar por socorro mas a emoção lhe roubou a voz, e quando finalmente ela conseguiu fazê-lo, foi socorrida por outros admiradores do crepúsculo, mas aí já era tarde demais.

Nunca mais se viu ela passeando ao pôr do sol. Entretanto, espalhou-se a notícia de que um rapaz de patins corria como o vento pela ciclovia, e pelo caminho tomava sorrateiramente da mão de passantes aparelhos de celular e bolsas, deixando um rastro de desespero ao sumir feito um raio entre os transeuntes.


Rio Vermelho, 16 de dezembro de 2016.