sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Invasão natalina.

Minha casa foi invadida por ratos, centenas deles! Bem, talvez não sejam tantos assim e eu tenha exagerado um pouco adicionando à conta algumas poucas dezenas e, talvez eles não passem de dois ou três, o que já é muito, mesmo assim, porque a simples ideia de tê-los sob o meu teto me desagrada bastante. Os que estão aqui, recuso a chama-los de “meus”, porque eles não me pertencem e se quer foram convidados a entrar, não são nenhum Stuart Little ou Mickey Mouse, são daquele tipo grande e abominável. Não me entendam mal, estou falando de ratos mesmo e não de seus congêneres que usam terno e gravata em Brasília.
Todo ano é a mesma aporrinhação, chega a época do Natal e eles aparecem para me atazanar a paciência. Eu fico imaginando que mensagem o Criador está tentando me passar ao me enviar ratos para minha casa nas proximidades do nascimento de Seu filho. Enquanto nenhuma interpretação bíblica me vem à cabeça, resolvo me livrar deles, porque sou incapaz de machucar um bichinho que seja. Faço-o no melhor estilo Agatha Christie, envenenando-os com arsênico. Esta visita inesperada de roedores me deixou estressado e passei o dia mal humorado por sua causa.
Naquela mesma manhã, fui à loja de venenos para ratos e, como sou um amante de animais, tive a preocupação de pedir ao vendedor um veneno natural ou orgânico e que não fizesse mal à saúde dos bichinhos. Voltando para casa, espalhei as iscas pela casa e fora dela e, por via das duvidas, arranjei um porrete de madeira para enfrentá-los cara a cara caso cruzassem o meu caminho. Eu sou contra a violência, mas a situação requeria medidas extremas. Tenho um profundo nojo a ratos; Hollywood pode transforma-los nos seres mais fofinhos e queridinhos nas telas, mas para mim, eles sempre serão sinônimo da Peste Negra, aquela devastadora pandemia que assolou a Europa no século XIV, levando quase 75 milhões de almas a sete palmos da terra. Precisa dizer mais? Feito isto, não me restou mais nada se não esperar pelos acontecimentos. Passei o dia chateado e irritado com aquilo e só teria paz em minha alma quando despachasse os terríveis roedores em caixões para o Jardim da Saudade.
Felizmente à noite eu tinha planejado uma programação agradável que me traria alguma paz e me transportaria para um mundo de beleza. Iria com minhas sobrinhas pequenas ao concerto especial de Natal da Orquestra Sinfônica da Bahia. As meninas estavam muito animadas, pois um mês antes eu as tinha levado pela primeira vez a um concerto de musica clássica da mesma orquestra e elas gostaram tanto que pediram par ir de novo. Não era para menos, tocaram a 5ª. Sinfonia de Beethoven que impressiona qualquer marinheiro de primeira viagem. Eu acho importante incentivar os bons hábitos nas crianças como ouvir musica clássica, ler bons livros e falar mal do governo. Minha sobrinha de cinco anos começou a ler o “Guerra e Paz” que a presenteei de aniversário e ela está adorando! Enfim, às 18:30 estávamos todos banhados, perfumados e prontos para ir para o TCA e para lá rumamos. Chegamos à bilheteria uma hora antes do espetáculo e fiquei satisfeito ao perceber que não havia nenhuma fila, embora o fato de não ter fila fosse uma coisa triste de se ver, em si tratando de um espetáculo de musica clássica, significava que não haviam muitos interessados. Ao pedir os bilhetes à moça da bilheteria, ela me respondeu enfadonha que a sessão estava esgotada. Como assim esgotada? Estou falando de um concerto da OSBA, eu e minha família viemos dar uma força ao pessoal. Tudo foi vendido, os 1.800 lugares estão todos ocupados, ela explicou.
Fiquei perplexo, mas um concerto da OSBA lotado? Precisava de um plano B para minimizar frustração das meninas. Agi com rapidez, vamos ver um filme. Lembrei que no Espaço Unibanco estava passando um daqueles filmes infantis do qual tanto se fala, então estava decidido, corremos para lá a tempo de pegarmos a próxima seção. Mas ao chegarmos à bilheteria do cinema, fomos informados de que a seção começara há cinco minutos. Mas nem o meu pedido à moça da bilheteria para que o filme fosse rebobinado até o início ou que o projetista fizesse um ‘pause’ até chegarmos à sala de exibição foram acolhidos com indiferença. Compramos os ingressos e corremos para a sala e qual não foi minha surpresa ao lá chegarmos que além de nós quatro haviam mais três gatos pingados na sessão. Aquilo lá tava parecendo, sim, um concerto da OSBA! Ao me acomodar em meu assento e finalmente colocar os olhos na tela, fiquei perplexo com a visão da figura de um enorme rato falante com sotaque britânico empunhando uma espada! Aquilo só poderia ser uma praga contra mim. Não gostei do filme.
Rio Vermelho, 21 de dezembro de 2010.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A gata serelepe e o cachorrinho

O fim de tarde contemplado da Praia de Santana é um espetáculo de maravilhar os olhos e acalentar o espírito, momento em que o sol despede-se do dia manchando o horizonte de tons alaranjados resplandecentes, ao sumir de vez no oceano. Para nossa satisfação, um por do sol jamais é igual ao outro, o que nos faz experimentar uma nova emoção a cada crepúsculo. Este final de tarde, lá estava eu mais uma vez para prestar homenagem ao astro-rei. O dia tinha sido um daqueles quentes de dezembro, mas àquela hora de fim de tarde, uma suave brisa vinda do oceano refrescava a praia indicando que a noite seria de temperatura menos severa.

Cheguei à Praia de Santana um pouco mais cedo, como de costume, e dei uma caminhada no calçadão que se estende ao longo da praia até a curva da Paciência e voltei para me sentar num banco de concreto em frente ao mar, próximo à quadra de esportes, para aguardar o grande momento. O ar cheirava a maresia e a algas. Não demorou muito e lá apareceu ela finalmente, trazendo o seu cachorrinho pela coleira, desfilando pelo calçadão toda serelepe. O que faz o por do sol na Praia de Santana tão agradável de se ver, é a chegada dessa menina desabrochando em mulher, passeando com o seu pequeno Poodle ao longo calçadão, verdadeira personificação das ninfas dos poemas gregos; menina-moça do corpo esbelto e aparência do frescor de uma flor recém colhida, cujo perfume exala juventude, e seu olhar perdido e distante não vê nada além do caminho à sua frente, ignorando a plateia que lhe assiste, talvez por insegurança da pouca idade ou autossuficiência. Para este passeio, se veste sempre com um vestidinho de cor alegre, sandálias de couro baixas e os cabelos largados que a tornam mais bela e malvada. Seu cachorrinho vai sempre à frente e parece uma composição de bolas de algodão de tamanhos variados, amaradas com um belo laço vermelho no alto da cabeça. Ela o segue logo atrás, com passos ligeirinhos de modelo desfilando na passarela.

Pois lá ia ela com o seu bonitinho nariz empinado, quando o destino pôs em seu caminho uma dessas sujeirinhas caninas desprezadas por um proprietário de cão relapso. Eu, sentado em meu banco admirando o seus passar, pude antever por fração de segundos o terrível acidente, mas não fui rápido o bastante para preveni-lo. Isso mesmo, ela pisou na merda. O seu mundo perfeito pareceu ruir, estragando o seu passeio vespertino e transformando-o num pequeno drama juvenil. Pude ver os músculos de sua linda face se contraírem e o brilho de uma lagrima surgir em seus olhos prestes a cair, segura apenas, senão, pelo seu orgulho ferido. Em seguida, a expressão de nojo fixou-se em seu semblante irradiando-se pelo resto do corpo. Como ela não vira aquela imundice? — repreendeu a si mesma, como se fosse dado a este tipo de mulher o direito de fazê-lo. E pela primeira vez ela olhou para os lados como um pedido de socorro e só então desta vez ela pareceu ser uma criatura indefesa e humana.

Reagi com instinto e meti a mão no bolso tirando de dentro um lenço de seda italiano estampado com arabescos monocromáticos, um capricho para limpar as lentes de meus óculos de armação Giorgio Armani, e, como um cavaleiro medieval, corri em seu socorro para livrar minha princesa de seus dragões imaginários. Ao aproximar-me, ela me pareceu menor vista de perto. Ofereci-lhe ajuda obsequioso, estendendo-lhe meu dispendioso lenço, mas ela pareceu não ter atinado minha intenção porque me estendeu o pezinho como um mudo pedido para que eu mesmo a livrasse daquele infortúnio. E como um humilde cervo agradecido por aquela oportunidade única de poder tocá-la, me ajoelhei diante dela e tirei delicadamente a sua sandália de couro deslizando suavemente a ponta de meus dedos sobre seu pezinho para, em seguida, limpar o dedinho sujo, o único. Só depois me ocupei da sandália e, em seguida, a pus de volta no pé que aguardava suspenso e estirado como se executasse um movimento de balé. Concluído o meu gesto de altruísmo, ela, então, me brindou com um meio sorriso e continuou o seu passeio sem desperdiçar comigo palavra, como de desconhecesse o significado da expressão "muito obrigada", com aquele seu andar e jeito de ser serelepe.

Rio Vermelho, 15 de dezembro de 2010.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sortilégio do amor

Meu vizinho J.R. está sofrendo de paixão aguda. Há semanas, anda amuado e suspirando pelos cantos com olhar de cão abandonado que dá dó. Ao cair da noite, ele senta-se na varanda de casa na companhia de uma garrafa de uísque ordinário e do mesmo velho disco de vinil de tangos que se repete na vitrola sem parar. Olhar solitário, contempla a esmo o firmamento e, ao pousar os olhos sobre a misteriosa lua, solta uivos feito um lobo ferido e chora copiosamente a perda do grande amor. Se há algo de irônico nesta tragédia romântica, na qual ele é o protagonista, é que ele caiu numa armadilha do amor, ao provar de seu próprio veneno.

Seu calvário teve início no momento em que ele conheceu uma moça de nome Lucinda, na aula de Tai Chi Chuan que frequentava duas vezes por semana ali no Quartel de Amaralina. A criatura era desprovida de dotes físicos que atraíssem para si a cobiça masculina, não era lá o tipo que os homens olham mais de uma vez, mas, para sua sorte, J.R. não era um cara exigente e nem ligava para estas coisas de beleza. Apesar de sua feiura natural, Lucinda era talentosa na arte de virar as cabeças masculinas, quem sabe ela possuísse algum poder mágico.

J.R. e Lucinda logo se tornaram amigos e cedo descobriram que tinham muito em comum, sabe como é, aquela velha estória. Não demorou muito até que aquela saudável camaradagem fosse parar ao pé da cama. E na cama continuou com a gula de quem teme que fazer sexo fosse sair de moda. Apesar daquele furor, nenhum dos dois jamais falava em assumir algum compromisso ou coisa do tipo, pelo menos era o que J.R. lia nas entrelinhas. Mas onde já se viu mulher sair dando por aí, sem querer laçar o fulano? Para a alegria de ambos, aquela farra lasciva virou um hábito semanal como ir à missa de domingo. Toda quinta feira, depois de bater o ponto no serviço, Lucinda vinha bater o outro ponto aqui na casa dele no Rio Vermelho. No começo, aquela novidade era recebida por J.R. com entusiasmo e um largo sorriso, afinal, quem não gostaria de uma visita daquelas? Ele abria a porta para ela, e ela entrava até a manhã do dia seguinte. A vida não poderia ser mais prazerosa.

Como tudo que é bom, um dia enche o saco, depois de algum tempo curtindo aquelas visitinhas semanais, no entanto, J.R. começou a ficar incomodado e a se perguntar onde aquela farra iria chegar, se é que deveria chegar a algum lugar. Não que ele conjecturasse assumir algum compromisso com a moça. Pelo contrário, o seu interesse por Lucinda esmoreceu depois que ele lhe desvendou os segredos. Então, ele passou a não demonstrar mais tanto entusiasmo por ela, como se o encanto pela moça tivesse virado uma nuvem que se dissipou pelo espaço. No entanto, ela pareceu não ter percebido tal mudança no comportamento do rapaz e, se o fez, não deu lá a importância devida, continuou comparecendo ao endereço aqui do Rio Vermelho, religiosamente. Por outro lado, mesmo estando enjoado de Lucinda, J.R. aceitava os seus favores de bom grado, afinal, que mal haveria se ambos eram adultos e estavam se divertindo? Contudo ele não fazia nenhum esforço para ocultar que não estava mais nem aí para ela. Tratava-a com indiferença e nunca a procurava, mas jamais era rude com ela ou se quer lhe dizia coisas ruins. Será que há coisa mais maligna que um tratamento indiferente e cordial? Talvez tal ambiguidade a levou a imaginar que J.R. apenas tivesse com constipação intestinal.

Finalmente, um dia o amor próprio da moça a fez despertar de sua cegueira, levando-a a perceber o descaso do amante. Não disse nada, sofreu resignada, calou o pranto. Lucinda, ferida em seu orgulho, então, resolveu vingar-se. Longe do que imaginou J.R., ela estava, sim, era muito apaixonada por ele. Homem é que é mesmo um bicho burro, não se apercebe de nada. Pois, como uma verdadeira bruxa, imagino que ela deve ter lhe preparado alguma porção mágica que secretamente pôs em sua comida; não duvido, também, que tenha lhe jogado um feitiço, eu mesmo já fui vitima desses sortilégios e sei que eles existem fora dos livros de contos de fadas. O fato é que Lucinda serviu a J.R. o prato frio da vingança, deixando-o em estado lastimável.

O plano de Lucinda teve início quando ela começou por não passar mais a noite sob os lençóis de J.R. Em seguida, reduziu a frequência de suas visitas até, finalmente, sumir do mapa. Ele, então, intrigado com aquela sua súbita mudança de atitude da generosa moça, passou a procurá-la, ao que ouvia de sua boca a mesma surrada e velha desculpa de que ela andava muito ocupada — será que esta ainda cola? Desejava muito ir vê-lo, mas estava tão ocupadinha, dizia. Sua vida era tão ocupada...

Ao invés de se dar por satisfeito com o sumiço da moça —não era isso, mesmo, que ele almejava? — J.R. teve uma reação contrária, ficou inquieto e passou a criar caraminholas na cabeça por causa do comportamento de Lucinda. Estes seu pensamentos nebulosos passaram a lhe atormentar as ideias e a lhe tirar o sossego. Lucinda passou a povoar os seus pensamentos dia e noite sem parar feito alguma moléstia. Todas as manhãs, ela lá já estava para lhe atormentar o juízo quando ele despertava, e, também, estava igualmente presente, antes de ele cair no sono à noite, quando ela lhe visitava em seus sonhos noturnos como uma assombração. Não havia um segundo do dia que ele não parasse de pensar naquela mulher diabólica, a coisa tinha virado uma verdadeira obsessão. Seja lá o que Lucinda aprontou para J.R., a coisa funcionou.

Lucinda sumiu para todo o sempre, que ela não estava blefando só para ganhar o amor de J.R. Provavelmente ela encontrou o homem dos seus sonhos, e agora o visitava todas as sextas-feiras ou outros dias santos da semana. Mas J.R. ainda tem esperança de que um dia ela venha bater à sua porta tal como fazia antigamente. Quem imaginou ver um final feliz de tudo isso, aviso que este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 3 de dezembro de 2010.