sexta-feira, 24 de março de 2017

Lágrimas e Maresia

Sob os resquícios da desbotada luz alaranjada que banhava o mirante da Paciência, a moça, solitária, sentada encolhida num banco de madeira em frente à imensidão de mar, olhava indiferente para a magnífica paisagem no horizonte, no entanto, sem conter a profusão de lágrimas que escorriam borrando a sua maquiagem. Numa mão, ela segurava um smartphone com o qual trocava mensagens de uma longa e dolorosa conversa. A cada nova mensagem recebida, ela se desfazia em mais choro e soluços. Seus polegares trabalhavam ágeis e rápidos, e suas mensagens eram respondidas na mesma prontidão, como se ela e o seu interlocutor estivessem envolvidos num frenético videogame.

Ela lia as mensagens movendo os lábios, sussurrando cada palavra para melhor assimila-las. Em seguida, soltava um gemido e levava a mão até a boca, que se retorcia e ficava feia como a de uma velha, para sufocar o choro. A sua expressão de sofrimento contrastava com aquela magnífica tarde de final de verão. Em sinal de respeito, ou talvez por pura indiferença, as poucas pessoas que desfrutavam da tranquilidade daquele local e de sua vista panorâmica, fingiam que não percebiam nada.

Depois de quase uma hora naquele suplicio, por fim, as limitações da própria tecnologia deram um basta àquela discussão, quando o aparelho da moça ficou mudo, graças ao esgotamento de sua bateria. Ela ainda teve o ímpeto de agitá-lo, assim como fazem as pessoas  com um frasco de ketchup, na vã tentativa de aproveitarem até a sua última gota.

Ela resignou-se com a interrupção e olhou desesperançada para o oceano à sua frente, já indefinido pelo começo de escuridão. Naquele momento, um imenso transatlântico cruzava solitário a linha do horizonte, pontilhado de luzes cintilantes. Ela o observou com uma expressão triste e desejou estar a bordo, fugindo daquela angústia em seu coração. Faria qualquer coisa para voltar no tempo, para jamais ter se envolvido com aquele a quem amava e a fazia sofrer. Palavras duras foram ditas, verdades expostas, acusações foram trocadas numa onda sem fim de ressentimento. O relacionamento, em fim, tinha se acabado. Ela parecia ter envelhecido.

Dois dias depois, a mesma jovem reapareceu no mirante. Parecia que tinha mudado, apagado de suas lembranças aquele triste final de tarde. Havia um brilho em seus olhos e sua expressão era serena, parecia mais jovem. A maquiagem no rosto estava impecável. Desta vez, até contemplou o pôr do sol com uma expressão de admiração e contentamento, sentiu prazer em respirar aquele ar impregnado pelo cheiro de maresia e algas marinhas. Minutos depois, ela percebeu a aproximação de um vulto pelo canto do olho. E ao olhar para o lado, deu um sorriso aberto e levantou-se do banco para ir se aninhar nos braços estendidos do homem alto e forte que se aproximava. Se houve lágrimas, desta vez foram de felicidade.

Rio Vermelho, 23 de março de 2017.

sexta-feira, 17 de março de 2017

O Vencedor

À entrada da estação da Lapa, o vendedor segurava com firmeza num dos braços uma caixa de papelão aberta, onde podia se ver pequenos cilindros que chamavam a atenção pelo seu multicolorido alegre e chamativo. Com o outro, ele acenava com insistência aos passantes para se aproximarem. O homem era um tipo parrudo e acima do peso, que se esforçava para transmitir confiabilidade ao seu anuncio, ao contrário de sua aparência, que não inspirava tanta confiança. Vestia uma bermuda listrada por baixo da barriga proeminente e mal cabia na camisa de malha branca estilo machão. Nos pés, sandálias havaianas desgastadas. “Batons! Batons! De todas as cores e excelente qualidade!”, ele apregoava. Sua voz era vigorosa como a de um barítono e não podia deixar de ser percebida. Alguns passantes olhavam-no com indiferença, outros seguiam adiante como se ele fosse um ser invisível.

Não muito distante, outro vendedor se esforçava para dar saída aos chips de celular comprados pela metade do preço na operadora. Este também falava alto e parecia igualmente mal sucedido. Mas as minguadas vendas não esmoreciam aquela parelha de intrépidos homens do comércio ambulante, ao contrário, uma poderosa energia interior movia-os em sua luta pela sobrevivência mantendo-os motivados.

— “Qui cô qué”? – o vendedor de batons perguntou à moça que demonstrou interesse, com uma expressão de insólita dúvida.

— “Caqué cô”. – ela respondeu olhando perdida para a grande variedade de escolhas à sua frente.
A moça tirou da caixa aleatoriamente um batom rosa.

— Ah! Você vai ficar linda com essa cô! – exclamou o vendedor muito convincente. Ele não era nenhum galã, mas sabia adoçar as palavras ao paladar feminino. – Essa é a cô a que eu vendo mais, e é a ultima unidade que eu tenho. Pode levar que você vai gostar e vai fazer sucesso!

Concluída a pequena transação comercial, o vendedor respirou mais confiante. Deu pela primeira vez um sorriso verdadeiro. Fazia horas que estava de pé ali naquele ponto, castigado pelo calor que não lhe dava uma folga. Naquela manhã, ninguém queria saber de comprar batons. O seu olhar cansado só se iluminava quando fazia uma venda aqui e outra ali. Mas ele nunca pensava em desistir, vender era difícil mesmo, qualquer coisa é difícil nessa vida, ele repetia para si mesmo, como para se lembrar de que a dificuldade estava na própria natureza da existência. Ele contabilizava mentalmente quanto ainda precisava ganhar, para passar na mercearia. Faltava ainda muito, mas o dia ainda não tinha acabado.

— Tem lilás? – perguntou a jovem vestida com o uniforme escolar.

— Olha ele aqui, ó! – respondeu o vendedor na sequência, entregando-lhe o batom. – Você vai ficar linda com essa cô! Essa é a cô que eu vendo mais, e é a ultima unidade que eu tenho. Pode levar que você vai gostar e vai fazer sucesso!

A estudante pechinchou, levou um pequeno desconto, com um sorriso de satisfação. O vendedor também sentia que também tinha ganhado, ao proporcionar à sua freguesia aquela pequena sensação de vitória.

“Vamos, vamos, minha agente! Já está quase acabando!”, gritou ele com a caixa ainda pela metade, já no meio da tarde.

— Eu quero um preto. – disse a moça com uma criança no colo e outra visivelmente já a caminho na barriga pontuda.

— Olha ele aqui, ó. – respondeu o vendedor entregando-lhe o batom com um sorriso. – Você vai ficar linda com essa cô! Essa é a cô que eu vendo mais, e é a ultima unidade que eu tenho. Pode levar que você vai gostar e vai fazer sucesso!


Rio Vermelho, 16 de março de 2017.