quinta-feira, 26 de maio de 2016

Um Pouquinho Não Tira o Pedaço

Letícia se sentia amargamente só nos últimos dias. Nenhuma alma para conversar, trocar uma ideia. E ela, que era conversadora, se sentia no pior dos mundos. O fato é que lhe roubaram o smartphone, e isto foi pior do que se lhe tivessem levado a vida. Se o miserável do assaltante tivesse lhe metido uma bala no coração, teria lhe poupado de tanto sofrimento. Cheia de dívidas, não tinha como comprar outro aparelho tão cedo, nem um daqueles antiquados que só servem para fazer ligações telefônicas.

Milagres não existem, ou pelo menos daqueles em que cego começa a enxergar e aleijado se levanta da cadeira de rodas. Letícia acreditava em Deus, mas só teve certeza de que ele ouvira as suas preces depois que a vizinha bateu à sua porta. Tinha um telefonema urgente para ela. O investigador Queiroz, aquele mesmo que lhe comia com os olhos enquanto ela prestava a queixa do assalto, pedia que ela comparecesse à sétima naquela tarde. Ele não quis dizer o motivo por telefone, mas uma centelha de esperança acendeu no coração da moça. O mais que ela queria no mundo era ter de volta o seu smartphone já que não podia comprar um novo.

 Letícia se aprontou para ir à delegacia. Por precaução, pôs um vestido que tinha um decote capaz de lhe mostrar até o umbigo. Não que ela tivesse de intenções com o investigador, muito pelo contrário, ela detestava homens como ele que não abotoavam a camisa direito e deixavam o peito peludo à mostra, aquilo lhe parecia um sinal de desleixo e vulgaridade. Ela também não gostou dos olhares indiscretos do investigador e do seu sorriso sínico e maldoso. Mas se ela colocara um vestido tão chamativo, era porque ela estava fazendo um esforço para ser simpática com o homem que poderia trazer o seu smartphone de volta.

— O senhor queria falar comigo? – perguntou Letícia aproximando-se do balcão da delegacia.

— Venha aqui até à minha sala. – ele ordenou com um sorriso enigmático no canto da boca. Seus olhos colaram nos peitos fartos da moça que pareciam querer saltar fora do decote generoso.

— E porque não podemos conversar aqui mesmo no balcão? – ela perguntou desconfiada, percebendo que acertara na escolha do vestido.

— É uma conversa particular sobre o seu caso. Venha logo que estou muito ocupado.

Letícia o seguiu pelo estreito labirinto de corredores até ele abrir uma porta ao lado de um bebedouro. Ela sentiu vontade de beber água, mas preferiu matar a sua sede depois quando estivesse de posse de seu aparelho, talvez até comemorasse com uma cerveja. Era uma sala apertada e mal iluminada onde só cabia uma mesa com computador e duas cadeiras além daquela onde sentava o investigador. O homem se sentou e lhe indicou com a mão uma das cadeiras. Ele ficou em silêncio observando aquela mulher à sua frente que não era nem bonita e nem feia, mas que tinha uma atitude de confiança. Seu corpo era formoso e havia em seu olhar uma expressão desafiadora que o instigava. O jeito safado de ele a escrutinar a incomodava, apesar de ela já estar acostumada àqueles olhares maliciosos masculinos, não se importava desde que o homem lhe interessasse. No entanto, ela não nutria nenhuma simpatia por aquele ali, ele era um coroa com uma barba de uma semana por fazer.

— Não vai sentar? – ele indicou mais uma vez a cadeira com uma expressão séria.
Letícia não teve alternativa a não ser puxar a cadeira e sentar-se.

— E então? – ela provocou o policial que não dizia nada e só ficava olhando para ela daquele jeito de peixe morto.

— Não encontramos o seu celular, quem o roubou deve ter passado adiante no mesmo dia. – ele disse finalmente.

— E o senhor me chamou até aqui só pra me dizer isto? Para falar a verdade, eu não tinha nenhuma esperança que a policia se desse ao trabalho. Com tantos crimes horríveis acontecendo por aí, quem é que vai dar importância a um celular, não é mesmo?

— Mas nem tudo está perdido. – ele disse abrindo a gaveta de sua mesa. – Eu tenho este aqui que encontramos com um meliante e ninguém nunca prestou queixa.

Ele mostrou o aparelho novinho em folha. Era um desses que custavam os olhos da cara, coisa de grã-fino, mesmo. Os olhos de Letícia brilharam, mas logo ela caiu na real.

— Não tenho grana nenhuma. – ela avisou.

— E quem falou em dinheiro? – o inspetor pôs o aparelho sobre a mesa para que Letícia o cobiçasse.
Letícia olhou para o policial desconfiada. Ele esbouçara aquele sorriso maliciosos que já dizia tudo.

— Vai ser um presente. – o policial disse.

— É ruim, hein? Ninguém dá presente assim sem querer algo em troca, ainda mais que nem te conheço.

— A gente sai, mais tarde, tomamos umas cervejas...

— Viu você, tu tá mal intencionado. Tá enganado, não vou pra cama com estranhos em troca de um smartphone.

— Então, a gente toma essa cerveja pra se conhecer melhor, aí não vou ser mais um estranho. – ele deu uma piscadela para ela.

— Não vem com essa...

— Bora, só um pouquinho... Você vai gostar muito e ninguém vai ficar sabendo, vai ser segredo nosso. Faz, assim, vai pra casa e pensa no assunto. Às 19 horas eu te espero na Dinha, se você aparecer eu vou ficar muito feliz e você não se arrependerá.

Letícia voltou para casa indignada. Ficou o resto do dia pensando naquela oferta descarada do investigador. Quis contar para as amigas, passar um zap para o grupo. Mas não tinha como. Ficou inquieta e deprimida. Precisava conversar com alguém, tirar aquele peso do peito. Era uma crise de abstinência de smartphone que lhe deixava louca. E aquele aparelho parecia novo em folha... Só um pouquinho, o canalha disse. Bem, ela pensou sem tirar o aparelho da mente, um pouquinho não vai tirar o meu pedaço.

Rio Vermelho, 24 de maio de 2016.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Que Passem os Velhos

O sol ardia inclemente numa manhã qualquer da semana. Ao longo da avenida que margeia o litoral, os automóveis com seus possantes motores seguiam como em procissão, um após o outro em marcha lenta quase parando. Do lado de fora o calor era de tirar o folego, mas dentro dos carros era frio e acolhedor. Ouvia-se musica ali dentro ou se conversava ao celular, qualquer coisa valia para passar o tempo.

Fazendo o caminho oposto no passeio que serpenteava ao lado do asfalto, ninguém reparou na figura frágil do octogenário que caminhava se apoiando num andador tão tosco quanto ele próprio. Ele vinha a passos de tartaruga e parava de vez em quando para retomar o folego.  Ele estava tão absorto em sua jornada, talvez muito longa por causa de seus curtos e lentos passos, que mal tomou conhecimento do congestionamento de carros ao seu lado.

O velho seguia o seu caminho solitário enquanto de pé sobre as pedras na praia, pescadores da hora jogavam o anzol na maré agitada de abril na esperança de levar uma guaricema ou sardinhas para o almoço. Mais adiante no mesmo passeio por onde ia o velho, uma equipe de quatro operários vestidos de chamativos macacões laranjas lavavam o piso com água e esfregavam com escovões. Entre o velho e os homens de laranja ainda havia muitos metros a serem conquistados pelo ancião, fora estes personagens, o passeio era um deserto de pessoas.

Para onde ia o velho àquela hora, não se sabia. Apenas podia-se especular que ele ia ou voltava de algum lugar. Seja qual fosse o seu destino, ele parecia determinado a chegar lá debaixo daquele sol escaldante, talvez porque não houvesse escolha, ele tinha de ir andando com a ajuda de um velho andador.

Quando ele finalmente estava a poucos metros da turma de operários que fazia a limpeza do passeio, eles pareceram não tomar ciência de sua presença, era como se o velho fosse um ser invisível, e talvez ele fosse mesmo para algumas pessoas. No entanto, o ancião prosseguiu em sua tosca caminhada e quando os operários perceberam que ele já estava bem próximo, interromperam o serviço. Moveram para os lados o seu equipamento de trabalho para deixar o caminho livre para que o velho passasse e aguardaram de forma solene e com paciência aquele homem que já fora tão jovem e forte quanto eles passar com seus passos incertos e vagarosos que lhes pareceu uma eternidade. O velho lhes lançou um olhar de gratidão e depois de ter finalmente passado, os homens retornaram ao serviço do ponto onde havia terminado.

Rio Vermelho, 2 de maio de 2016.