domingo, 25 de dezembro de 2016

O Peru de Natal

Mia foi passar o Natal no belo sítio dos avós, acompanhada da mãe. Mas ela não estava tão contente com a novidade, apesar de que ela adorava os avós e o sítio era muito divertido. É que o pai era aviador, e na noite de Natal, ia atravessar o Atlântico num longo voo levando passageiros. Mas que graça tem em se passar a noite mais linda do ano dentro de um avião, ela se perguntava, inconformada por não estar perto do pai. Como toda criança, ela via magia na noite de Natal, sempre torcia para ganhar muitos presentes e por comer muitas delicias na ceia natalina.

Os avós ficaram radiantes com a ideia de ter pela primeira vez a neta na comemoração. E sabe como são os avós, não queriam perder a oportunidade de mimá-la de todas as formas. Sendo Mia a sua única neta, tinham poucas oportunidades de estarem juntos, separados que estavam pela longa distância.

Quando Mia chegou ao sítio, foi uma alegria para todos aquele reencontro, comemorado com um belo almoço com o prato preferido da filha, frango ao molho pardo, e a sobremesa que a menina mais gostava, o famoso creme de quatro camadas, receita da avó. Depois da confraternização, o avô foi com Mia selar dois cavalos para fazerem juntos um passeio, e na estrabaria uma surpresa a aguardava: um belo potro branco, presente do avô. Mia pulou de alegria ao ser apresentada ao animal, e ela adocicou o coração do velho com beijos e muitos obrigados.

— Ele já tem um nome, vovô?

— Não, querida. Está aguardando para que você lhe dê um.

— Pronto, vai se chamar Branca de Neve! ­ – proclamou orgulhosa da escolha.

O doce avô torceu o nariz para aquele incomum nome para um cavalo, e ainda mais sendo ele um macho, mas lançou à menina um sorriso de aprovação, para não desapontá-la.

No sítio, Mia sentia o que era a liberdade, podia andar para lá e para cá, sem os excessos de proteção dos pais, o campo não era um lugar cheio de medos como a cidade grande. E num de seus passeios investigativos pelo quintal da casa, ela deu de cara com um animal que nunca tinha visto.

— Que pássaro é este, seu Saturnino? – perguntou ao faz-tudo do sítio que alimentava o animal.

— Oxi, nunca viu? Este é um peru! – respondeu o rapaz surpreso.

Até então, Mia só conhecia aquela versão encontrada no freezer do supermercado, já pronta para ir ao forno. A visão da ave viva com a sua exótica cabeça e plumagem a encantou.

— Nossa, é assim que é um peru? – bateu palminhas de felicidade.

— E este é um dos grandes! – acrescentou Saturnino, orgulhoso de o ter alimentado ao longo do ano, para aquela celebração.

— É grande mesmo! – disse a menina impressionada. – Vou tirar uma foto agora mesmo.

Dito isto, foi correndo dentro de casa e voltou com a câmera. Fotografou o bicho de todos os ângulos, para mostrar aos amigos a sua grande aventura. Saturnino até registrou o momento em que ela ficou ao lado do animal, numa demonstração de bravura. E como não podia deixar de ser, batizou de Leopoldo a nobre ave.

Na manhã seguinte, o sol brilhava alegre anunciando uma bela véspera de Natal. Mia acordou feliz e saltitante, ansiosa para que não demorasse muito para a noite chegar para ela abrir seus presentes. Correu até a árvore de Natal para contar os seus presentes, que eram muitos. Da mãe, do pai, da avó, do avó, da madrinha, embrulhados em lindos papéis de presentes com fitas coloridas. Ela aproximou cada caixa do ouvido e a balançou para tentar adivinhar o que havia dentro. A que mais lhe despertou curiosidade foi uma grande em formato de cilindro, embrulhada em papel vermelho brilhante e com um grande laço de fita verde.

Depois do café, Mia foi procurar Leopoldo, o peru, para lhe desejar bom dia.

— Hoje ele vai cumprir a missão dele. – disse Saturnino com um sorriso enigmático ao ver a menina aproximar-se do peru. – Você quer ver como se mata um peru para a ceia de Natal?

O convite chocou Mia. Como se podia matar um animal tão belo? Mas depois ela pensou melhor, afinal, os perus congelados de supermercado já tinham sido iguais ao Leopoldo quando estavam vivos, e se ele não fizesse a parte dele, não haveria ceia de Natal à noite.

— Quero sim! – respondeu com inocente entusiasmo, a imagem de um belo peru assado na travessa lhe veio à mente.

— Venha ver. – disse Saturnino.

O animal, em sua inocência, deixou-se pegar por aquele que o tinha alimentado e cuidado desde então, ele não lhe faria nenhum mal. Saturnino, em seguida, encheu um copo de cachaça que foi fazendo o animal beber às colheradas.

— Para que isso, Saturnino?

— Isso é cachaça, minha querida. Ele não vai sentir dor e a carne vai ficar uma macia, você vai ver!

— Nossa, eu não sabia disso. – disse Mia atenta a cada gesto de Saturnino.

— Veja como ele está bebum! – ele disse soltando o animal que ao sentir-se livre das mãos de Saturnino andou cambaleando feito um bêbado.

— Nossa, ele está bêbado mesmo! – disse Mia dando palminhas de satisfação.

— Agora, é a parte que eu mais gosto! He, he, he – disse Saturnino capturando o animal novamente e levando-o em seus braços enquanto afagava a sua macia plumagem.

Ele carregou a ave até um tronco de árvore serrado e posto na posição vertical como um altar, preparado para aquele sacrifício natalino. E com uma mão, num gesto rápido, deitou-a sobre a parte plana, mantendo-a quieta segurando-a pela cabeça, enquanto com a outra mão desferia um golpe certeiro no pescoço com uma afiada machadinha que faiscava ao sol, surgida não se sabe de onde. A cabeça rolou para o chão sem que o peru tivesse tempo de gritar um “ai!”.  Mia, assustada, soltou um gritinho surpresa e levou as mãos até a boca ao ver o sangue do animal esguichar pelo pescoço feito uma mangueira de jardim. Depois, Saturnino soltou a ave no chão que andou para lá e para cá deixando um rastro de sangue até entregar-se aos fatos, deitando inerte sobre a grama.

— Sangue! Sangue! – gritou Mia correndo até onde estava o peru. – Ele não está se movendo, Saturnino.

— Ele morreu, minha filha. – disse Saturnino. – Agora vá para casa e deixe eu fazer o resto para entregá-lo para dona Ana assá-lo para a ceia de Natal.

Naquela noite, quando a avó pôs o peru diante do avô à mesa, não parecia que algum dia ele tivesse tido uma cabeça. Jazia numa travessa de porcelana branca numa resignação belamente corada, enfeitado com frutas de compota ao redor.

Era difícil dizer qual dos dois estava mais corado, Mia ou o peru, ambos tinham uma bela cor, ambos tinham a mesma aparência brilhante e o mesmo ar esforçado. Mas o corado de Mia puxava para o vermelho e o do peru para o tostado.

O avô pegou a faca e o garfo com um sorriso largo de satisfação e começou a destrinchar o peru.

— Quem vai querer o primeiro pedaço? – perguntou olhando solicito em volta da mesa?
Mia balançou a cabeça em sinal de negação, ficando ainda mais corada.

Rio Vermelho, 25 de dezembro de 2016.






sábado, 17 de dezembro de 2016

A Menina de Patins

Todos os dias de verão, um pouco antes do pôr do sol, como se aquilo já fosse um compromisso combinado, ela surgia na orla do Rio Vermelho, não se sabe vinda de onde. De patins, deslizava graciosamente pela via onde também passavam ciclistas, pedestres com cãezinhos e skatistas apressados. A sua aparência era sempre fresca como de quem houvesse recém saído do banho e posto a roupa de passeio, para aproveitar a última luz do dia. Nos ouvidos, um par de headphones a isolava do resto do mundo com algum tipo de música que a fazia balançar a cabeça e mover os quadris ritmicamente, tornando a cena de sua passagem num espetáculo encantador. Como ela era bela no frescor de sua jovem idade e o seu jeito inocente parecia ignorar aquele fato. O pequeno grupo de senhores que jogava conversa fora, sentados à balaustrada da praia, também naquele mesmo horário, interrompia a conversa para reverenciar a sua passagem. Era o único momento que eles deixavam de discutir receitas para curar as mazelas do país, para admirar poesia.

Naquela tarde, ela usava um vestidinho florido bem curto que esvoaçava a cada sopro salgado do mar, mas ela parecia não se incomodar. Ela estava alegre como de costume, e ouvia a sua música e dançava sobre as rodas sem se deixar perturbar. Como era bom ser jovem e andar de patins para lá e para cá sem se importar com nada mais além do caminho à sua frente.

No mirante da Paciência, ela fez uma pausa para admirar um espetáculo majestoso, o sol dissolver-se no horizonte manchando o céu de tons alaranjados. Como era bonito aquele momento que ela não se cansava de admirar e que enchia o seu peito de uma felicidade infantil, como se ela se comunicasse tão bem com a natureza como com os seu par de patins.

Ela não prestou atenção quando um rapaz jovem e forte se aproximou, e disse-lhe alguma coisa quase sussurrando. Só depois de sua insistência foi que ela tirou o fone do ouvido para escutá-lo. Ato seguido da entrega do aparelho de celular por onde ela ouvia a música e, em seguida, do par de patins. Suas pernas começaram a tremer logo em seguida e se formou uma poça de urina ao seu redor, enquanto o malfeitor corria atravessando o asfalto e sumindo pelo mundo afora. Ela teve impulso de gritar por socorro mas a emoção lhe roubou a voz, e quando finalmente ela conseguiu fazê-lo, foi socorrida por outros admiradores do crepúsculo, mas aí já era tarde demais.

Nunca mais se viu ela passeando ao pôr do sol. Entretanto, espalhou-se a notícia de que um rapaz de patins corria como o vento pela ciclovia, e pelo caminho tomava sorrateiramente da mão de passantes aparelhos de celular e bolsas, deixando um rastro de desespero ao sumir feito um raio entre os transeuntes.


Rio Vermelho, 16 de dezembro de 2016.


quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O Velório

Ao entrarem na pequena sala onde Irani jazia velada, os amigos mais próximos faziam uma expressão de surpresa e, em seguida, sucumbiam à gargalhada, causando indignação nos outros presentes. Depois lembravam que deviam estar num velório e tentavam manter uma expressão pesarosa em respeito à defunta. Irani repousava num caixão de primeira, ornado com margaridas amarelas como foi de seu desejo, vestida com o vestido de noiva e com uma coroa de minúsculas margaridas brancas ao redor da cabeça. As mãos pousavam sobre o peito farto segurando um rosário de madrepérola e a expressão de seu rosto levemente maquiado era serena como de alguém que estivesse apenas dormindo. Irani estava finalmente realizando um desejo muito antigo e inusitado, ter seu próprio velório ainda viva.

Desde adolescente, ela sonhava com aquele momento lúgubre e finalmente o estava realizando, contrariando o esposo que achava aquilo uma brincadeira de mau gosto. “Vai que tu não se levanta mais do caixão, vou ficar viúvo antes do tempo, e tudo por causa de sua teimosia!”

Os pais de Irani só mudaram de ideia e passaram a apoiar aquela maluquice quando a moça saiu de casa. Agora é um problema do marido, lavaram as mãos. Os amigos estavam divididos. Uns achavam que aquilo era um mau agouro e podia se tornar realidade. Outros que a amiga estava com um parafuso a menos. E alguns queriam vê-la realizar o seu sonho, ainda que bizarro.

— Que doideira é essa, dona Irani? – disse o único vendedor de caixão da cidade. – Onde já se viu velar uma viva? Velório é coisa séria!

Irani precisou de quatro anos para convencê-lo de seus nobres propósitos, não queria morrer sem realizar o seu desejo, não que ela estivesse doente ou já próxima da data da partida; pelo contrario, ela era jovem e saudável feito uma rocha. E a cada nova tentativa, sempre uma negativa do agente funerário. “Isso dá mau agouro!”, “Vai que tu não levanta mais do caixão!”, “Mas que moça insistente!” E foi graças à sua insistência, que o agente funerário um dia cedeu. Não se deve contrariar quem tem um parafuso a menos, ele justificou.

O agente funerário, até fez um gesto generoso, emprestou o melhor caixão da loja, ornamentou-o sem cobrar nenhum centavo. No final, ficou tão entusiasmado que mandou vir carpideiras para chorar pela defunta. Até o padre entrou na brincadeira e foi rezar para a morta fazer uma boa travessia; dizem as más línguas que cobrou caro por aquela passagem! Irani que sonhava com um velório de primeira, providenciou bebida e comida farta para todos; o velório tinha mais gente que em festa de aniversário de político. Um desconhecido, penetra de velórios e bocas livres, envolto em vapores etílicos, fez um emocionado discurso enaltecendo as qualidades e virtudes da falecida. Ele falou bonito e usou palavras difíceis que nem ele e nem os presentes sabiam o significado. Irani perdeu esta parte, pois caiu no sono. Os convivas beberam e refestelaram-se tanto que esqueceram que a defunta não tinha morrido de verdade. Alguém lembrou que já era hora de fechar o caixão. Emocionados, carregaram o esquife pelas ruas da cidade fazendo um longo cortejo, moradores que não tinham comparecido ao velório perfilavam-se ao longo das vias em sinal de respeito, os homens tiravam o chapéu. E já no cemitério, tudo foi feito como manda o figurino, Irani foi sepultada a sete palmos. Depois, cada um foi para casa curar a ressaca.

Rio Vermelho, 8 de novembro de 2016.


sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Não se meta com o velhinho!

O velho tinha idade para já ser bisavô de alguém. De fala mansa e conciliadora como se espera dos anciãos, o caminhar era a passos curtos e fraquejados, denunciando os muitos anos percorridos. Na mão, a bengala na qual se apoiava era um cigarro com a ponta sempre brilhando, o seu companheiro fiel de longuíssima data. Orgulhava-se de fumar desde criança e de ainda estar vivo, apesar de a ciência condenar fumantes inveterados como ele à passagem para o além prematuramente. Ele simplesmente adorava fumar, sentir a fumaça arder-lhe os pulmões e expeli-la para fora como a chaminé de uma fábrica antiquada. Todos no bairro o conheciam, conversava com um e com outro, só sabia fazer amigos e amigos não lhe faltavam.

Certo final de tarde, ele chegou em casa de seu passeio diário ao longo do calçadão da praia, estava visivelmente mal humorado e transtornado. O filho ficou surpreso, não se lembrava de ter visto o pai alguma vez daquele jeito.

— É por isso que as coisas acontecem. – resmungou o velho irritado.

— O que foi, meu pai? Porque o senhor está assim desse jeito? Que foi que aconteceu?

— Um sujeito veio se meter com a minha vida!

— Que sujeito? Quem foi?

— Um sujeito aí. – respondeu o velho bufando de raiva depois de dar uma tragada.

— Não tem nome?

— Depois se eu pico a mão na cara do cidadão, vão me chamar de violento, vão dizer que eu sou isso e aquilo, vão procurar frescura comigo. – disse o velho soltando fumaça pelo nariz feito um dragão enfurecido.

— Quem foi?

— Eu não me meto na vida de ninguém e também não quero que se metam na minha. – vociferou com o dedo em riste. – Se quem me botou no mundo, nunca me proibiu de fazer nada, por que um Zé Ninguém vem tomar liberdade comigo?

— Mas, meu pai, quem foi que te deixou assim tão puto da vida?

— Um cara aí na rua. – o velho respondeu quase voltando a si.

— Não tem nome?

— Não sei o nome.

— É alguém aqui do bairro?

— Nunca vi antes na vida!

— Então uma pessoa que o senhor não conhece o aborreceu?

— O desgraçado veio se meter em minha vida, eu nunca lhe dei ousadia. Olha, eu juro que me deu vontade de dar um tabefe naquele fedelho!

— Calma pai, que o senhor não está mais na idade de dar porrada em ninguém; logo o senhor, uma pessoa tão sensata...

— Pra você ver o estado que este moleque me deixou. Eu não me meto na vida de ninguém, muito menos de desconhecido.

— Mas o que foi que este cara, que o senhor nem sabe quem é, lhe disse para lhe provocar tanta fúria?

— Ele veio pra mim com uma voz abestada e disse – imitando a voz abestada – “Pare de fumar, cigarro mata!” Olha, eu fumo desde os onze anos e ainda vou enterrar aquele imbecil! – disse finalmente o velho expelindo fumaça pelo nariz.


Gostou? Então contribua com R$30, R$50, R$100 ou R$350 para minha campanha de financiamento coletivo para eu publicar o meu romance de estreia. É bem pouquinho, mas, para mim, faz uma diferença danada! Click no link e contribua! ( Contribuição para o livro do Cristiano ) E se não conseguir contribuir pelo site, aceito depósito bancário, basta pedir os meu dados. Obrigado!

Rio Vermelho, 19 de outubro de 2016.









quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Pedido de Casamento

Esta tarde recebi um pedido inusitado. Não o pedido de casamento que leva o título da crônica. O rapaz se aproximou enquanto eu, sentado na balaustrada próxima à quadra de futebol observava os passantes. Com a voz tímida de quem não queria incomodar, ele carregava uma pequena caixa azul com uma alça presa ao pescoço
.
— O senhor compra uma trufa de chocolate pra me ajudar a fazer o meu pedido de casamento?

Respondi que estava sem dinheiro. E era verdade. Quase não carrego dinheiro comigo quando saio pelas vizinhanças, contrariando a orientação da Segurança Pública que sugere ao cidadão levar sempre consigo pelo menos uma nota de cem além de um aparelho smartphone de boa qualidade para dar ao ladrão em troca de sua vida. Não costumo sair também levando o celular comigo, razão pela qual nunca fui assaltado. Assaltante é como cão de caça, tem faro apurado e sente o cheiro de um bom smartphone e uma nota de cem a metros de distância. O rapaz humildemente agradeceu minha atenção e se afastou.

No entanto não tive certeza de ter entendido bem o seu pedido incomum, acho que fiquei fascinado com a ideia. Ele já estava mais adiante abordando uma moça sentada também na balaustrada. Aproximei-me e expliquei ao jovem a minha curiosidade. De boa vontade, ele contou que queria fazer o pedido de casamento à sua namorada e precisava de dinheiro para comprar o anel de noivado e fazer uma pequena celebração, queria que a ocasião fosse impactante, segundo suas palavras.

Fiquei comovido com a sua perseverança e com aquela demonstração de amor que imaginei que a moça a merecesse. Achei as suas intenções pueris. Desconheço os rituais de um pedido de noivado ou de um casamento, mas sei que ambos custam tão caros quanto pedir o divórcio depois. Aliás, o casamento é uma instituição cara e mesmo assim as pessoas preferem fazê-lo mesmo que as estatísticas apontem que as chances de ele terminar em divórcio são tão prováveis como ter o celular roubado em plena luz do dia em local público. A trufa de chocolate custava apenas dois Reais e imaginei desanimado quantas ele precisaria vender para pelo menos comprar o anel de noivado. Eu gostaria de contribuir, mesmo não sendo um entusiasta de casamentos, mas acredito no amor e aquele jovem tinha encontrado o dele. Olhei para os lados procurando os conhecidos que eu sempre encontrava em meu passeio diário pela orla, eles haveriam de me emprestar nem que fosse apenas dois Reais para comprar a trufa do rapaz e assim contribuir com aquela comemoração impactante que ele vinha sonhando. Frustrado, não vi ninguém. Agradeci a sua explicação e disse que ainda sim eu estava sem dinheiro e lhe desejei sucesso em sua jornada. Afastei-me chateado por não ter um tostão no bolso num momento tão especial como aquele.

Enquanto eu me afastava pensativo, lembrei que eu estava numa situação semelhante, pedindo dinheiro aqui e acolá, metido numa campanha de financiamento coletivo para levantar grana para publicar o meu romance de estreia. Os amigos estavam contribuindo e eu descobri que eu tinha mais amigos do que eu imaginava. Tive uma ideia. Esboucei um sorriso de satisfação e procurei o rapaz que já atravessava a avenida a caminho do Largo de Santana.

Ei, psiu! Você, mesmo. Perguntei a ele se sabia o que era financiamento coletivo e, com sua negativa, abri-lhe as portas de uma outra forma de ele conseguir a grana para pedir a mão de sua amada e de impressioná-la para o resto da vida com uma bonita festa. É bem piegas esta coisa toda, mas é que eu ando com um puta sentimentalismo ultimamente. É como disse o poeta: Eu não devia te dizer,/ mas essa lua/ mas este conhaque/ botam a gente comovido como o diabo.*

Rio Vermelho, 14 de setembro de 2016.


                                                                                                       * Drummond, em Poema das Sete Faces




quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O Ladrão e a Mulher do Caçador

A notícia de que um ladrão invadia os lares durante o sono de seus moradores, ou em sua ausência, levando objetos de pequeno porte, mas de considerável valor, como joias, relógios, aparelhos de celular, computadores portáteis e máquinas fotográficas, deixou apreensivos os moradores do tradicional bairro do Rio Vermelho. Era muita ousadia invadir a casa alheia para roubar, e mais ainda quando os seus habitantes estavam indefesos no mais profundo sono. Ninguém tinha uma descrição desse gatuno, ninguém jamais o tinha flagrado em pleno exercício de sua atividade profissional.

Até que certa noite, acreditando estar invadindo uma residência na qual os seus moradores estivessem ausentes, ele deu de cara com a dona da casa, uma jovem mulher que se preparava para ir para a cama. Ora, o susto da moça foi grande, mas ela enfrentou o invasor com determinação e coragem.

— O que você quer? – ela perguntou tentando cobrir com as mãos o corpo que levava apenas uma fina e quase transparente camisola.

— O que a senhora acha que eu quero? – o ladrão perguntou desapontado consigo mesmo pelo seu descuido. No entanto, ele não deixou de ficar admirado com a beleza de sua vítima.

A moça logo percebeu que se tratava do ladrão sobre o qual tanto falavam no bairro e o encarou observando que a sua aparência era típica dos ladrões. Ele vestia-se casualmente e com bom gosto, era alto, porte atlético, cabelos louros compridos amarrados em estilo samurai, barba por fazer, rosto perfeito e olhar cínico e penetrante, enfim, um tipo bem comum de gatuno.

Ela então respondeu a ele abrindo os braços de forma dramática, como se estivesse se oferecendo a ele em sacrifício, entretanto, revelando a silhueta de seu belo corpo por debaixo do tecido fino da camisola.

— Venha, pegue isto que você está querendo, mas poupe a minha vida! Vamos, satisfaça os seus infames desejos carnais e vá-se embora!

Entretanto, ela teve o cuidado de acrescentar uma informação contrária ao que o bom senso espera em casos como aquele, em que tudo que se deseja é que as coisas aconteçam de forma rápida e indolor:

— Meu marido saiu e vai demorar!

Por tanta generosidade, o ladrão não esperava. Sua intenção era apenas levar um relógio ou um par de brincos, e ele se daria muito satisfeito se houvesse um tablet ou câmera digital para incluir butim. Mas um mulherão daquela qualidade se entregando para ele, era algo extraordinário, não havia como recusar.

Ele então se deixou levar pelo desejo, tomando-a nos braços e a imprensando contra a parede com o seu próprio corpo. Ela gemeu ao sentir a sua rigidez e lhe ofereceu os lábios. Antes, porém, de sufocá-la com um longo beijo, ele quis saber.

— E onde está o seu marido?

Ao que ela respondeu ofegante e dominada pelo desejo.

— Ele foi caçar pokemon!


Rio Vermelho, 23 de agosto de 2016.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Profissão de Pai para Filho

Gervásio sonhava um dia ver seu primogênito seguir uma profissão diferente da sua e, por isso, tornar-se um doutor, que tivesse uma profissão descente como um médico, engenheiro ou até advogado. Mas o filho orgulhava-se do pai, considerava-o uma espécie de herói, desde pequeno já tinha decidido que seguiria a mesma profissão do pai, seria um ladrão.

Isto mesmo, Gervásio tinha como profissão roubar pessoas, mais especificamente roubar a casa das pessoas e depois levar o butim para vendê-lo na Feira do Rato, no Comércio. Ele era um ladrão à moda antiga, como se diz, preferia entrar sorrateiramente na casa das pessoas sem fazer barulho algum, com a habilidade e elegância de um felino e surrupiar os seus pertences enquanto dormiam ou estavam ausentes no trabalho. Ele condenava as práticas modernas de seus jovens colegas de abordar a clientela diretamente na rua. Achava aquilo deselegante e perigoso, de uma violência fora de propósitos. Ele jamais apontara uma arma para outra pessoa, e o único mal que lhes fizera foi lhe auferir os bens sem que para isso tivesse de usar de violência ou pôr a vida de alguém em risco.

Seu filho Benedito tinha a mesma opinião do pai. Repudiava a violência sob qualquer pretexto. Entretanto ele não faria como o pai, não tinha a intenção de exercer a sua profissão invadindo a casa alheia, achava aquilo antiquado e o custo-benefício pouco produtivo. Também não se imaginava vendendo a sua mercadoria na Feira do Rato como o pai, sujeito a ser assaltado de surpresa pela polícia a qualquer instante, fugindo deixando tudo para trás para que a própria polícia fizesse a festa. Sua intenção era a de atuar no mercado de forma eficiente e inovadora, com poucos riscos e muitos benefícios.

Certo dia o pai ia pela rua, no centro da cidade e orgulhoso viu cartazes com a foto do filho coladas pelos muros e postes ao longo do caminho. Como o filho estava bonito e elegante, ele ia ser um ladrão de classe, de primeira categoria!

— Olha aqui, este é o meu filho! – dizia Gervásio aos transeuntes apontando para o cartaz com a foto do filho onde se lia “Benedito Silva para deputado”.


Rio Vermelho, 19 de julho de 2016.




terça-feira, 12 de julho de 2016

Meu romance precisa de sua ajuda para ser publicado. Ele merece ser publicado


Prezado leitor,

Você que tem me prestigiado lendo o meu blog e fazendo comentários, solicito agora a sua ajudinha. Estou fazendo uma “vaquinha” para publicar o meu romance Demasiado Pouco Amor – ele precisa de sua ajuda para ser publicado, ele merece ser publicado!

Hoje em dia, esta vaquinha leva o pomposo nome de Financiamento Coletivo – do inglês Crowed Funding, muito popular mundo a fora. Muitas pessoas no Brasil já estão recorrendo a este sistema para financiar seus próprios projetos na área cultural, ambiental, educacional e social. Bacana, não?

É muito simples: basta copiar e colar o link a seguir no seu navegador (https://www.catarse.me/demasiadopoucoamor-digital) que levará ao meu projeto no site do Catarse – que é uma plataforma nacional de financiamento coletivo. E contribuir com R$15, R$30, R$50, R$100, R350 ou R$650 e de lambuja eu ainda te dou um mimo!

É um pouquinho, mas para mim a sua singela contribuição fará uma diferença danada! Vamos lá, enfia essa mão no bolso!

Obrigado por sua colaboração!

Isso é Amor!

Raimundo era motorista de táxi. A sua grande paixão era ir para a praia de Santana no final de tarde levando consigo a vara de pescar para entregar-se aos prazeres de esperar até que um peixe desavisado mordesse a isca. Não havia satisfação maior que jogar o anzol no mar e contar com a sorte de pegar algum peixe, pois era isso que pescar significava, um jogo de azar, era como jogar na loteria.

O nosso pescador de ocasião era um homem jovem, beirando quase os trinta; tinha seu próprio apartamento e era considerado pelas moças como um partidão. Ele gostava daquele esporte que exigia doses de paciência e que, por isso, era mais apropriado para homens mais maduros. Mas ele se considerava um precoce, gostava de coisas diferentes que os rapazes de sua idade. Sendo ainda solteiro, não precisava dar satisfações a ninguém, podia ir pescar quando lhe conviesse, bastando para isso que a maré estivesse dando peixe.

Certo dia, no final de uma tarde ventosa do mês de julho, ele ia passando pelo Rio Vermelho e viu maravilhado uma multidão de pescadores na praia de Santana, pois a maré tinha trazido um enorme cardume. Havia pescadores com suas varas e anzóis deste a areia da praia até nas pedras que a circundava, na esperança de levar para casa um xaréu ou bodião. Ele encostou o carro e ficou sentado na balaustrada assistindo aquele cenário que ocorria lá embaixo. Ao seu lado sentou-se também Mário, outro companheiro de pesca. Assistir homens pescando era tão enfadonho quanto acompanhar um carteado, quase nada acontece, mas como existe gosto para tudo nessa vida, o praticante da pesca se entusiasma em ver outro colega pescando. Havia também pessoas que passavam de bicicleta se exercitando no passeio ao lado da balaustrada, outras corriam ou passeavam com seus cães indiferentes àquele fato importante. Uma moça jovem e bonita desfilou graciosamente com seu cachorrinho, desviando a atenção de Mário para o seu formoso rosto.

— Olha, que mulher mais linda. – ele chamou a atenção de Raimundo.

— Eu prefiro as feias. – retrucou o taxista indiferente, sem desviar o olhar para os pescadores na praia.

—É mesmo? E por que essa predileção, posso saber?

— Ora, mulheres feias são mais esforçadas e por isso são mais inteligentes. Elas são mais carinhosas para compensar a falta de beleza, e muito boas de cama, pelo mesmo motivo. – respondeu Raimundo do alto de sua sabedoria.

— Então você está dizendo que as bonitas são burras?

— Quase isso. A mulher bonita geralmente consegue tudo fácil por causa de sua beleza que lhe abre as portas, não tem de batalhar como a feia, por isso, não desenvolve o intelecto, entendeu?

— Mas essa aí é novinha, ainda tem muito o que aprender... – argumentou Mário.

— Também não gosto de mulher nova...

— Tá me dizendo que gosta de velhas?

— Isso mesmo! – Raimundo respondeu orgulhoso.

— Você tem gostos estranhos, meu caro amigo. Porque prefere as velhas?

— As velhas são muito mais experientes na arte do amor, já sabem tudo e, como ninguém se interessa por elas, quando arranjam um homem jovem como eu, elas capricham para tirar o atraso!

— Nossa, então você gosta mesmo de mulheres feias e velhas!

— Isso mesmo. E se você algum dia me ver agarrado a uma velha feia, não aparte porque não é briga, é amor!


Rio Vermelho, 12 de julho de 2016.




quarta-feira, 15 de junho de 2016

O Relógio Barato e a Moça de Grife

Eu gosto de relógios de espessura fina e que não pesem no braço. Destes que de tão discretos só mostram as horas e não me incomodam fazendo tic-tac. Pra quê mostrador de profundidade, se não sei nadar e tenho medo de água ou de que adianta saber quantas vezes o meu coração bate, pois por quem ele bate não é ouvido? Finalmente, depois de procurar pelas lojas encontrei um que se enquadrava ao meu gosto e ainda custava o preço de uma pizza grande. O seu mostrador era redondo com o fundo branco e no centro um par de ponteiros girava apontando para números arábicos elegantes. Ele não era de uma marca chique, pelo contrário era bem popular, mas de qualidade confiável, não era coisa de camelô. De qualquer forma, não era o tipo de relógio que as pessoas que se importam com grifes gostariam de ostentar no pulso para mostrar ao mundo que estão bem de vida.

Com o uso frequente, fui aos poucos percebendo as vantagens de possuí-lo. Certa vez eu ia num ônibus, destes que se paga mais por um pouco de conforto, quando percebi a presença de um rapaz que se aproximava pelo corredor com as mãos cheias de bugigangas. Fiquei surpreso por deixarem um vendedor ambulante entrar naquele tipo de ônibus e só me dei conta de que, na verdade, se tratava de um assaltante quando ele me mandou passar tudo. Quando lhe entreguei o relógio, no entanto, o assaltante examinou-o com desdém e o devolveu dizendo que não queria aquilo. Meu prejuízo foi pouco, pois não saio com celular e nem coloco documentos e cartões de crédito na carteira que quase sempre carrega apenas trocados, nada que dê alegria a assaltante.

Mas esta não foi a única vez que tentaram levar meu relógio que, para mim, virou motivo de satisfação possuí-lo, pois estava claro que este não era o querido dos ladrões. Outra vez tive a sorte de ser abordado novamente por um assaltante nas imediações de minha casa e como eu não tinha um celular para entregar-lhe, ele levou o relógio.  Entretanto, encontrei-o mais adiante jogado ao chão; o bandido deve ter desistido dele e me jogado uma praga!

O caso mais emblemático que envolveu o meu bom e barato relógio, no entanto, ocorreu quando uma bela moça a quem eu cortejava, finalmente cedeu aos meus convites para sair comigo. Ela caprichou na elegância, calça da Kalvin Kleine, blusa da Farme, bolça da Victor Hugo, Sapatos da Arezzo, perfume da Carlina Herrera e, como constatei mais depois da segunda garrafa de vinho – ela era difícil na queda! –, lingerie da Victoria Secret. Além de se vestir a peso de ouro, sabia recitar nomes de vinhos caros, os hotéis e restaurantes mais luxuosos de Nova Iorque a Paris e demonstrava ter domínio destes conhecimentos com tal conhecimento de causa e orgulho que até me fez bocejar de sono. E quando ela me deixava falar um pouquinho, eu percebera que ela olhava discretamente o meu relógio, talvez para não demonstrar indelicadeza consultando as horas em seu próprio pulso. A noite para mim transcorreu agradável e educativa, e quando finalmente terminamos na cama, eu sussurrava em seu delicado ouvido nomes de grife famosas que me vinham à memória enquanto fazíamos amor, com o intuito de aumentar o seu prazer.

E, no dia seguinte, como manda a etiqueta, mandei-lhe mensagens agradecendo-lhe pela noite esplendida, ao que ela correspondia com “emotions”. No entanto, os convites para um segundo encontro eram sempre recebidos por ela com entusiasmo, mas que ela educadamente os cancelava poucas horas antes e assim aconteceu sucessivamente. E finalmente enquanto eu refletia o possível motivo daquela rejeição, só me vinha na cabeça uma explicação lógica: foi o relógio barato!


Rio Vermelho, 14 de junho de 2016





quinta-feira, 26 de maio de 2016

Um Pouquinho Não Tira o Pedaço

Letícia se sentia amargamente só nos últimos dias. Nenhuma alma para conversar, trocar uma ideia. E ela, que era conversadora, se sentia no pior dos mundos. O fato é que lhe roubaram o smartphone, e isto foi pior do que se lhe tivessem levado a vida. Se o miserável do assaltante tivesse lhe metido uma bala no coração, teria lhe poupado de tanto sofrimento. Cheia de dívidas, não tinha como comprar outro aparelho tão cedo, nem um daqueles antiquados que só servem para fazer ligações telefônicas.

Milagres não existem, ou pelo menos daqueles em que cego começa a enxergar e aleijado se levanta da cadeira de rodas. Letícia acreditava em Deus, mas só teve certeza de que ele ouvira as suas preces depois que a vizinha bateu à sua porta. Tinha um telefonema urgente para ela. O investigador Queiroz, aquele mesmo que lhe comia com os olhos enquanto ela prestava a queixa do assalto, pedia que ela comparecesse à sétima naquela tarde. Ele não quis dizer o motivo por telefone, mas uma centelha de esperança acendeu no coração da moça. O mais que ela queria no mundo era ter de volta o seu smartphone já que não podia comprar um novo.

 Letícia se aprontou para ir à delegacia. Por precaução, pôs um vestido que tinha um decote capaz de lhe mostrar até o umbigo. Não que ela tivesse de intenções com o investigador, muito pelo contrário, ela detestava homens como ele que não abotoavam a camisa direito e deixavam o peito peludo à mostra, aquilo lhe parecia um sinal de desleixo e vulgaridade. Ela também não gostou dos olhares indiscretos do investigador e do seu sorriso sínico e maldoso. Mas se ela colocara um vestido tão chamativo, era porque ela estava fazendo um esforço para ser simpática com o homem que poderia trazer o seu smartphone de volta.

— O senhor queria falar comigo? – perguntou Letícia aproximando-se do balcão da delegacia.

— Venha aqui até à minha sala. – ele ordenou com um sorriso enigmático no canto da boca. Seus olhos colaram nos peitos fartos da moça que pareciam querer saltar fora do decote generoso.

— E porque não podemos conversar aqui mesmo no balcão? – ela perguntou desconfiada, percebendo que acertara na escolha do vestido.

— É uma conversa particular sobre o seu caso. Venha logo que estou muito ocupado.

Letícia o seguiu pelo estreito labirinto de corredores até ele abrir uma porta ao lado de um bebedouro. Ela sentiu vontade de beber água, mas preferiu matar a sua sede depois quando estivesse de posse de seu aparelho, talvez até comemorasse com uma cerveja. Era uma sala apertada e mal iluminada onde só cabia uma mesa com computador e duas cadeiras além daquela onde sentava o investigador. O homem se sentou e lhe indicou com a mão uma das cadeiras. Ele ficou em silêncio observando aquela mulher à sua frente que não era nem bonita e nem feia, mas que tinha uma atitude de confiança. Seu corpo era formoso e havia em seu olhar uma expressão desafiadora que o instigava. O jeito safado de ele a escrutinar a incomodava, apesar de ela já estar acostumada àqueles olhares maliciosos masculinos, não se importava desde que o homem lhe interessasse. No entanto, ela não nutria nenhuma simpatia por aquele ali, ele era um coroa com uma barba de uma semana por fazer.

— Não vai sentar? – ele indicou mais uma vez a cadeira com uma expressão séria.
Letícia não teve alternativa a não ser puxar a cadeira e sentar-se.

— E então? – ela provocou o policial que não dizia nada e só ficava olhando para ela daquele jeito de peixe morto.

— Não encontramos o seu celular, quem o roubou deve ter passado adiante no mesmo dia. – ele disse finalmente.

— E o senhor me chamou até aqui só pra me dizer isto? Para falar a verdade, eu não tinha nenhuma esperança que a policia se desse ao trabalho. Com tantos crimes horríveis acontecendo por aí, quem é que vai dar importância a um celular, não é mesmo?

— Mas nem tudo está perdido. – ele disse abrindo a gaveta de sua mesa. – Eu tenho este aqui que encontramos com um meliante e ninguém nunca prestou queixa.

Ele mostrou o aparelho novinho em folha. Era um desses que custavam os olhos da cara, coisa de grã-fino, mesmo. Os olhos de Letícia brilharam, mas logo ela caiu na real.

— Não tenho grana nenhuma. – ela avisou.

— E quem falou em dinheiro? – o inspetor pôs o aparelho sobre a mesa para que Letícia o cobiçasse.
Letícia olhou para o policial desconfiada. Ele esbouçara aquele sorriso maliciosos que já dizia tudo.

— Vai ser um presente. – o policial disse.

— É ruim, hein? Ninguém dá presente assim sem querer algo em troca, ainda mais que nem te conheço.

— A gente sai, mais tarde, tomamos umas cervejas...

— Viu você, tu tá mal intencionado. Tá enganado, não vou pra cama com estranhos em troca de um smartphone.

— Então, a gente toma essa cerveja pra se conhecer melhor, aí não vou ser mais um estranho. – ele deu uma piscadela para ela.

— Não vem com essa...

— Bora, só um pouquinho... Você vai gostar muito e ninguém vai ficar sabendo, vai ser segredo nosso. Faz, assim, vai pra casa e pensa no assunto. Às 19 horas eu te espero na Dinha, se você aparecer eu vou ficar muito feliz e você não se arrependerá.

Letícia voltou para casa indignada. Ficou o resto do dia pensando naquela oferta descarada do investigador. Quis contar para as amigas, passar um zap para o grupo. Mas não tinha como. Ficou inquieta e deprimida. Precisava conversar com alguém, tirar aquele peso do peito. Era uma crise de abstinência de smartphone que lhe deixava louca. E aquele aparelho parecia novo em folha... Só um pouquinho, o canalha disse. Bem, ela pensou sem tirar o aparelho da mente, um pouquinho não vai tirar o meu pedaço.

Rio Vermelho, 24 de maio de 2016.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Que Passem os Velhos

O sol ardia inclemente numa manhã qualquer da semana. Ao longo da avenida que margeia o litoral, os automóveis com seus possantes motores seguiam como em procissão, um após o outro em marcha lenta quase parando. Do lado de fora o calor era de tirar o folego, mas dentro dos carros era frio e acolhedor. Ouvia-se musica ali dentro ou se conversava ao celular, qualquer coisa valia para passar o tempo.

Fazendo o caminho oposto no passeio que serpenteava ao lado do asfalto, ninguém reparou na figura frágil do octogenário que caminhava se apoiando num andador tão tosco quanto ele próprio. Ele vinha a passos de tartaruga e parava de vez em quando para retomar o folego.  Ele estava tão absorto em sua jornada, talvez muito longa por causa de seus curtos e lentos passos, que mal tomou conhecimento do congestionamento de carros ao seu lado.

O velho seguia o seu caminho solitário enquanto de pé sobre as pedras na praia, pescadores da hora jogavam o anzol na maré agitada de abril na esperança de levar uma guaricema ou sardinhas para o almoço. Mais adiante no mesmo passeio por onde ia o velho, uma equipe de quatro operários vestidos de chamativos macacões laranjas lavavam o piso com água e esfregavam com escovões. Entre o velho e os homens de laranja ainda havia muitos metros a serem conquistados pelo ancião, fora estes personagens, o passeio era um deserto de pessoas.

Para onde ia o velho àquela hora, não se sabia. Apenas podia-se especular que ele ia ou voltava de algum lugar. Seja qual fosse o seu destino, ele parecia determinado a chegar lá debaixo daquele sol escaldante, talvez porque não houvesse escolha, ele tinha de ir andando com a ajuda de um velho andador.

Quando ele finalmente estava a poucos metros da turma de operários que fazia a limpeza do passeio, eles pareceram não tomar ciência de sua presença, era como se o velho fosse um ser invisível, e talvez ele fosse mesmo para algumas pessoas. No entanto, o ancião prosseguiu em sua tosca caminhada e quando os operários perceberam que ele já estava bem próximo, interromperam o serviço. Moveram para os lados o seu equipamento de trabalho para deixar o caminho livre para que o velho passasse e aguardaram de forma solene e com paciência aquele homem que já fora tão jovem e forte quanto eles passar com seus passos incertos e vagarosos que lhes pareceu uma eternidade. O velho lhes lançou um olhar de gratidão e depois de ter finalmente passado, os homens retornaram ao serviço do ponto onde havia terminado.

Rio Vermelho, 2 de maio de 2016.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Açúcar!

Em volta do pequeno palco armado no centro do Mercado do Peixe, uma modesta multidão ia se formando. É preciso dizer que jamais um peixe foi vendido naquele lugar, e se este foi batizado com tal denominação, talvez se deva ao fato de a moderna construção ficar ao lado do mar e de uma colônia de pescadores. Talvez num passado remoto ali fosse vendido algum peixe, mas as construções que se seguiram posteriormente abrigaram bares e pequenos restaurantes populares.

Uma pequena banda composta de quatro músicos afinava instrumentos e testavam o som. De pé, vistoso, entre aquela turma, um negro do cabelo loiro e de brincos, vestindo um macacão colorido chamativo parecia ser o vocal do grupo. Ora ele falava com o baterista, ora com o percussionista ou guitarrista, e parecia alheio àquela aglomeração que se formava ao redor da banda. As pessoas assistiam silenciosas àqueles preparativos e depois de um demorado tempo, finalmente o guitarrista deu o primeiro acorde que foi acompanhado pelos outros músicos. Pronto, o show ia começar!

O som que produziam era empolgante o suficiente para dar vontade de dançar, mas ninguém na plateia, talvez por timidez, tomasse a iniciativa. Ao invés disso, os olhos fixavam-se no vocal à espera que ele começasse a cantoria. Entretanto, os instrumentistas davam o ritmo, atraindo para perto mais curiosos. E quando finalmente o vocal pegou no microfone, ele ainda levou algum tempo até dizer em tom meloso “açúcar!”. Não disse mais nada e deu alguns passos e requebrados. Despois de algum tempo em que só a banda entretinha com o seu ritmo cativante, o vocal deu o ar da graça novamente cantando ao microfone “açúcar!”

Mas ainda não foi aquela vez que ele cantou o resto da música e a plateia que tinha duplicado de tamanho dava ares de que já começava a impacientar-se. “Açúcar!”, cantou mais uma vez o negão loiro. Ele era alto e gordo e parecia mesmo ser um fã incondicional do carboidrato feito de cana. Ele foi até a frente do palco deu mais um requebrado e aproximou-se do baterista, “açúcar!”, gritou novamente.

Um rapaz na plateia, não contendo a ansiedade que aquele suspense lhe causava, soltou uma risada nervosa seguida de outra a cada vez que o cantor talentoso gritava “açúcar!”

E quando menos se esperava, o homem desceu do palco e misturou-se à multidão levando consigo o microfone e começou a cantar num ritmo latino enquanto requebrava:

“tus labios son ricos
melado de caña
tus labios son ricos
melado de caña
saben de rico panal
dulce miel azucarada”...*

E toda a plateia juntou-se a ele e começou a dançar a salsa.


Rio Vermelho, 7 de abril de 2016.

* Melado De Caña, Célia Cruz

segunda-feira, 28 de março de 2016

Encontros ao Pôr do Sol

Há pessoas têm a sorte de ter amigos muito generosos e que são empreiteiros, mas eu, menos afortunado, tenho um amigo que é um misantropo. Eu explico: apesar desta intrigante palavra evocar em nossa imaginação algum ser mitológico cujo corpo é metade humano e metade animal, não é nada disso. O misantropo é bem parecido com este meu amigo, um cara que prefere a solidão ao convívio com outras pessoas, que não tem vida social e raramente demonstra alegria pela vida. Em resumo, uma alma solitária.

Este meu amigo mora aqui no Rio Vermelho simpática casinha rodeada de plantas como se vivesse na roça e todos os dias ele se levanta ao raiar do sol e vai para cama ao desaparecer dos últimos resquícios do dia, como se a sua vida fosse regrada pelas manifestações da natureza. Curiosamente, algo provocou uma ruptura neste seu modo de ser, desde que começaram as obras de reforma na orla de nosso bairro.

No início, ele foi indiferente àquelas obras, mas à medida que as ruas da praia foram ocupadas por máquinas pesadas que escavavam e revolviam a terra noite e dia, ele tornou-se um crítico daquele desperdício de dinheiro público e, de critico, passou a ser um fiscalizador rigoroso à medida que aqueles trabalhos iam tomando forma. Durante o dia, ele visitava o canteiro de obras; curioso, questionava operários. Sempre que julgava que alguma coisa que não estava sendo feita de maneira correta, ele se manifestava aos trabalhadores ou sugeria a estes pequenas modificações no projeto. Pode-se de dizer, sem fazer injustiça, que ao final, aquela transformação pela qual passou o bairro foi um trabalho em conjunto entre a empreiteira e o meu amigo, sendo que a primeira pegou no pesado e o outro participou apenas dando palpites.

Depois que a obra da prefeitura foi finalmente concluída ao cabo de longos meses, outra mudança nos hábitos do meu amigo misantropo ocorreu. Ele passou a ir até a nova orla no final do dia para assistir o pôr do sol, quando era de seu hábito já estar se recolhendo em casa. Sentava-se num banco de madeira novo em folha posto estrategicamente de frente para o mar e ficava pensativo contemplando o final de um longo dia. Ao invés de ir dormir com as galinhas como era de seu costume, ele passou a ir para cama um pouco mais tarde, aproveitando a agradável brisa noturna do mar para dar um passeio ao longo da nova orla. Sentava-se na balaustrada para assistir as pessoas que aproveitavam aquele novo espaço para passear de bicicleta, andar de patins, de skate, jogar bola ou namorar nos bancos novos ou no gramado da encosta. Aquele prazer pela vida que aquelas pessoas demonstravam começava a contagiá-lo silenciosamente sem que ele percebesse.

No banco ao lado daquele onde ele costumava assistir o pôr do sol, certo dia, ele percebeu que também sentava uma moça com a mesma disposição. Depois que o sol desaparecia, ela ainda continuava alguns momentos admirando o horizonte manchar-se de vermelho com suas variações mescladas pelas nuvens até tornar-se um breu.

Aqueles encontros não combinados aconteciam com a mesma frequência que o sol se punha, e o meu amigo acostumou-se àquela companhia acidental. Os dois estranhos, contudo, jamais se falaram, nem nunca se cumprimentaram e se alguma vez trocaram olhares foi algo quase imperceptível. Até o dia em que o banco em que costumava sentar a moça fosse ocupado por um casal em busca de assistir o mesmo pôr do sol. Contrafeita, ela sentou-se no banco ao lado onde estava o meu amigo e, por educação, cumprimentou-o de forma impessoal, ao que ele lhe respondeu com a mesma cordialidade. Depois ficaram mudos observando atentos ao que se passava no horizonte.

No dia seguinte, o banco em que a moça costumava sentar-se estava novamente ocupado e, como na vez anterior, ela cumprimentou o meu amigo e foi sentar-se ao seu lado. Ele sentiu um pingo de satisfação com aquela novidade. Ele, que costumava chegar um pouco antes que ela, passou então a informar educadamente àqueles que ameaçavam sentar-se ao seu lado que o lugar estava reservado e indicava-lhes o banco vizinho. Aquela inocente artimanha criou na moça o hábito de sentar-se ao lado dele, mesmo que o outro banco às vezes estivesse desocupado.  O tempo foi passando e talvez os dois não tivessem percebido que, embora o sol se pusesse a cada dia mais para o ocidente em decorrência da mudança de estação, deixando, portanto, de ser visível naquele ponto onde os dois estranhos se encontravam, eles continuassem a assistir um pôr do sol que não estava mais lá. Certo dia, foi a moça quem tomou a iniciativa ao pôr delicadamente a sua mão sobre a do meu amigo. E ele retribuiu aquele gesto inesperado apertando com felicidade a mão dela entre a sua e os dois, a partir de então, nunca mais se largaram.


Rio Vermelho, 22 de março de 2016.