segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O barulho mora aqui ao lado.

Em tempos em que consideração e respeito ao próximo não são mais valores apreendidos em casa, as novas gerações agem como se o mundo fosse uma temível selva na qual, cada indivíduo deve comportar-se como um ser individualista e destituído de qualquer espírito comunitário e solidário. É a lei do cada um por si. Tenho experimentado na pele esta triste realidade.

Esta semana recebi uma carta um tanto intimidadora de um estabelecimento barulhento aqui ao lado de casa. Em resumo, a tal carta avisava que eles não vão mais tolerar que eu vá até lá reclamar do barulho que eles fazem. Eles sentiram-se incomodados com minhas repetidas reclamações de que o barulho deles incomoda à mim, à minha família e a outros visinhos, alguns, pessoas idosas, residentes aqui há mais de 40 anos. Sentiram-se ofendidos, pois, em sua compreensão, seu alvará lhes dá total permissão para fazer de nossa vida um inferno e, por isso, devemos aturá-los a todo custo. Bonito, não? Mas como este é o país dos absurdos, junte-se este a todos os outros.

Meus contínuos apelos ao proprietário do estabelecimento, um jovem e inexperiente empresário, considera-se um ambientalista, vejam só, para que o barulho fosse eliminado, uma vez que seu empreendimento foi instalado numa área residencial, nunca foram atendidos. Ao contrário, a cada vez que pisava os pés por lá para fazer minhas queixas, ele me olhava com expressão e sorriso de desdém. Eu teria de aprender a conviver com a sua presença, ele informava. Barulho em área residencial não é o tipo de poluição que todo ambientalista deveria reprovar? Nem os apelos pela minha mãe idosa e doente fizeram diferença alguma. Afinal, quem está sofrendo é a mãe dos outros e não a dele.

Até há poucos tempo atrás, o estabelecimento se apresentava como um empreendimento ambiental, preocupado com a qualidade de vida em nosso planeta. Bem pomposo, não? Talvez eu entendera errado, a qualidade de vida a que ele se referia era, na verdade, a de seu proprietário, o ambientalista de carteirinha, e não um bem comum para todos. Coisa chata. Eu também me preocupo com o meio ambiente, com a qualidade de vida do ser humano como parte deste ambiente, sobretudo. Sou um humanista. Mas, como muitas vezes acontece com as grandes idéias, infelizmente, a vaca foi pro brejo. O tal papo ambiental do jovem e arrogante empresário não emplacou, ninguém comprou sua idéia. Para não ficar no prejuízo, o consciente ambientalista empresário, transformou o local em casa de shows e espetáculos. Rebatizou aquilo de espaço cultural. Engraçado, né? Eufemismo é uma ferramenta poderosa no mundo dos negócios. Fazem as coisas parecerem melhores do que elas realmente o são. O veterinário não praticou eutanásia em meu saudoso velho cão doente, apenas o colocou para dormir placidamente com uma injeção. Se como empreendimento ambiental este lugar ao lado de minha casa já incomodava, você pode imaginar o que aconteceu ao ser elevado à categoria de espaço cultural. Não há nada de errado em pessoas tentar ganhar a vida de algum modo, desde que o seu negócio não seja um estorvo para outros. É aquela velha frase que nos chama ao bom senso, a qual eu já ouvia nos tempos do Tereza de Lisieux, "o direito de um, termina onde começa o do outro", seja lá o que isto queira dizer.

Este episódio me fez lembrar que não muito longe aqui de casa, precisamente na rua Jequié, funciona há anos, de modo discreto e despercebido, um bordel. Isso mesmo, um brega, ou casa de massagem, como se costuma dizer hoje em dia. É aquela estória do eufemismo que eu lhes contei há pouco. Um puteiro aqui perto? Eu nunca soube disso até recentemente, apesar de sempre ter passado em frente à tal casa sem nunca perceber nada de extraordinário ali. Mesmo depois de tomar conhecimento, e de tentar observar com um olhar mais crítico a sua movimentação, quando por lá passava ocasionalmente, não percebi nada de incomum. Contudo, coletando informações aqui e ali, na inocente intenção de, futuramente, escrever uma bela crônica a respeito, soube que as "meninas" que lá exercem o seu talento, são as de melhor qualidade que há, inclusive sendo algumas de nível universitário, como em Cuba! A clientela, também, não poderia ser outra senão uma de fino trato, homens do mais alto gabarito, inclusive alguns ilibados pais de família. Tudo nos conforme.

    Pois bem, a ilustre casa de massagem coabita o mesmo logradouro que respeitáveis famílias de classe média e professoras aposentadas, ali existem duas, sem que uma incomode a outra. Convivem pacificamente. Nenhuma das famílias jamais se queixou da inusitada vizinha, até porque, muitas das práticas que ali dentro daquele estabelecimento tomam acontecimento, se perpetuam, da mesma forma, na intimidade do quarto do pai e da mãe, sem que, no entanto, haja troca de prazer por dinheiro, embora muitas esposas sonhem algum dia, serem compensadas por executar tal obrigação matrimonial. A mim também não incomoda que ali funcione uma casa do pecado. Já tive até um vizinho político, por que então, me ofenderia se prostitutas morassem aqui ao lado? O Rio Vermelho tem de tudo, mesmo.

    Fico imaginando como a empresária proprietária da casa de massagem registraria o seu negócio, caso fosse obrigada pela Receita a pagar o imposto por seus serviços prestados. Centro Recreativo e Terapêutico Tia Simara Ltda. Ou Instituto Para o Estudo de Práticas Interpessoais S.A. E por que não, Espaço Cultural e de Lazer Sobrinhas da Tia Simara?

Rio Vermelho, 27 de setembro de 2009.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O jardim dos Amados.

Outro dia, fiz para o almoço uma de minhas especialidades culinárias. Um suculento sanduiche de pão integral assado em meu forno, presunto com queijo, tomate e alface americana, aquela que parece um repolho e suas folhas são crocantes como o beijú. Não uso presunto de verdade, e sim aquilo que o fabricante orgulhosamente chama de "presunto de peito de peru light". Ele anuncia aos quatro cantos que é saudável, e eu faço as pazes com a minha consciência pois, estou finalmente cuidando de minha saúde. Depois de montar minha criação gastronomica, coloquei-a num prato sobre a janela que dá para o jardim, enquanto fui até a cozinha procurar por alguma bebida que combinasse com a iguaria. Ao voltar com o copo cheio de chá gelado, o sanduiche não estava mais lá. Simplesmente havia sumido como por um encanto. Só deixaram o prato e nada mais. Como só havia eu em casa, aquele súbito desaparecimento tomora o contorno de um caso de mistério. Eu poderia jurar a mim mesmo que eu havia feito um sanduiche e o colocado por alguns minutos sobre a janela. Dei a volta pela porta da sala até o jardim para ter uma melhor perspectiva daquele intrigante mistério e, quem sabe até, desvendá-lo. Não tive trabalho para matar a charada. Por um galho do nosso mirrado pé de pinha, um sagüi fugia levando o meu almoço!

Tornou-se comum, nos últimos tempos, o aparecimento desses macaquinhos cinza rajado pelas vizinhanças do bairro em busca de alimento. Felizmente são eles, e não aqueles ursos pretos que invadem os quintais das casas nos subúrbios americanos, atrás de comida. A tia de um amigo, moradora das vizinhanças, se queixou que um cacho de bananas sumira de sua varanda. Bananas sempre estiveram associadas à macacos, mas nunca ouvi falar que eles também apreciassem sanduiche de presunto de peito de peru light.

Soa até simpático se falar de macaquinhos que nos visitam pela janela e roubam a nossa comida. A estória ganha contornos de uma fábula bucólica que acontece em plena zona urbana. Mas a verdade para isto estar acontecendo não tem nada de encantamento. É que puseram abaixo a moradia destes bichinhos e, em seu lugar, ergueram-se arranha-céus de luxo e gosto duvidoso. Sem lugar para morar e encontrar comida, eles aparecem aos bandos às nossas janelas roubando os nossos suculentos sanduiches de peito de peru light e cachos de bananas maduros comprados na barraca do crente alí no canal. Desde que a especulação imobiliária arrasou com o Horto Florestal e adjacências, os animais que tinham lá a sua moradia desde os tempos da Criação, passaram a procurar refúgio do lado de cá, invadindo o nosso espaço. Além dos delicados sagüis, tem aparecido por aqui jandaias, pica-paus e outros bichinhos do mato.

Não tenho nada contra animais deste tipo, e até preso a sua presença. Mas acho que eles devam habitar o seu lugar natural que é o meio do mato. Enfim, cada macaco em seu galho. É lá que eles estão mais seguros e aonde eles pertencem. Acho que se eu fosse morar no mato eu seria considerado um intruso e, com certeza, não me sairia tão bem lá como aqui no meio do concreto e dos automóveis. Não deixei de ficar me perguntando onde eles estariam se refugiando agora que o Horto e adjacências haviam sido invadidos pelas construtoras. Eles vêem até as nossas casas, pegam comida e depois vão para onde? Não tornei disto outro caso de mistério, como o desaparecimento do meu almoço mas fiquei com a puga atrás da orelha.

Foi outro dia ao visitar Pedrão, amigo de infância desde os tempos de escola, que tive a minha curiosidade plenamente satisfeita. Morador de sempre da rua Alagoinhas, teve sorte de ser vizinho do querido Jorge Amado. Era um final de tarde e ficamos na varanda de sua casa jogando conversa fora e tomando uma limada gelada. O sol já tinha desaparecido por detrás das casas e quando finalmente mergulhasse no oceano, deixaria tudo às escuras. Mas ainda era dia. Enquanto conversávamos, notei uma movimentação de sangüis andando pelos fios da rede elética como esquilibristas da morte se achegando para aquelas bandas.

- A esta hora eles vão todos para o jardim de Jorge Amado. – disse Pedro satisfazendo a minha curiosidade. – Os pica-paus, jandaias e outros pássaros também passam lá a noite.

Para quem nunca teve a satisfação de um dia entrar na casa de Jorge Amado, sua melhor descrição possível são as palavras conforto e simplicidade. Nada de luxo para quem já varreu o mundo afora e conheceu palácios suntuosos. A decoração da casa é despojada e não obedece nenhuma lógica estética dos profissionais da arte de arrumar os móveis. É composta de objetos de cultura popular de todas as partes do mundo e obras de arte presentedas por queridos amigos artistas. O telhado da casa é de telha-vã como só se vêem nas casas de fazenda antigas ou habitações simples do interior. Mas o que mais impressiona é o seu jardim, enorme. O jardim dos Amados é uma pequena reserva ecológica nas vizinhanças, com árvores de tudo quanto é tipo. Parece uma mata virgem e selvagem. Isto porque, Jorge sempre se opôs à podação de suas árvores, preferia deixá-las crecer e se expandir conformes os mandos da natureza. Não é à toa que seu jardim mais pareça uma porção da mata de onde os macaquinhos foram expulsos pelas construtoras, razão pela qual eles são atraídos para lá feito formigas em açucareiro. É neste jardim também onde as cinzas de Jorge e Zélia foram depositas, à sombra da velha mangueira onde costumavam namorar sentados de mãos dadas sobre um banco de alvenaria. Jorge Amado gostava de bichinhos, por isso, acho que não é mera concidencia que eles sejam atraídos pela hospitalidade que sempre foi uma caracteristica do número 33 da rua Alagoinhas.

Rio Vermelho, 15 de setembro de 2009.